DIFERENÇAS E SIMILARIDADES COLOCACIONAIS ENTRE
O PORTUGUÊS BRASILEIRO E O PORTUGUÊS EUROPEU

ESTUDO BASEADO NA NOÇÃO DE FUNÇÃO LEXICAL
DA TEORIA SENTIDO TEXTO

Renata Stela Valente (Université de Montréal)

1. Introdução

As diferenças lingüísticas entre o português brasileiro e o português europeu são geralmente reconhecidas; elas se encontram nos vários níveis da estrutura lingüística : fonético, morfológico, sintático e lexical. A ortografia também apresenta certas peculiaridades numa e noutra comunidade lingüística. Essas diferenças levam ao reconhecimento de duas normas do português.

Ainda que essas diferenças possam surpreender locutores de uma e de outra norma, elas são limitadas, impedindo assim a possível crença em duas línguas distintas. Infelizmente, a estratégia de marketing de algumas editoras que publicam certos manuais de ensino da língua para estrangeiros levam a crer numa língua própria ao Brasil, o “Brasileiro”, dando assim a impressão de que se trata de uma língua distinta do português, restrito a Portugal.

O português brasileiro (PB) e o português europeu (PE) apresentam certamente diferenças. No entanto, a estrutura sobre a qual as duas normas estão apoiadas não deixa de ser única, o que impede a suposição de uma outra língua que não seja o português.

No presente trabalho apresentamos algumas diferenças e similaridades lexicais entre o PB e o PE com relação às coocorrências lexicais restritas ou colocações lexicais. Para realizá-lo, utilizamos o sistema de Funções Lexicais desenvolvido pela Teoria Sentido Texto (TST) no âmbito da Lexicologia Explicativa e Combinatória (LEC). Esse sistema permite o agrupamento das colocações por meio da generalização de diversas relações semânticas que se estabelecem entre os elementos lexicais quando se encontram em coocorrência lexical. Assim, apresentaremos igualmente o sistema de Funções Lexicais no que se refere às colocações tratadas neste estudo, bem como algumas noções fundamentais da teoria subjacente, a TST.

O interesse desse estudo nasceu da curiosidade de conhecer as diferenças colocacionais de duas comunidades lingüísticas que compartilham a mesma língua. Realizamos, então, um trabalho de coleta de colocações junto a locutores do PE e do PB. O resultado da coleta foi tratado e é apresentado num quadro contendo três colunas - PE; PE & PB; PB; as colocações estão agrupadas de acordo com o tipo de Função Lexical (FL). Apresentaremos no âmbito deste IV Congresso Nacional de Lingüística e Filologia essa fase já concluída. Chamamos a atenção do leitor ao fato de que esse estudo não teve a intenção de ser exaustivo, mas quis antes evidenciar as diferenças e similaridades colocacionais entre duas comunidades lingüísticas por meio de um conjunto de colocações tratadas à luz de um sistema formal de descrição da coocorrência lexical.

Temos interesse, no entanto, em prosseguir este trabalho para a produção de um repertório de colocações do PB visando ao auxílio de profissionais da comunicação como tradutores, redatores, jornalistas e toda pessoa interessada em expressar-se convenientemente na língua, particularmente os estrangeiros. Pretendemos, igualmente, abordar a apresentação das coocorrências lexicais em alguns dicionários da língua portuguesa, fazendo algumas observações e sugestões que tentam otimizar a busca das colocações pelo usuário. Ainda que estes dois últimos assuntos não sejam abordados no presente estudo, vamos deixar algumas pistas para estimular a reflexão daqueles que se interessam por esses temas.

 

2. Noção de Colocação Lexical

 

A colocação lexical é um fenômeno da língua natural. Expressões como pisar na bola, partir pra ignorância, comprar na bacia das almas, domir como uma raposa bêbada, chover de cachorro beber água em pé, falar como uma gralha, feio como os trovões, paixão roxa, conversa de embalsamar cachoro, etc., fazem parte da produção lingüística diária do falante do português.

Esse fenômeno já identificado em 1571 no livro “Les épithètes de M. de La Porte, Parisien”, resultou no primeiro dicionário de colocações da língua francesa segundo Franz Joseph Hausmann (1979). La Porte coleta, a partir da leitura das obras de Ronsard, aproximadamente 80.000 colocações (coocorrências do tipo substantivo-adjetivo) e as distribui em 4.000 entradas nominais. A esta obra sucederam-se algumas outras com a mesma intenção de recensear as colocações da língua francesa. Um dos últimos trabalhos desse gênero segundo Hausmann é o dicionário “Les mots et les idées. Dictionnaire des termes cadrant avec les idées” de Ulysse Lacroix publicado em 1931 e com várias reedições. Neste trabalho, Lacroix inova introduzindo verbos nas entradas nominais cujos substantivos ocupam o lugar de sujeito gramatical ou objeto. Devemos citar igualmente o trabalho de Paul Rouaix, “Trouver le mot juste - Dictionnaire des idées suggérées par les mots”. Atualmente, um dos trabalhos mais representativos da coocorrência lexical é o dicionário de língua inglesa “The BBI Combinatory Dictionary of English”, uma espécie de guia de colocações.

A colocação é geralmente reconhecida como a associação ou combinação de dois lexemas. Para Hausmann não basta reconhecer a combinação de dois lexemas e afirmar que são combinações prováveis (Hallyday) ou usuais (Bally). Hausmann afirma que a combinação deve ser orientada. Por isso, o autor denomina um dos elementos da colocação base e o outro colocativo. A base é autônoma; ela não precisa do colocativo para ser definida. Já o colocativo depende da base: ele adquire sua significação apenas quando em associação com uma determinada base. Hausmann afirma que “La base complète la définition du collocatif, alors que le collocatif se contente d’ajouter une qualité à une base en elle-même suffisamment définie” (1979:192). Para exemplificar, Hausmann afirma que, para um estudante estrangeiro que aprende uma língua, a diferença entre base e colocativo é essencial: a compreensão do sentido da base é independente, enquanto a compreensão do colocativo só é possível na situação de coocorrência lexical.

Não temos dúvida que é na comparação de dois sistemas lingüísticos ou códigos, seja pela prática da tradução, seja pelo ensino da língua a estrangeiros, que o fenômeno da colocação se manifesta claramente. Por exemplo, o sintagma dar um passo deve ser traduzido em francês por faire un pas e não *donner un pas ainda que as duas línguas possuam os mesmos verbos dar - donner. O mesmo ocorre em inglês, onde o sintagma equivalente é take a step e não *give a step, ainda que give e dar sejam equivalentes. Do mesmo modo, o sintagma fazer uma pergunta, deve ser traduzido em francês por poser une question e não *faire une question ainda que as duas línguas tenham verbos equivalentes : fazer - faire.

Para Hausmann é preciso estabelecerem-se critérios para o recenseamento de colocações, sobretudo no caso da elaboração de um dicionário de colocações. O autor afirma que nem toda colocação deve constar de um repertório. Ele cita, por exemplo, a colocação regarder un arbre ‘olhar uma árvore’ que é uma colocação livre. Neste caso, o verbo regarder ‘olhar’ se combina com tudo o que pode ser visto. Portanto, não há necessidade, segundo o autor, de coletar esse tipo de colocação num repertório. Para um estrangeiro, basta aprender o sentido do verbo regarder ‘olhar’ e a partir daí ele é capaz de fazer naturalmente as combinações possíveis.

Segundo Hausmann, as combinações livres fazem parte da língua enquanto sistema. Já as verdadeiras colocações, isto é, as colocações restritas fazem parte da língua enquanto norma. Nesse último caso, Hausmann diz que a relação entre dois lexemas é arbitrária pois há imposição de um lexema sobre o outro lexema.

Para Hausmann, um dicionário de colocações deve conter apenas colocações restritas, evitando-se assim colocações livres ou estilísticas, e sua macroestrutra deve ser constituída essencialmente de entradas nominais.

Uma vez que as colocações são arbitrárias, elas devem ser aprendidas da mesma forma que o léxico de uma língua : para um determinado significado, uma certa correspondência sonora. Por exemplo, para expressar o sentido de uma piada com ‘intensas conotações sexuais’, o locutor deve utilizar cabeluda e, para isso, ele deve ter aprendido o uso desse lexema como qualquer outro: xícara, alto, sorrir, etc.

Como vimos com Hausmann, numa coocorrência lexical restrita, a base piada é autônoma, enquanto o colocativo cabeluda adquire o sentido apenas quando em associação com a base piada. Outros autores especificam ainda mais as noções desse fenômeno. Alonso Ramos e Mantha (1995) afirmam que a base é controlada apenas semanticamente, enquanto a escolha do colocativo é controlada semântica e lexicalmente. Segundo as autoras, na produção lingüística a base é a primeira a ser escolhida: além de ser expressa de maneira independente, tem um sentido mais perceptível que o do colocativo.

 

3. Frasema, Semifrasema e Quasifrasema : três tipos diferentes de colocações

 

Distinguimos até agora dois tipos de coocorrências : as livres e as restritas. As colocações restritas se distinguem ainda entre si. Por exemplo, meter os pés pelas mãos ou pisar na bola são colocações diferentes das colocações teimoso como a mulher do piolho ou custar os olhos da cara que são, por sua vez, diferentes das colocações centro comercial ou dar o peito. Por esse motivo, a TST no âmbito da LEC distribui as colocações em três diferentes classes de frasemas, que são, grosso modo, sintagmas não livres com um sentido preciso :

 

frasema completo é um tipo de frasema em que o resultado da combinação dos seus elementos não considera o significado de cada elemento que o constitui : ‘AB’ = ‘C’ ½ ‘A’ Ë ‘C’ & ‘B’ Ë ‘C’ : meter os pés pelas mãos, pisar na bola, bater as botas, meter os peitos.

semifrasema ou colocação é um frasema que mantém o significado de um dos seus constituintes, enquanto o outro constituinte adquire um outro significado ou, se permanece com o mesmo significado, ele não é escolhido livremente : ‘AB’ = ‘AC’ ou ‘AB’ = ‘BC’ : piada cabeluda, teimosa como a mulher do piolho, custar os olhos da cara, amigo do peito.

 

quasifrasema é outro tipo de frasema no qual o significado dos seus constituintes é mantido e um outro significado “imprevisível” agrega-se ao sentido dos constituintes : ‘AB’ = ‘ABC’ : centro comercial, dar o peito.

 

Seguindo a distinção feita pela LEC, trataremos de frasemas do tipo semifrasema também denominados coocorrências lexicais restritas ou colocações. Como dissemos no início, a análise das diferenças e similaridades de algumas colocações do PB e PE é feita à luz do sistema de Funções Lexicais desenvolvido pela TST no âmbito da LEC. Por isso, devemos introduzir nas próximas seções, ainda que de forma sucinta, alguns conceitos básicos da TST sobre a qual este estudo se fundamenta, bem como a noção de FL por ela desenvolvida.

 

4. Postulados Fundamentais da Teoria Sentido Texto [TST]

 

A TST se fundamenta em três postulados de natureza heterogênea. Segundo o Prof. Mel’cuk, fundador da teoria (Mel’cuk:1997), o primeiro postulado visa ao objeto de estudo da teoria; ele exprime a concepção do que é a língua para o autor. O segundo visa ao resultado esperado do estudo; esse postulado exprime a concepção do autor do que deveria ser a pesquisa e a descrição lingüística. O terceiro visa à relação entre a língua e sua descrição; esse postulado expõe certos aspectos fundamentais da língua que devem ser explícitos na sua descrição.

Apresentamos a seguir os postulados apresentados pela TST (Mel’cuk:1997):

 

Postulado 1 : A Língua como Correspondência “Sentido Texto”

 

A língua é um sistema finito de regras que especifica uma correspondência multimultívoca entre um conjunto infinito contável de sentidos e um conjunto infinito contável de textos.

Este postulado pressupõe o caráter discreto das representações e, por conseguinte, do modelo.

 

Postulado 2 : Os Modelos Sentido Texto (MST) como Ferramenta de Descrição de Línguas

 

A correspondência entre sentidos e textos deve ser descrita por um dispositivo lógico constituindo um modelo funcional da língua de tipo Sentido Texto; ele deve ser elaborado e apresentado na direção Sentido Þ Texto.

 

Assim, o MST deve receber na entrada uma representação semântica [RSem] e produzir na saída uma representação fonética [RFon]; ele deve funcionar da maneira mais próxima possível a um locutor, quer dizer, o modelo deve reproduzir da melhor maneira possível a correspondência entre o sentido que um locutor quer expressar e o texto que, segundo ele, veicula esse sentido.

Um MST deve partir do sentido em direção ao texto (daí o nome da teoria), portanto, no sentido da síntese ou da produção da fala e não no sentido oposto, o da análise ou da compreensão da fala. Apresentando de outra forma, um MST segue a direção onomasiológica, modelizando antes a atividade do locutor, considerada como mais lingüística que a do destinatário.

 

Postulado 3 : A Frase e a Palavra como Unidades de Base da Descrição Lingüística

 

Na descrição da correspondência, dois níveis intermediários de representação dos enunciados são necessários para evidenciar os fatos linguísticos pertinentes : a representação sintática [RSint], que corresponde às regularidades específicas da frase, e a representação morfológica [RMorf], que corresponde às regularidades específicas da palavra.

 

5. Estrutura Geral de um Modelo Sentido Texto

 

Como resultado dos três postulados, a TST cria um modelo funcional global da língua natural que se apresenta como um dispositivo lógico ou um conjunto de regras, com a seguinte estrutura :

 

morfologia+

semântica sintaxe fonologia

{RSemi} Û {RSintk} Û {RMorfl} Û {RFonj}

 

Em detalhe, o MST adquire a seguinte representação :

 

semântica sintaxe profunda sintaxe de superfície

 

{RSemi} Û {RSintPk1} Û {RSintSk2} Û

 

morfologia profunda morfologia de superfície fonologia

 

{RMorfPl1} Û {RMorfSl2} Û {RFonPj1} Û {RFonSj2}

 

Essa estrutura mostra que o MST inicia o processo de produção lingüística a partir da RSem (entrada) e termina a produção (saída) com as frases correspondentes em transcrição fonética, passando pelas representações intermediárias.

 

O MST possui ainda três particularidades importantes :

 

1) ele é totalmente equativo ou tradutivo, quer dizer, para cada RSem ele faz corresponder todas as RFon possíveis que podem expressá-la. O MST tenta comportar-se como um locutor que não passa seu tempo gerando frases gramaticalmente corretas ou distinguindo entre frases corretas e incorretas, nem transformando estruturas abstratas; um locutor fala, isto é, ele expressa por meio de textos os sentidos que ele quer comunicar. O MST deve fazer o mesmo : “traduzir” um determinado sentido num texto.

 

2) O MST baseia-se em paráfrases, quer dizer, na sinonímia dos enunciados. Na verdade, a competência lingüística do locutor consiste, antes de mais nada, na sua capacidade de produzir, para um sentido ‘a’ , todos os textos que podem expressá-lo (= todas as paráfrases possíveis) e escolher o ou os textos mais bem adaptados a uma situação ou a um determinado contexto.

 

3) O MST é global e integral, quer dizer, ele tenta apresentar a língua antes como um todo indivisível do que descrever apenas um fragmento dela (como por exemplo a semântica ou a morfologia).

 

5.1. Modelo Funcional

 

O MST é funcional em dois sentidos diferentes do termo funcional : por um lado, o MST modeliza o funcionamento da língua; por outro, o MST organiza-se como uma função (no sentido matemático da palavra) - uma função que faz corresponder a um sentido (= seu argumento) o conjunto de todos os textos sinônimos que a expressam (= seu valor). Neste estudo, trataremos mais à frente dessa última noção de função.

 

6. Dicionário Explicativo e Combinatório

 

Uma das aplicações do MST concretiza-se no Dicionário Explicativo e Combinatório do Francês Contemporâneo (DEC), um dos trabalhos desenvolvidos pela TST. Realizado pela equipe Sentido Texto do Departamento de Lingüística e Tradução da Universidade de Montreal sob a direção do pesquisador Prof. Dr. I. A. Mel’cuk, o DEC é um dicionário teórico, resultado de teorizações e experiências realizadas na descrição do léxico francês (encontra-se no IV volume) no âmbito da LEC, como afirmam Mel’cuk e al. :

 

Nous avons résolument bâti notre approche sur la théorie linguistique Sens-Texte, qui sert de charpente et de fil directeur et nous a fait aboutir à un modèle de dictionnaire, qui est un dictionnaire théorique - non pas dans le sens qu’il n’a pas d’existence concrète, mais dans l’acception qu’il répond à une certaine vision théorique de la réalité linguistique, que son pouvoir est maximalisé, et donc que la justesse de la présentation des faits de langue rend justice à la théorie sous-jacente. Un tel dictionnaire correspond, nous en sommes convaincus, à un dictionnaire idéalisé (1995:5).

 

O autor divide a Lexicologia em Lexicologia Teórica e Lexicologia Experimental da mesma forma que a Física se divide em Física Teórica e Física Prática, isto é, Experimental. Para Mel’cuk e al. (1995), a Lexicologia tem sua teoria, o estudo geral do léxico das línguas naturais num nível formal e abstrato, e também sua aplicação, a descrição experimental do léxico. A Lexicologia Teórica tem como tarefa depreender as leis gerais do léxico e propôr uma formalização. A Lexicologia Experimental, por sua vez, tem como tarefa verificar e precisar as formulações da Lexicologia Teórica utilizando-as na descrição dos conjuntos de lexias. A Lexicologia Experimental tem como objetivo a construção de um dicionário ideal - protótipo de dicionários práticos. Não confundamos esta última noção com a noção de Lexicografia. Como explicam Mel’cuk e al. (1995), a Lexicografia tem também sua teoria - o estudo específico do léxico de uma determinada língua, num nível substancial e concreto. Trata-se de uma teoria da produção de dicionários práticos que preocupa-se, entre outras coisas, com os problemas tipográficos, comerciais e pedagógicos subjacentes à publicação do dicionário. A Lexicografia tem também um lado prático, a produção concreta de dicionários destinados a diferentes usuários (B. Quemada (1987:235) denominou essa atividade de dictionnarique).

 

7. Seis Propriedades de Base do DEC

 

Uma vez determinado o lugar onde o DEC se enquadra na Lexicologia, isto é, na Lexicologia Experimental, apresentamos a seguir as seis propriedadas de base do DEC como descritas por Alonso Ramos e Mantha (1996):

 

1) redigido no âmbito da Teoria Sentido Texto;

2) orientado para o texto;

3) um verbete do DEC baseia-se na definição da lexia : sua representação semântica serve de base à descrição de todas as relações paradigmáticas e sintagmáticas com as outras lexias da língua;

4) enfatiza a coocorrência lexical restrita;

5) é formal, portanto, todas as informações relacionadas ao sentido, à sintaxe, etc. devem ser indicadas de maneira precisa e explícita;

6) a descrição de cada lexia é exaustiva.

 

8. Função Lexical (FL)

 

Para tratarmos das colocações entre o PB e o PE, utilizamos, como dissemos na introdução deste trabalho, um sistema de Funções Lexicais desenvolvido pela TST. Lembramos que a colocação é uma associação imprevisível de dois lexemas, como afirma Mel’cuk, “(...) colocações - expressões fraseológicas de um certo tipo que não podem ser previstas e que a Lingüística não sabia tratar de maneira lógica e facilmente calculável” (1997:22).

Grosso modo, uma FL é definida pela TST como uma função f que associa a uma lexia L - a palavra-chave (base para Hausmann 1979) - um conjunto Li de expressões lexicais - o valor (colocativo para Hausmann 1979) de f - escolhidas em relação a L para expressar o sentido correspondente a f. Se um locutor, por exemplo, quiser expressar o sentido ‘muito’ ou ‘intensamente’ a respeito de alguém que apresenta a qualidade teimoso, ele precisa conhecer o lexema que combinado à palavra-chave teimoso, produz o valor desejado ‘muito teimoso’: teimoso como uma mula ou teimoso como a mulher do piolho. Nesse exemplo, teimoso corresponde à palavra-chave; como a mulher do piolho ou como uma mula correspondem ao valor da função f que apresenta o sentido ‘muito’. Na notação de uma FL, esse exemplo se apresenta da seguinte forma :

 

Magn (teimoso) = como a mulher do piolho, como uma mula

 

A FL Magn (do latim magnus ‘grande’) corresponde ao sentido ‘muito ’ ou ‘intensamente’ que o locutor quer expressar. Se o locutor quiser, da mesma forma, expressar sua aprovação subjetiva - ‘bom’ - junto a um lexema do tipo dormir, ele pode escolher entre os seguintes valores para expressar esse sentido :

 

Bon (dormir) = como um anjo, como um bebê, feito uma criança

 

As FL do tipo Magn e Bon não são abundantes na língua. Até o momento, a TST identificou 56 funções. Mel’cuk (1997) afirma que a noção de FL fundamenta-se na hipótese que os casos de coocorrência lexical restrita baseiam-se num pequeno número de sentidos específicos - abstratos e gerais. O autor observa ainda que esses tipos de FL conhecidas como FL standard são universais, quer dizer, elas existem em qualquer língua e são (quase) suficientes para descrever de maneira sistemática e formal o conjunto de colocações de uma determinada língua.

As FL que acabamos de apresentar e que são apresentadas neste trabalho são FL simples do tipo sintagmáticas. No entanto, entre as 56 FL identificadas pela TST, encontram-se igualmente as FL paradigmáticas que apresentam relações semântico-sintáticas entre lexemas autônomos. Apresentamos a seguir algumas dessas FL paradigmáticas :

 

Syn (= sinônimos aproximativos; para ou quasi-sinônimos) : Syn É (veículo) = carro [o símbolo É indica que o sentido ‘A’ é mais específico ou mais rico que o sentido ‘B’; ‘A’ É ‘B’ quer dizer que ‘A’ inclui todos os semas de ‘B’ e, pelo menos, um outro].

 

Anti (= antônimo; a lexia L1 é um antônimo da lexia L2, se e somente se seus significados são idênticos a não ser pela negação que se encontra em um dos dois) : Anti (respeito) = desrespeito

 

Convij (= conversivo; FL que representa a correspondência entre os actantes semânticos e os actantes sintáticos profundos de uma lexia) : Conv3214 (comprar) = vender

 

A seguir, apresentaremos apenas as FL utilizadas neste trabalho, isto é, FL sintagmáticas que descrevem a coocorrência lexical restrita. Se o leitor tiver interesse em conhecer o conjunto de FL identificado pela TST, bem como informar-se mais detalhadamente a respeito das noções apresentadas neste trabalho, aconselhamos a leitura das seguintes obras : Mel’cuk, 1982, 1995a-b, 1996; Mel’cuk e al., 1984, 1988, 1992, 1995, 1999.

 

8.1 Funções Lexicais utilizadas no presente estudo

 

Intensificador [Magn]: modificador adjetival ou adverbial da palavra-chave P que expressa o sentido ‘muito’, ‘intenso’; a FL Magn liga um lexema a seu intensificador.

 

Laudativo [Bon]: modificador adjetival ou adverbial da palavra-chave P que exprime o sentido ‘bom’ enquanto aprovação subjetiva do locutor.

 

Confirmador [Ver]: modificador adjetival ou adverbial da palavra-chave P que expressa o sentido ‘tal como é preciso’.

Essas funções são utilizadas geralmente com a FL Anti, ao que a TST denomina Função Complexa :

 

AntiMagn (preço) = de banana, baixo

 

A FL complexa é um encadeamento de FL simples ligadas sintaxicamente e cujo resultado é um valor global cumulativo que apresenta, de maneira indecomponível, o sentido de todo o encadeamento.

 

Oper: a FL Oper formaliza a noção de verbo suporte, noção bem conhecida na língüística francesa. Essa FL e seus valores são verbos semanticamente vazios (ou esvaziados de sentido no contexto da palavra-chave). A FL Oper serve para verbalizar os nomes predicativos, quer dizer, nomes que são predicados semânticos. Dessa forma, ela fornece a um nome (palavra-chave) um verbo semanticamente vazio que o utiliza como seu objeto direto.

 

Real: a FL Real expressa, grosso modo, o sentido ‘realizar os “objetivos” inerentes ao referente designado pela palavra-chave ’. Portanto, essa função se refere a verbos semanticamente plenos. A FL Real fornece um verbo à palavra-chave que, por sua vez, a utiliza como seu objeto indireto.

 

Incep & Fin: as FL Incep e Fin expressam duas fases diferentes de um estado ou acontecimento. Essas FL conhecidas como funções fásicas exprimem o sentido de verbos semanticamente plenos :

 

Incep(P) = ‘começar a P-ar [realizar a ação P]’

Fin(P) = Incep(não P) = ‘parar de P-ar’ = ‘começar a não P-ar’

 

As FL fásicas não têm estrutura actancial própria, por isso elas se apóiam nas FL actanciais, como por exemplo as funções Oper e Real.

 

Caus: a FL Caus exprime um dos tipos de “causação” de um estado ou acontecimento. Essa FL, conhecida como Função Causativa, exprime o sentido de verbos semanticamente plenos :

 

Caus(P) = ‘causar que P [fazer de maneira que P aconteça]’

 

Para completar a apresentanção das FL no âmbito deste trabalho, devemos precisar que, em certos casos, o valor de uma FL pode não incluir formalmente a palavra-chave, mas que o valor expresso comporta ao mesmo tempo o sentido da palavra-chave e o sentido da função. Neste caso, o elemento resultante é chamado Elemento Fusionado e ele é indicado por duas barras //, por exemplo :

 

Bon (comida) = // manjar (dos deuses)

AntiBon (comida) = // gororoba

 

Encerraremos a apresentação das FL comentando a respeito de um último tipo de FL no âmbito deste estudo, a FL não standard: quando um determinado sentido se combina com um número muito pequeno de palavras-chave ou com uma única palavra-chave e que o valor, resultado da combinação, apresenta um número ínfimo de expressões diferentes, então estamos lidando com uma FL não standard. Por exemplo:

 

deve ser restrita

a certas condições (absolvição) = condicional

 

Esse tipo de FL representa sempre, segundo Mel’cuk e al. (1995), uma dificuldade para o lexicógrafo, em razão da sua natureza: ela é extremamente específica e não previsível, não pode assim ser coletada nem compilada de maneira metódica, portanto, não pode ser descrita por meio de um formalismo pré-determinado; ao contrário, o sentido de cada FL não standard deve ser formulado um a um. Por isso, a descrição de uma FL não standard é uma minidefinição.

 

9. Coleta das Colocações

 

As FL apresentadas neste trabalho são o resultado da contribuição de locutores brasileiros e portugueses que gentilmente aceitaram responder a uma enquete formulada especificamente para a coleta das colocações.

 

9.1 Apresentação das Colocações

 

As colocações reagrupadas em relação às FL são apresentadas num quadro contendo quatro colunas :

 

· a primeira coluna denominada entrada lexical apresenta a palavra-chave com sua categoria gramatical;

· a segunda coluna apresenta o valor no português europeu (PE);

· a terceira apresenta o valor comum entre o PE e o PB;

· finalmente, a quarta coluna apresenta o valor no português brasileiro (PB).

 

Cada quadro corresponde a uma determinada FL. Várias palavras-chave são reagrupadas sob uma mesma FL. Assim, por exemplo, a FL Magn reagrupa 14 palavras-chave listadas em ordem alfabética e agrupadas pela categoria gramatical.

 

10. Quadro das Diferenças e Similaridades de algumas Colocações do PE e PB

 

Magn

entrada lexical

PE

PE & PB

PB

apanhar v

Magn pela medida grande

 

Magn como boi ladrão; como cachorro sem dono; como pau de dar em doido

chorar v

Magn lágrimas como punhos; baba e ranho; como uma Madalena

Magn lágrimas de sangue; rios de lágrimas; como um bezerro desmamado

Magn feito uma criança; como um bezerro

chover v

Magn a potes

Magn torrencialmente; a cântaros

Magn canivete(s); de cachorro beber água em pé

comer v

Magn até tocar com o dedo MagnBem : como/que nem um abade AntiMagn como um pisco

AntiMagn como um passarinho

MagnBem feito um padre AntiMagn feito um passarinho

comprar v

AntiMagn4 a troco de reza; por dez reis de mel coado; por uma tuta e meia

AntiMagn4 por uma ninharia; por uma bagatela; por uma pechincha; a troco de nada; na bacia das almas

AntiMagn4 por uma micharia

custar v

AntiMagn2 duas vezes nada

Magn2 os olhos da cara; uma fortuna AntiMagn2 nada; uma ninharia

Magn2 uma facada; um absurdo; uma grana preta

dormir v

Magn como um porco; a sono solto; como um prego

Magn como/que nem uma pedra; a sono solto; profundamente

Magn como uma raposa bêbada; como gato de armazém; como gato de hotel; como um gato

falar v

Magn como uma gralha; //fala-barato; as estopinhas; Magn volume para as cabras

Magn pelos cotovelos; //tagarelar

Magn mais que o homem da cobra; como uma vitrola; feito/como uma matraca; //matraquear; feito papagaio; que nem pobre na chuva como papagaio na areia quente

feio adj

Magn como os trovões; como um tacho

Magn como/que nem um bode; como um sapo; de doer

Magn como briga de foice no escuro; que nem a mulher do guarda; que dói; de dar dó

magro adj

Magn como um caniço; como um cão

Magn como um espeto; como um esqueleto; como um palito; como um pau de virar tripas

Magn como sopa de cachorro; como uma vara

surdo adj

Magn para além do estúpido

Magn como uma porta

Magn feito um muro

teimoso adj

Magn como/que nem um burro

Magn como uma mula

Magn como a mulher do piolho; feito uma mula empacada

paixão n

Magn assolapada

Magn violenta; desenfreada

Magn Roxa Magn muito : //paixonite aguda

preço n

AntiMagn da chuva; da uva mijona

Magn exorbitante; alto AntiMagn baixo

AntiMagn de banana

 

Bon

entrada lexical

PE

PE & PB

PB

comida n

 

Bon //manjar (dos deuses)

Bon no ponto AntiBon //gororoba

dormir v

 

Bon como um anjo; como um bebê

Bon feito uma criança

 

AntiVer

entrada lexical

PE

PE & PB

PB

falar v

AntiVer sem ser ouvido para o boneco

AntiVer sem ser ouvido para as paredes

 

conversa n

AntiVer de/para embalsamar cachorro

AntiVer fiada; à toa; vazia; oca; sem pés nem cabeça

AntiVer pra boi dormir; de usineiro; mole;

 

Oper

entrada lexical

PE

PB & PE

PB

alta ‘autorização dada pelo médico ao paciente para que este possa sair do hospital’ n

 

Oper1 dar [~ a N=Y]; Oper2 receber [~ de N=X] ResultOper2 ter [~ de N=X]

Oper2 ganhar [~ de N=X]

bebê n

 

Oper1 ter [ART ~]

IncepOper1 ganhar [ART ~]

conversa n

IncepOper1 meter IncepOper1 atracar

 

IncepOper1 puxar

desfalque n

Oper1 fazer [ART ~]

 

Oper1 dar [ART ~]

gafe n

Oper1 cometer [ART ~] Oper1 fazer [ART ~]

 

Oper1 dar [ART ~]

gripe n

 

IncepOper1 apanhar [ART ~]

IncepOper1 pegar [ART ~]

marido n

Caus2Oper2 pescar [ART ~]

Caus2Oper2 arranjar [ART ~]

Caus2Oper2 fisgar [ART ~]

moda n

 

FinFunc0 passar [de ~] FinOper1 sair [de ~]

FinFunc0 cair [de ~]

atalho n

 

Oper1 tomar [ART ~]

Oper1 pegar [ART ~]

chute n

Oper12 aplicar [ART ~ prep. (ART) N=Y]; rematar [ART ~ prep. (ART) N=Y]; atirar [ART ~ prep. (ART) N=Y]

Oper12 mandar [ART ~ prep. (ART) N=Y]

Oper12 dar [ART ~ prep. (ART) N=Y]

 

Real

entrada lexical

PE

PB & PE

PB

maconha n

 

Real1 fumar [~]

Real1 puxar [~]

 

11. Colocações no Dicionário

 

O Novo Dicionário Aurélio (1986), ainda que sensível ao fenômeno das colocações ou fraseologia como indicado no seu prefácio, - “Adotou-se aqui, em relação à fraseologia (...)”-, apresenta uma certa carência com relação à sistematicidade e ao tratamento das colocações ainda que tenha adotado regras bastante definidadas, emprestadas ao Diccionario da Real Academía Española.

Citaremos alguns exemplos como as colocações teimoso como uma mula ou teimoso feito uma mula empacada, que não são apresentadas nem no verbete mula, como deveriam sê-lo segundo a política adotada “(...) se a frase contém substantivo ou palavra substantivada, naquele ou nesta se faz o registro (...)”, tampouco no verbete teimoso como indica a regra “(...) seguem-se na ordem de preferência, o verbo, o adjetivo, o pronome e o advérbio”. Chamar a atenção é outra colocação que não consta do repertório e que, aliás, a sua descrição deve levar em consideração sua polissemia, grosso modo : 1. advertir; 2. ralhar; 3. atrair o olhar. No entanto, a colocação chamar o elevador tem uma descrição do significado do seu valor chamar na oitava acepção do verbo chamar e é apresentada como exemplo do uso : “8. Fazer funcionar o mecanismo de (o elevador), acionando circuito elétrico ligado a botão de comando: “Chamou o elevador e desceu”. No entanto, segundo a indicação do prefácio citada anteriormente, essa colocação deveria ter sido compilada no verbete elevador.

Certas colocações são apresentadas sem sistemacidade. Por exemplo, se por um lado a colocação surdo como uma porta é apresentada integralmente na seção reservada à fraseologia no verbete do lexema porta, por outro lado, no caso da colocação teimoso como/feito a mulher do piolho é apresentado apenas seu valor, mulher do piolho, no verbete mulher; a palavra-chave teimoso aparece embutida na frase, caracterizando um substantivo: “Bras. Fam. Mulher muito teimosa. [Us., em geral, comparativamente : O velhinha teimosa! é pior que a mulher do piolho.]”.

Outros casos revelam ainda outras dificuldades na compilação da colocação. A coocorrência estar entre a cruz e a caldeirinha é compilada em negrito no verbete cruz. Já a coocorrência estar/andar/ver-se em papos-de-aranha tem um verbete próprio no qual a sequência papos-de-aranha é apresentada como entrada do verbete. Fruto de convenção, o emprego do hífen nas expressões compostas cujo sentido global é uma unidade de sentido leva à criação de uma entrada no dicionário, tal o caso de papos-de-aranha, chove-não-molha, puxa-saco, etc. No entanto, expressões como entre a cruz e a caldeirinha, puto da vida têm igualmente uma unidade de sentido que em certos casos é até mesmo descrita, mas por serem grafadas sem hífen, elas são compiladas no verbete de uma das formas lexicais que compõe o sintagma : “entre a cruz e a caldeirinha. Num dilema, em situação crítica, sem saber como livrar-se; (...)”.

Certos colocativos são descritos como uma acepção do vocábulo ao qual se combinam semanticamente (chamar o elevador citado anteriormente), por exemplo, o colocativo roxa elemento da colocação paixão roxa é descrito na quarta acepção do vocábulo roxo e a colocação é apresentada na forma de exemplo do uso: “4. Bras. Muito intenso; excessivo, desmedido: paixão roxa”. Da mesma forma, o colocativo feio, elemento da colocação tempo feio, é descrito na quinta acepção do vocábulo feio : “5. Diz-se do tempo mau, chuvoso ou ventoso; fechado”.

Margarida Alonso e Mantha (1996) afirmam que vários dicionários tradicionais não têm uma política uniforme para o tratamento do colocativo : ora criam uma acepção particular para o colocativo (por exemplo, blond [‘loiro’] no Petit Robert, dicionário da língua francesa), ora o colocativo é repertoriado como um sentido figurado sem indicação explícita da nova acepção, ou o colocativo é repertoriado no verbete da base com uma pequena descrição do sentido de toda a colocação, ou ainda é compilado no verbete da base sem qualquer descrição.

Efetivamente, há muito o que se refletir a respeito da compilação da colocação. Se, por um lado, a imposição de regras de compilação das colocações facilitam a tarefa lexicográfica, por outro, a facilidade da consulta de uma coocorrência lexical pelo usuário não é evidente. Assim, um usuário que procura compreender a colocação surdo como uma porta sem ter lido as informações com respeito ao modo de compilação nos prefácios dos dicionários (o que acontece geralmente), se encontrará evidentemente em papos-de-aranha! O mesmo ocorrerá com o usuário que não sabe a respeito da convenção do hífen. Aliás, se o hífen representa uma forma de distinção entre palavras compostas e complexas, tal distinção deve ser sistematizada no léxico compilado.

Na LEC, as coocorrências lexicais são distribuídas em 3 classes de frasemas como apresentamos na seção 3 - frasema, semifrasema e quasifrasema, e compiladas no DEC segundo essa classificação. Assim, por exemplo, os frasemas completos [sûr de soi (-même) ‘seguro de si mesmo’; se casser le nez ‘bater com o nariz na porta’], bem como os quasifrasemas são descritos em verbetes próprios. Os semifrasemas ou colocações são descritos no verbete da palavra-chave, quer dizer, no verbete do lexema correspondente à palavra-chave. Assim, por exemplo, as colocações blesser grièvement ‘ferir gravemente’, blesser à mort, blesser mortellement ‘ferir mortalmente’ serão compiladas no verbete de lexema blesser ‘ferir’.

 

12. Apresentação de Semifrasemas e Frasemas Completos no DEC

 

Apresentamos, a seguir, dois verbetes: bruine ‘chuva fina’ e casser [se] le nez ‘bater com o nariz na porta’. No primeiro, de acordo com a política da LEC, todos os semifrasemas [‘AB’ = ‘AC’] relacionados semânticamente com o lexema bruine (palavra-chave) são descritos no verbete do lexema. No segundo verbete, apresentamos um frasema completo [‘AB’ = ‘C’] que consoante à TST subjancente, deve ser descrito de maneira autônoma, ou seja, possuir sua própria entrada:

 

bruine, nom, fém.

 

Bruine = PluieI(a) très fine.

 

Fonctions lexicales

 

SynÌ : pluieI(a)

SynÇ : crachin; brouillardI

V0 : bruiner [Il bruine légèrement]

A0 : bruineux [un temps (un jour) bruineux]

Adv0 : en [~] [La pluie tombait en bruine]

Magn : légère | antépos ou postpos

AntiMagn : dense, épaisse

F1=Involv ® Y : tomber [sur N = Y] [Une bruine légère tombait sur a ville]

Conv21F1 : être [sous ART ~]

Adv2F1 : dans, sous [ART ~]

 

Exemples

 

La bruine forme un épais brouillard sur la campagne bretonne. Ils on bravé une légère bruine et le brouillard pour aller observer la marmotte. Hier, toute la journée, la région a été sous une pluie et une bruine très dense. Dans la bruine, la barge pointe son nez plat derrière le phare. Le charme des rues de la vieille ville se saisit mieux sous les bruines de l’hiver.

 

 

casser [se] le nez, loc. verb., intrans.-pronom., fam.

 

X ése casse le nezù = X arrivant à un endroit a avec l’intension d’y voir quelqu’un ou d’y faire quelque chose, || X trouve a fermé.

 

Régime

X = 1

1. N

 

C1 : Il s’est cassé le nez

 

Exemples

 

¾ Ah! ce resto! Quand j’y vais, je me casse très souvent le nez.

 

13. Conclusão

 

O estudo apresentado nestas páginas teve como objetivo mostrar algumas das diferenças e similaridades colocacionais entre o PB e PE. Para realizar esse objetivo, utilizamos o sistema de FL desenvolvido pela TST no âmbito da LEC. Esse sistema formal nos ajudou a apreender e descrever o fenômeno da coocorrência lexical restrita nas duas normas do português.

Além de explicitar o fenômeno da coocorrência lexical, esse sistema permite por meio das possibilidades oferecidas - FL standard simples, FL standard complexa, FL não standard, valor fusionado e ainda várias outras configurações não abordadas neste estudo - que a descrição seja exaustiva.

Abordamos o fenômeno das cocorrências lexicais que se divididem em livres e restritas; estas últimas são ainda distribuídas em três classes : frasema completo; semifrasema; quasifrasema. Tratamos dos semifrasemas ou colocações, objeto de análise e descrição cujo resultado é apresentado no quadro de diferenças e similaridades colocacionais entre o PB e PE.

A análise e descrição das colocações do PB e PE foram feitas, como dissemos anteriormente, por meio do sistema de FL da TST. Para que pudéssemos introduzir o sistema de FL por meio do qual este estudo foi realizado, tivemos que apresentar necessariamente algumas noções fundamentais da TST. Por isso, ainda que de forma sucinta, apresentamos os três postulados da TST, bem como a estrutura geral do Modelo Sentido Texto. Descrevemos igualmente as seis propriedades de base do DEC, dicionário que apresenta de maneira concreta as considerações teóricas da LEC.

Terminamos nossa apresentação fazendo algumas observações a respeito da sistematicidade e exaustividade da descrição de algumas colocações no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986) e apresentamos em seguida dois vocábulos do DEC que exemplificam a maneira como são descritos os frasemas de tipo frasema completo e semifrasema ou colocação conforme a LEC.

Este trabalho além de explicitar as diferenças e similaridades colocacionais das duas normas do português, a do Brasil e a de Portugal, mostra ainda a pertinência de um dicionário de colocações lexicais, não apenas para locutores nativos do português e os profissionais que lidam com a língua, em especial os tradutores, mas principalmente para os estrangeiros que aprendem nossa língua, pois, como sabemos, as colocações, responsáveis pelo êxito em expressar-se convenientemente numa outra língua, representam um dos problemas cruciais no aprendizado de uma língua estrangeira.

Esperamos ter cumprido a proposta deste trabalho, bem como ter apresentado ao leitor algumas noções da TST que o introduza a um modelo formal de descrição lingüística. Da mesma forma, esperamos que este estudo forneça pistas que levem o leitor a refletir a respeito do fenômeno da coocorrência lexical e sua descrição.

Não poderíamos concluir este estudo sem antes agradecer a todos aqueles que contribuíram para sua realização : Prof. A. Polguère por ter-nos auxiliado na análise e descrição das colocações, Profa. Maria Teresa Pinto que nos auxiliou na análise e tratamento das colocações do português europeu, Prof. I. A. Mel’cuk que leu uma versão bastante similar ao conteúdo destas páginas, Profa. M-C L’Homme que também leu uma versão semelhante e cujos comentários enriqueceram a apresentação deste trabalho e as Profas. Ieda Maria Alves e Flávia Campos que nos auxiliaram com referências bibliográficas.

 

14. Bibliografia

 

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