TEMPO VERBAL NO SATYRICON, DE PETRÔNIO

EVIDÊNCIAS DE NEUTRALIZAÇÃO MORFOLÓGICA
ENTRE PRESENTE E PRETÉRITO PERFEITO DO INDICATIVO
EM LATIM E SUAS IMPLICAÇÕES
NA FORMAÇÃO DO PRETÉRITO PERFEITO DO INDICATIVO
EM PORTUGUÊS

Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet (UFMG/USP)

INTRODUÇÃO

Neste trabalho reúno dados de que disponho sobre o uso dos tempos PRESENTE e PRETÉRITO PERFEITO do INDICATIVO no latim do século I d. C. Os dados foram retirados da obra Satyricon, de Petrônio, texto com o qual trabalho no desenvolvimento de minha tese de doutorado. Em linhas gerais, meu trabalho de tese busca estabelecer a gramática do texto de Petrônio, privilegiando seu caráter de linguagem menos formal - fato reconhecido sem contestação pelo menos para os capítulos que descrevem a Cena Trimalchionis - o que a credenciaria como fonte de estudo para o que teria sido o latim falado de então. No entanto, fiz a opção por trabalhar com o texto em sua totalidade e não apenas com a Cena Trimalchionis, primeiro por acreditar que os desvios em relação às normas do latim clássico poderiam ser encontrados ao longo de toda a obra, ainda que mais evidentes nos diálogos dos escravos que participam do jantar de Trimalquião; segundo, por poder estabelecer pelo menos dois contrastes: um entre a linguagem de Petrônio na Cena Trimalchionis e a utilizada nos demais capítulos; o outro entre a linguagem do Satyricon e o padrão clássico. Os dados coletados, ainda que sejam apenas pistas ou rastros da linguagem falada, muito podem contribuir para uma descrição mais detalhada do chamado "latim vulgar", a partir do qual evoluem as línguas românicas.

 

O PROBLEMA

 

O ponto de partida desta análise foi a observação do uso excessivo de tempo PRESENTE ao longo de toda a obra Satyricon, não apenas na Cena Trimalchionis, tendo chamado especial atenção os casos em que este tempo se encontra em correlação direta com tempos do passado, especialmente o PRETÉRITO PERFEITO, em desrespeito à regra de consecutio temporum, que está definida nas gramáticas latinas, e que se assemelham às regras de emprego dos tempos nas orações, vigentes no português atual. Vejamos alguns exemplos:

 

(1) "Iussi ergo DISCVBVIMVS, et gustatione mirifica initiati uino Falerno INVNDAMVR". (21, 6)

(2) "Et iam plena nox ERAT mulierque cenae mandata CVRAVERAT, cum Eumolpus ostium PVLSAT". (92, 1)

(3) "Dum Eumolpus cum Bargate in secreto LOQVITVR, INTRAT stabulum praeco cum seruo publico aliaque sane modica frequentia, facemque fumosam magis quam lucidam quassans haec PROCLAMAVIT". (97, 1)

(4) "Genua ego perseuerantis AMPLECTOR, ne morientes VELLET occidere". (98, 3)

(5) "Non solum era TVRBATA EST, sed ancillae etiam omnes familiari sono inductae ad uapulantem DECVRRVNT". (105, 6)

(6) "Itaque hercules postquam manifesta CONVALVIT, Lichas trepidans ad me supinas PORRIGIT manus". (114, 4)

(7) "OPPONO ego manus oculis meis, nullisque effusis precibus, quia SCIEBAM quid MERVISSEM, uerberibus sputisque extra ianuam EIECTVS SVM". (132, 4)

 

Através destes exemplos, fica evidenciado que o PRESENTE e o PRETÉRITO PERFEITO do INDICATIVO são utilizados em correlação tanto em orações coordenadas (exemplos 1,3, 5 e 7), quanto em orações subordinadas (exemplos 2, 4 e 6). A questão que se coloca é: deve-se considerar esta ausência de concordância entre os tempos como simples desvio ocasional da norma clássica, ou é possível analisar este fato como lingüisticamente significativo ? Escolho a segunda opção e busco neste trabalho analisar as questões lingüísticas que o problema levantado envolve.

 

A HIPÓTESE

 

Para estabelecer a hipótese, faz-se necessário discutir, ainda que brevemente, as regras gramaticais, a partir das quais as orações aqui apresentadas se desviam.

Em relação às orações coordenadas, parto do princípio básico de que a coordenação se estabelece entre orações de igual valor significativo (Faria, 1995; Cart & alii, 1986), isto é, entre termos equivalentes pela natureza e pela função. Assim, apesar de serem duas formas verbais, o PRESENTE e o PRETÉRITO PERFEITO são a expressão de dois valores diferentes em relação à linha do tempo. Essa ausência de paralelismo seria, pois, um desvio em relação ao uso dessas formas verbais. Desta forma, a constante utilização de um verbo no PRESENTE em coordenação com um verbo no PRETÉRITO PERFEITO é analisada como um indício de que estas formas estariam sendo tratadas pelo falante como equivalentes.

Quanto às orações subordinadas, devem ser analisadas separadamente as orações subordinadas com verbo no INDICATIVO e as com verbo no SUBJUNTIVO. Segundo Faria (1995), as orações subordinadas com verbo no INDICATIVO seguem o mesmo padrão de utilização das orações coordenadas. Já as orações subordinadas com verbo no SUBJUNTIVO devem ser analisadas segundo as normas de emprego dos tempos na oração subordinada, que estão estabelecidas pela regra geral da consecutio temporum. Em resumo, a regra é a seguinte: se o verbo da oração principal estiver nos tempos presente ou futuro do indicativo, ou no modo imperativo, o verbo da oração subordinada irá para o PRESENTE, ou para o PERFEITO do SUBJUNTIVO; se, porém, o verbo da oração principal estiver no IMPERFEITO, PERFEITO, ou MAIS-QUE-PERFEITO do INDICATIVO, o verbo da oração subordinada irá para o IMPERFEITO, ou MAIS-QUE-PERFEITO do SUBJUNTIVO.

No entanto, Ernout & Thomas (1953) advertem para o fato de que esse paralelismo morfológico entre os tempos do INDICATIVO e do SUBJUNTIVO não se estabelece de forma inequívoca e que os autores clássicos fazem mais uso desta liberdade de escolha do que geralmente se ensina (p. 419).

Faria (1995) apresenta três casos em que há um aparente desvio da regra de consecutio temporum: quando o verbo da oração principal é um presente histórico, ou um infinitivo histórico, ou ainda um PRETÉRITO PERFEITO na função de perfeito propriamente dito. Destes três casos apresentados por Faria, o que se associa mais de perto ao texto estudado neste trabalho é o que envolve o uso de PRESENTE histórico, por ser ele mais freqüente em textos narrativos. Neste caso, a concordância pode ser feita em termos gramaticais (PRESENTE), ou lógicos (PRETÉRITO PERFEITO). De fato, muitos casos de aparente ausência de concordância no Satyricon podem ser associados ao uso do PRESENTE histórico, como no exemplo (4) apresentado anteriormente. Porém, permanecem sem tratamento nas gramáticas consultadas os casos que envolvem a ausência de concordância em orações coordenadas e em orações subordinadas com verbo no INDICATIVO.

Assim, com base na discussão acima e nos exemplos levantados, passo a discutir a hipótese de que esta falta de paralelismo entre os tempos verbais seria um caso de simplificação da morfologia verbal latina, isto é, um processo de neutralização morfológica entre os tempos PRESENTE e PRETÉRITO PERFEITO, em favor do PRESENTE.

Em termos lingüísticos, esta hipótese ganha sustentação em dois processos morfo-sintáticos:

 

a existência de neutralização morfológica entre PRESENTE e PRETÉRITO PERFEITO em algumas formas de 3a p.s. e 1a p.p. da conjugação clássica (ex.: tribuit, uenimus);

o desenvolvimento paralelo de duas construções perifrásticas: habere + particípio passado (para substituir o PRETÉRITO PERFEITO em sua função de perfeito) e coepisse + infinitivo (para substituir o PRETÉRITO PERFEITO em sua função de aoristo) (Palmer, p.150).

 

Além da neutralização já existente entre algumas formas de PRESENTE e PRETÉRITO PERFEITO, a utilização de PRESENTE do INDICATIVO se justifica por sua função econômica, uma vez que esta é a forma mais neutra do verbo, ou seja, a que não apresenta sufixo delimitador de modo e tempo, além de se utilizar das desinências de número e pessoa comuns aos outros tempos verbais. O PRESENTE do INDICATIVO teria passado, então, a funcionar como um "curinga", uma forma verbal atemporal, que substituía o PRETÉRITO PERFEITO, ao lado das estruturas perifrásticas que se encontravam em franco processo de desenvolvimento.

As ocorrências levantadas no Satyricon retratam um período de transição entre a forma sintética da conjugação clássica e a forma analítica da linguagem oral, como um processo que consiste na supressão de um traço morfológico particularmente complexo, com o objetivo de evitar a sobrecarga de esforço da memória (neste caso específico o aprendizado de mais um tema verbal e uma seqüência de desinências de número e pessoa). Tal período de transição envolve a co-ocorrência, e porque não dizer concorrência, de várias formas verbais, para expressar uma ação acabada, ou passada: as formas sintéticas de PRETÉRITO PERFEITO e de PRESENTE, de um lado; e as construções perifrásticas de habere + particípio passado e coepisse + INFINITIVO, de outro.

Duas dessas formas permanecem nas línguas românicas: a substituição da forma sintética pela analítica (habere + particípio passado) - caminho seguido pelo espanhol, francês e italiano - e a retenção da forma sintética - caminho seguido pelo português.

O processo de substituição da forma sintética pela analítica pode ser interpretado segundo a teoria de De Dardel (1990), que em seu artigo sobre a simplificação morfológica no latim oral desenvolve a tese de que os processos de simplificação morfológica são seguidos por um outro processo, que recebe a denominação de "reelaboração". Este segundo processo consiste na utilização de recursos lingüísticos mais simples, geralmente ligados ao léxico e à sintaxe, no lugar dos traços morfológicos simplificados. Segundo o autor, estes são dois processos lingüísticos que atingem todo um conjunto de categorias gramaticais, isto é, o sistema inteiro, e não apenas termos isolados. O objetivo da reelaboração seria restabelecer o equilíbrio rompido pela simplificação morfológica.

Por outro lado, a retenção da forma sintética em português aponta para um caminho inverso ao movimento global de simplificação da morfologia latina, tanto nominal, como verbal. A justificativa para tal manutenção, a meu ver, se encontra na influência do latim escrito sobre o português, quando em formação, podendo ser considerada como uma retomada erudita, ou melhor, semi-erudita, do sistema morfológico clássico. Acredito que a interpretação deste fenômeno lingüístico deve ser buscada em fatores associados à romanização da Península Ibérica - tais como a influência do substrato na seleção da forma sintética, em detrimento da analítica; ou ainda a imposição da forma sintética como principal - que teriam atuado como facilitadores a essa manutenção, ou talvez reintrodução, das formas de PRETÉRITO PERFEITO simples no português.

 

CONCLUSÃO

 

Os fenômenos lingüísticos descritos neste trabalho podem ser encaixados no processo global de mudança, por que passou o latim, de língua sintética para analítica.

No entanto, é importante reconhecer que apenas as ocorrências de PRESENTE em correlação com PRETÉRITO PERFEITO levantadas no Satyricon não são suficientes para comprovar a hipótese aqui levantada, pois que os fenômenos lingüísticos pesquisados descrevem apenas o padrão de uso dessas formas no período da língua latina representado pela obra. No entanto, podem ser consideradas como ponto de partida para um estudo mais aprofundado, que poderia levar a uma melhor descrição do processo de mudança que envolve esta continuação da morfologia verbal latina no português e sua alteração nas demais línguas românicas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

BYNON, T. Historical Linguistics. London : Cambridge University Press, 1987.

DE DARDEL, R. "Remarques sur la simplification morphologique en latin oral". In: CALBOLI, G. (org.) Latin Vulgar - latin tardif II. Actes du IIeme Colloque International sur le latin vulgaire et tardif. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1990.

ERNOUT, A. & THOMAS, F. Syntaxe Latine. - 2a ed. rev. e aum. Paris : Librairie C. Klincksieck, 1953.

FARIA, E. Gramática da Língua Latina. revisão de Ruth Junqueira de Faria - 2a ed. rev. e aum. Brasília : FAE, 1995.

GAFFIOT, F. Dictionnaire Latin - Français. Paris : Hachette, 1934.

HUBER, J. Gramática do Português Antigo. - trad. Maria Manuela Gouveia Delille. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1933.

LEWIS, C. A Latin Dictionary. New York : Oxford University Press, 1987.

PALMER, L. R. The Latin Language. London, 1954.

PETRÓNE. Le Satiricon. Texte ét. et trad. par A. ERNOUT. Paris : "Les Belles Lettres",1999.