A TERCEIRA MARGEM DO RIO: UM NAVEGAR DE EXCLUSÃO

Tatiana Alves Soares (UFRJ)

“Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
(...)

Vou me encontrar longe do meu lugar
Eu, caçador de mim”.

(Milton Nascimento, Caçador de mim)

Durante séculos, a sociedade ocidental foi estruturada com base em um sistema etnocêntrico referencializado a partir de um eu. Com a pós-modernidade, surge uma atitude de descentramento, numa ótica pluralizante que destitui o absoluto. Linda Hutcheon, em sua Poética do Pós-modernismo, define o caráter dinâmico e polêmico dessa estética revolucionária:

 

O centro já não é totalmente válido. E, a partir da perspectiva descentralizada, o “marginal” e (...) o “ex-cêntrico”(...) assumem uma nova importância à luz do reconhecimento implícito de que na verdade nossa cultura não é o monolito homogêneo (...) que podemos ter presumido.

 

Assim, a cultura pós-moderna é marcada por um movimento emergente das margens. É nesse contexto que surge A terceira margem do rio, narrativa integrante de Primeiras Estórias, publicado em 1962.

O conto narra a história de um homem que repentinamente manda construir uma canoa, passando a habitar a terceira margem do rio. É narrado pelo filho, que parece buscar na enunciação um sentido para o acontecido. As primeiras referências ao pai mostram ter sido ele sempre ligado à regra, aos padrões vigentes, à normalidade:

 

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros conhecidos nossos.

 

Mais do que a preocupação em caracterizar o pai, as palavras do narrador denunciam a tentativa de retratá-lo como um homem normal, em nada destoando dos outros pais do lugar. Depois de se isolar na canoa, o pai entra na categoria do diferente, e isso choca o senso comum:

 

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.

 

Ao dizer que “aquilo que não havia, acontecia”, o narrador evidencia a atitude vanguardista do pai, que ousou buscar a diferença. O termo invenção sugere ainda a postura criativa no ato de realizar algo nunca feito antes. Lenira Marques Covizzi, em seu estudo acerca do elemento insólito na obra de Guimarães Rosa, destaca alguns aspectos recorrentes nesses contos marcados pela estranheza:

 

Os personagens das Primeiras Estórias são sempre seres de exceção, por diferentes motivos. Seja por especial estágio etário de evolução (...), atitudes pouco comuns, atitudes surpreendentes, transgressão às regras sociais, atuação em acontecimentos não habituais, anormalidade físico-psíquica (...)

 

Entretanto, segundo a autora, os personagens que manifestam essa exceção são dotados de coerência, ainda que ela não seja percebida por aqueles que os rodeiam:

 

Há sempre uma determinação, uma vontade, uma certeza, uma calma da parte do personagem, que parece conhecer, dominar a situação, saber o que está fazendo, em oposição à perspectiva de dúvida, de espanto, de perplexidade, que é do narrador e do leitor ignorantes, não viventes da situação.

 

E, enquanto os outros tentam justificar de modo racional o isolamento do personagem, este mantém-se cada vez mais firme em sua escolha:

 

(...) Nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente.

 

Observe-se que o narrador estabelece uma aproximação fônico-semântica entre os termos solto e solitariamente, associando solidão e liberdade. Dessa forma, começa-se a vislumbrar o possível motivo que teria levado o pai a buscar o isolamento.

Após o choque causado pela partida do pai, aos poucos a vida parece voltar ao normal, e nem mesmo auxílio espiritual ou força policial conseguem demovê-lo de seu exílio. Sua reclusão aproxima-o do arquétipo do eremita, representação simbólica do indivíduo que se afasta voluntariamente do convívio dos homens. Sua opção de vida consiste no abolir das regras e modelos que pautam a vida em sociedade, o que se verifica no conto: “por todas as semanas, e meses, e os anos - sem fazer conta do se-ir do viver”(Cf. Primeiras Estórias, p.34).

Tudo segue seu rumo, com a passagem do tempo indiciada pela sucessão de casamentos, nascimentos e batizados. O pai, tendo renunciado aos hábitos culturais e de higiene, torna-se cada vez mais natural e primitivo, sofrendo um processo de animalização, como se depreende das palavras do filho:

 

(...)Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virava cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de um bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

 

Com o passar do tempo todos vão partindo, até que o narrador se vê sozinho. Talvez pelo fato de ter sido o único a quem o pai quisera levar consigo, ele sente-se preso à angústia de tentar compreender o que houve. A partir da atitude radical tomada pelo pai, a família começa a questionar as fronteiras da sanidade, chegando à mesma conclusão expressa por Foucault em sua História da Loucura, segundo a qual todo ser humano possui o seu quinhão de insensatez. Diz o narrador:

 

(...) Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos.

 

O narrador, como que iluminado por uma Revelação, descobre a chave de sua angústia. Dirigindo-se ao rio, propõe ao pai que troque de lugar com ele, que então assumiria esse papel. As palavras do narrador traduzem o sentido latente da opção feita pelo pai: tem de haver alguém que ouse desafiar as regras estabelecidas, que proponha o novo, o diferente, o inesperado. Seu apelo é marcado pela urgência:

 

- “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

 

As palavras do filho, que pede para substituí-lo, são as únicas que fazem sentido para esse homem. Ao se oferecer para continuar a missão iniciada, o filho demonstra ter compreendido o significado da demanda paterna. Como no mito de Caronte, o barqueiro da fábula, a libertação só poderia ocorrer quando alguém, espontaneamente, com ele trocasse de lugar. O pai atende ao apelo, mas o narrador fraqueja:

 

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto - o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. (...) E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

 

A terceira margem do rio apresenta alguns elementos recorrentes na ficção rosiana. A imagem da travessia como alegoria do viver, tão explorada em Grande sertão: Veredas, já é prenunciada no conto. Uma vez que a travessia traz consigo toda a simbologia da existência humana, a escolha do pai pela terceira margem sugere, simultaneamente, a defesa de um espaço de exceção, expresso pela margem, e a inserção do insólito, na atopia, no entrelugar, no não-lugar indicado pela referência a uma terceira margem. Significativamente, a simbologia do três indica a fase final de um conflito, a sua resolução:

 

(...) O três equivale à rivalidade (o dois) superada; exprime um mistério de ultrapassagem, de síntese, de reunião, de união, de resolução.

 

O espaço escolhido pelo pai denota não mais o uno e o absoluto ou a bipolaridade, mas o momento terceiro, em que as contradições e opostos estão reunidos. Em termos filosóficos, isso equivale à obtenção da síntese, apogeu do processo dialético, momento de equilíbrio. O fato de o pai, em vez de chegar a algum lugar, preferir continuar na canoa, traduz a sua consciência do aspecto mutável da existência. Se a travessia representa a vida, a embarcação seria o próprio meio de conduzi-la, e é a singularidade com que o pai o faz o que o coloca como um ser de exceção.

O contraste entre o modus vivendi do pai e o senso comum é metonimizado pela sua relação com o filho. Aquele que poderia continuar o projeto do pai fracassa por duas vezes em virtude de sua covardia. Na primeira, no momento da partida do pai, quando este faz menção de levá-lo consigo mas desiste quando percebe o seu medo e, já adulto, quando propõe a substituição mas foge ao combinado.

A dicotomia medo/coragem faz parte do universo rosiano, sendo apontada como uma das grandes linhas estruturais de Grande Sertão:Veredas. A coragem aparece como um dos atributos mais valiosos do ser humano, devendo o medo ser superado. É, inclusive, para obter coragem que Riobaldo decide fazer o suposto pacto com o demo. Uma das provas de qualquer iniciação consiste no enfrentamento de situações de perigo ou desconhecidas. O maior contraste entre pai e filho n’A terceira margem do rio é justamente a ousadia de um e o medo do outro. Se o rio é a vida, é com determinação e ímpeto que o pai enfrenta os obstáculos, parecendo por vezes dotado de uma força sobre-humana:

 

 

(...) O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis do meio-do-ano. (...) Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, (...) aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo - de espanto de esbarro.

 

Contrastando com tamanha obstinação, vemos o narrador, duas vezes fracassado, sendo vítima de pequenos males, nada muito arrebatador. Ao se negar o desafio do pai, condena-se a uma existência medíocre e cotidiana, marcada por reumatismo e cansaço:

 

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio - rio - rio - pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice - esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perenguice de reumatismo.

 

A vitalidade do pai parece derivar da vida livre que escolheu para si, e torna ainda mais flagrante a mesmice da vida comum, “apenas um demoramento”. Elucidativas são as palavras finais do narrador, que lamenta a própria condição:

 

(...) Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.

 

A constatação da própria mediocridade leva o narrador a questionar a sua humanidade. Sua falência enquanto indivíduo é permeada por negativas, pois é “o que não foi”, numa indicação de uma existência que não se justificou, e “o que vai ficar calado”, ao contrário do pai, cuja ausência disse tanto. Após confessar sua pequenez, o narrador pede que, na sua morte, seu corpo seja colocado numa canoa para vagar rio afora. Curiosamente, apesar de escolher o mesmo destino do pai, o filho mais uma vez se isenta de ser agente desse destino, pois pede para ser colocado, numa postura passiva. Teme ficar às margens, pois sabe que isso representa a exclusão social. Oscila entre a aventura proposta pelo pai e o porto seguro que lhe ensinaram a manter. Sua travessia é serena; sua rota, pré-traçada. A vida, travessia arriscada e fascinante, por vezes amedronta, e ouvem-se os temores de Riobaldo: “Viver é muito perigoso”. A eles respondem as doces porém firmes palavras de Diadorim: “Carece de ter coragem.”

 

Bibliografia

 

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro : José Olympio, 1990.

COVIZZI, Lenira Marques. O insólito em Guimarães Rosa e Borges. São Paulo : Ática, 1978.

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo. Rio de Janeiro : Imago, 1991.