TRADUZINDO CORES

Amarílis Gallo Coelho (UFRJ)

 

No campo literário italiano, um escritor, entre outros, destacou-se pelo uso das cores em sua narrativa: Carlo Levi (1902-1975), narrador e pintor das desigualdades sociais na Itália. Em sua obra, principalmente em Cristo si è fermato a Eboli 1 ( Cristo parou em Eboli), a partir de suas escolhas lexicais, onde predominam formas e cores, documenta problemas que em verdade são universais, embora possam variar em gama cromática, do ponto de vista espaço-temporal: “Il cielo era rosa verde e viola, gli incantevoli colori delle terre malariche, e pareva lontanissimo” (“O céu era rosa, verde e roxo, as tonalidades encantadoras das terras maláricas, e parecia muito distante”) (CE, ed.it., p.55)

Em um trabalho de transposição para outro código lingüístico, como acompanhar a intenção do original, em sua plasticidade, de peso conotativo tão intenso, sem deixar que se percam as mensagens das entrelinhas e dos meios-tons?

A abrangência dos fatos observados por Levi é enorme e se define no léxico variado, que descreve, desde a moral e a religião até fatos quotidianos, como o trabalho, a fauna e a flora, representados em uma espécie de “literatura oral”, que recolhe dados do folclore, abrangendo múltiplas facetas da linguagem popular e da herança cultural:

 

L’itterizia si chiama, qui, il “male dell’arco”: la malattia dell’arcobaleno, perché per essa l’uomo cambia di colore, e in lui, come nello spettro del sole, prevale il color giallo. (A icterícia chama-se, aqui, o “mal do arco”: a doença do arco-íris, porque ela faz a pessoa mudar de cor e nela, assim como no espectro solar, prevalece a cor amarela.) (CE. ed.it., p. 211)

 

Pretendemos comentar, brevemente, uma das traduções da obra mencionada,2 levantando soluções e problemas encontrados pelo tradutor, principalmente no tratamento dado à descrição da terra e da gente, elementos semiológicos fundamentais para a fidelidade ao estilo do autor e à caracterização ambiental como um todo.

Para compreendermos o universo representado por Levi, em letras e tintas, é necessário ter em mente, que cada palavra e cada elemento significante, seja som, objeto ou paisagem, tem uma intenção plástica. Pinceladas coloridas e palavras confundem-se na descrição do ambiente meridional italiano.

Como sabemos, a linguagem é a mais típica manifestação da cultura, e através dela, liga-se o passado ao presente, pela comunicação oral e escrita. A tradição oral se faz presente nas lendas, fábulas, canções e ditados populares, unindo gerações, em um processo infinito de transmissão de culturas, evoluindo natural e continuamente.

A reunião gradativa de certos elementos produz um repertório lingüístico específico, aceito por cada sociedade, espontâneo e ao mesmo tempo, tradicional. No veio da cultura do povo, analisando o folclore e outros dados, descobrimos fatos interessantes a serem assinalados:

 

Il dialetto possiede delle misure del tempo piú ricche che quelle di alcuna língua(...) “crai” é domani, e sempre; ma il giorno dopo domani è pescrai e il giorno dopo ancora è pescrille... (O dialeto possui medidas do tempo mais ricas do que aquelas de qualquer língua(...)”crai” é amanhã e sempre; mas o dia depois de amanhã é pescrai e o dia depois ainda é pescrille...) (CE, ed.it.,p. 184)

 

Como vimos, constantes e variantes compõem uma língua: dialetos, falares regionais, gírias, enfim, registros lingüísticos de diversos grupos sociais se definem, em contraposição a uma “norma”, pelo uso coloquial e popular, dentro da tradição sociolingüística de cada cultura.

Neste sistema, cada variante traz consigo um índice sócio-cultural. Portanto, é importante ressaltar, por exemplo, o problema da tradução de provérbios, ditos populares e regionalismos. Tais elementos da comunicação podem ser analisados como textos completos que, de forma sintética, transmitem mensagens mais amplas. Possuem estrutura sintática recorrente, constantemente memorizada pelo falante, que pode reconhecê-los, como figuras idiomáticas, e associá-los imediatamente às mensagens que veiculam: “Si sarebbe acconciato, sotto la spinta dei nipoti,(...), a non “mettermi i bastoni nelle ruote” = colocar uma trava nas rodas > ( “Teria se resignado, sob a influência dos sobrinhos(...), a “não me criar obstáculos”) (CE, ed it. p. 54)

As expressões em questão são típicas de cada código lingüístico, embora possam, muitas vezes, ser comuns a outros códigos. Fazem referência a elementos estreitamente ligados à cultura de origem, a certas realidades e experiências da civilização que as produziu ou adaptou. Por isto, não é sempre possível alcançar-se os mesmos valores na língua de chegada (L2) através de uma tradução literal.

Para que não se percam conotações fundamentais, devem ser utilizadas, diante das dificuldades de transposição de um código a outro, notas de pé-de-página ou esclarecimentos no interior do texto de L2:

 

...in certe ore quasi fisse, il mattino presto e verso sera, si aprivano furtivamente le finestrelle delle case, e dallo spiraglio apparivano le mani rugose delle vecchie, che lasciavano piovere, in mezzo alla strada, il contenuto dei vasi. Erano le ore della “jettatura. (...a horas certas, de manhã bem cedo e ao anoitecer, as janelas das casas eram abertas furtivamente e através da abertura apareciam as mãos enrugadas das velhas, que deixavam cair no meio da rua o conteúdo dos vasos. Eram as horas da “jettatura” (CE, ed. it. p. 84)

 

Na tradução analisada aqui, o tradutor limitou-se a colocar em nota que Jettatura é o ato de lançar alguma coisa fora, contudo, neste contexto, significa lançar fora os excrementos e a urina dos urinóis. Em outros contextos, significa também, lançar feitiços.

Na tradução, portanto, levando-se em conta determinados índices, não fazemos somente a trans-codificação de um sistema (L1) a outro (L2). Em alguns casos, torna-se necessária, com freqüência, uma tradução interna, de forma a alcançar-se equivalências que atendam às diferentes “visões de mundo”, dentro de um mesmo espaço geográfico, muitas vezes dentro de um mesmo país. Através da análise dos elementos extra-textuais, a tradução mostrará elementos da realidade traduzida, de forma maleável, criativa, mas sobretudo, autêntica.

Entre os inúmeros elementos da realidade, a linguagem das cores merece sempre muita reflexão. O relativismo cultural, que caracteriza cada língua, nos leva a pensar que cada sistema social represente de modo próprio o universo cromático3. Assim, cada língua assume uma particular modalidade para perceber e, em conseqüência, representar este universo, em suas inúmeras gradações, sendo que ao falarmos em cores, devemos estar atentos para o fato que muitos elementos, tais como substantivos, advérbios, ou pronomes, podem ser responsáveis pela “cor local”.

Através da análise dos fatos empíricos, é possível chegar-se a associações simbólicas bem interessantes, não só no campo da criação literária, mas na realidade quotidiana.

Como sabemos, a dimensão do uso simbólico das cores, em sincronia e diacronia, não está sempre necessariamente ligada à realidade cromática subjetiva, ou seja, individual. Existem universais cromáticos, ao lado de escolhas pessoais de uso, ligadas às experiências de cada indivíduo. Levi utiliza predominantemente as cores: branco (dos ossos), amarelo (da malária) e negro (do luto e das moscas).

Portanto, em Levi, detalhes específicos são ressaltados e organizados em campos semânticos recorrentes, como os que definem o homem, a terra, os animais, a aridez do solo e a dureza das pedras. Passaremos então a demonstrar brevemente, alguns resultados de nossa análise crítica da tradução de alguns destes aspectos:

Neste processo de re-criação do real, tornam-se núcleos fundamentais de significação, personificados, ou seja, agindo como personagens - o vento, o sol, a lua e as nuvens - elementos da natureza em geral:

“Mi risvegliò il sole alto...” (CE, ed.it.,p.224) = Acordou-me o sol alto >

“O sol já estava bastante alto quando despertei...” (CE, ed trad., p. 298)

Comentário: A tradução omitiu a personificação do elemento sol, anulando, assim, o efeito desejado pelo escritor.

Trabalhando aspectos do processo vida/morte, Levi descreve em detalhes cenas de visitação a doentes de malária, principalmente crianças:

 

Si, le mosche gli passeggiavano sugli occhi, e quelli parevano non le sentissero. Era il tracoma(...)e allora soltanto distinsi le parole che quelli gridavano ormai in coro: “(...)dammi ‘ u chini! (...), dammi il chinino! (CE, ed.it.,p.76-77) >

É isso mesmo, as moscas passeavam sobre seus olhos e elas davam a impressão de nem as sentirem. Era o tracoma(...)e somente então distingui as palavras que já gritavam em coro.(...), dê-me quinino! (...)dê-me quinino! (CE, ed. trad.,p. 104-105)

 

Comentário: Um dos aspectos que Levi mais valoriza em sua narrativa do sul italiano, é a presença do dialeto local, que ele procura sempre destacar, como elemento de caracterização ambiental, como podemos observar no texto original. Portanto, consideramos que este contraste língua-dialeto deveria ter sido mantido no texto traduzido, o que poderia ser feito, sem maiores dificuldades, seguindo o artifício escolhido pelo escritor ou valendo-se, simplesmente, de uma nota de pé-de-página.

Contrastes ambientais representam contrastes sociais através de signos específicos, tais como a aridez contrapondo-se à vegetação, aspectos da natureza, que são símbolo da própria vida do homem meridional:

 

Il colle si alzava, come sempre, con le sue lente ondulazioni e le sue fratture improvise(...)ma la terra, che avevo sempre veduta grigia e giallastra, era ora tutta verde, d’un verde innaturale e imprevedibile(...)aveva qui qualche cosa di artificioso, di violento; suonava falso, come il rossetto sul viso bruciato dal sole di una contadina(...)Sulle argille bianche, le piccole chiazze di verde, sparse qua e là, brillavano al sole ancora piú intense e piú strane, come delle grida. (CE, ed.it.p.224-225) >

A colina elevava-se como sempre, com suas encostas suaves e suas depressões imprevistas(...)Mas a terra que eu conhecera, cinzenta e amarelada, estava agora inteiramente verde, de um verde artificial e imprevisível.(...) tinha aqui algo de artificial, de violento; ela soava falsa, como o ruge no rosto queimado pelo sol de uma camponesa.(...)Sobre as argilas brancas, as manchinhas verdes, espelhadas aqui e ali, brilhavam ao sol ainda mais intensas e estranhas, como se fossem gritos. (CE, ed.trad., p. 298-299)

 

Comentário: A nosso ver, a tradução não acompanhou devidamente a intenção poética do original, no que se refere às seguintes escolhas:

lente ondulazioni (lentas ondulações) > encostas suaves

fratture improvvise (fraturas imprevistas) > depressões imprevistas

innaturale (inatural) > artificial

come delle grida (como gritos) > como se fossem gritos

Não só as cores, mas adjetivos em geral, em um jogo de analogias e oposições, enfatizam detalhes que se tornam símbolos da convivência natural com a morte e da presença do arcaico no presente, dissimulados pelo caráter muitas vezes homogêneo e subterrâneo do sul italiano.

 

Ne conoscevo ormai molti, di questi contadini di Gagliano, che a prima volta parevano tutti uguali, piccoli, bruciati dal sole, con gli occhi neri che non brillano, e non sembra che guardino, come finestre vuote di una stanza buia. (CE, ed.it., p.70)

Agora já conhecia muitos desses camponeses de Gagliano, à primeira vista todos parecidos, pequenos, queimados pelo sol, com olhos negros que não brilham e não parecem olhar, como janelas vazias de um cômodo escuro. (CE, ed. trad., p. 96)

 

Comentário: O sentido original foi modificado, pela mudança na estrutura frasal:

che a prima volta parevano tutti uguali (que à primeira vista pareciam todos iguais) > à primeira vista todos parecidos

Algumas vezes, o tradutor, modificando a estrutura e inserindo palavras, acaba por trair a intenção do autor e descaracterizar a cor local, ou seja, os dados ambientais:

“Gli occhi aveva nerissimi, come i capelli(...)” (Os olhos, os tinha negros como os cabelos” ) (CE, ed it., p. 47) > “Os olhos como os cabelos eram tão negros quanto as asas da graúna(...)” (CE, ed. trad., p. 67)

Da mesma forma, algumas figuras de linguagem e efeitos poético-pictóricos não foram mantidas pelo tradutor, o que anulou mais uma vez, na tradução, a intenção de Levi de representar a poesia do local, ao lado de um estado de apatia e estagnação ambiental:

 

In quest’ ozio del sentimento, carico di parole senza risposta, in questa solitaria noia zodiacale(...) (Neste ócio do sentimento, cheio de palavras sem resposta, neste solitário tédio zodiacal(...)” (CE, ed. it., p. 139) > Nesse vazio de sentimentos, cheio de perguntas sem respostas, nesse solitário tédio zodiacal(...) (CE, ed trad., p. 186)

Questa sconfinata distesa monotona e ondulata, la si coltiva(...)a grano (Nessa infinita extensão, monótona e ondulada, lá se cultiva (...) o trigo) (CE, ed.it., p. 148) >

Nessa extensão imensa, monótona e esburacada, cultiva-se(...) o trigo” (CE,ed.trad., p. 198)

Nascondevano agli sguardi il resto del paese, che, costruito sulla cresta di um’onda di terra(...) (CE, ed.it., p. 95) > Escondiam dos olhares o resto da aldeia que, construída sobre o cimo de um morro(...) (CE, ed. trad., p. 130)

 

Outros dados específicos da convivência de Levi com o espaço narrado não receberam, a nosso ver, o devido tratamento, pois perderam na transposição, o efeito de solidariedade que o autor demonstrava pela gente e pelo lugar, aos quais ele costumava referir-se como minha terra e minha gente, apesar de haver nascido no Norte:

 

La morte era nella casa: amavo quei contadini, sentivo il dolore e l’umiliazione della mia impotenza. (CE, ed. it., p. 198) > A morte estava presente naquela casa; gostava daqueles camponeses, sentia a dor e a humilhação da minha impotência. (CE, ed. trad., p. 264)

Di qui la impossibilità, fra i politici e i miei contadini, di intendere e di essere intesi. (CE, ed. it., p. 219) > Daí a impossibilidade de que os meus políticos e meus camponeses pudessem ter uma linguagem comum. (CE, ed. trad., p. 292)

 

Um dos aspectos mais observados e descritos por Levi é aquele que se refere à magia natural do lugar, com suas crendices, tais como a presença constante dos espíritos e dos duendes. Algumas vezes, o tradutor não soube, a nosso ver, interpretar este elemento: Barone, o cão de Levi, sendo comparado a um duende.

 

Soltanto Barone correva lieto all’aperto, nell’acqua, come un folletto, annusando gli odori della terra bagnata. (CE, ed. it., p. 165) > Somente Barone corria alegre ao ar livre , na água, como um doidinho, farejando ao perfumes da terra molhada. (CE, ed trad., p. 221)

 

Outros exemplos poderiam ser citados, com relação a possíveis soluções, para determinados aspectos da obra traduzida. Contudo, devemos acrescentar que o trabalho realizado pelo tradutor não deixou muito a criticar quanto a erros propriamente ditos, a não ser por alguns pequenos deslizes, tais como os que aqui foram citados, que dependem de uma melhor interpretação e maior afinidade com o contexto narrado.

Este breve trabalho tem como objetivo apenas demonstrar mais uma vez a delicadeza que envolve sempre o trabalho de tradução, principalmente quando desejamos manter o amor do que é vivenciado e a poesia do que é narrado.

 

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

 

LEVI, Carlo. Cristo si è fermato a Eboli. Torino : Einaudi, 1945

LEVI, Carlo. Cristo parou em Eboli. Tradução de Wilma Freitas Ronald de Carvalho. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1986.

ARCAINI, Enrico. Analisi linguistica e traduzione. Bologna : Patron, 1991.