O LUGAR DA LINGÜÍSTICA NA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS DE CHARLES SANDERS PEIRCE

Claudio Manoel de Carvalho Correia (UERJ)

1- INTRODUÇÃO

No decorrer de seu percurso científico, Charles Sanders Peirce concluiu que qualquer ciência pode ser entendida em termos da rede de relações que mantém com outras ciências. O que Peirce na verdade postulava era que as ciências se apresentavam e existiam em relações de interdependência. Assim, uma classificação lógica e sistemática poderia descrever os princípios das relações de interdependência entre as diversas ciências.

Essa classificação das ciências proposta por Peirce visava uma maior compreensão das ciências e das relações que mantêm entre si, contribuindo, assim, para o entendimento dos processos pelos quais determinadas ciências fornecem princípios e fundamentos para outras com as quais mantêm relações. Tais descrições demonstram, em caráter lógico, o processo através do qual as ciências abstratas funcionam como fundamento para as menos abstratas, e descreve as relações entre as ciências mais concretas (ciências empíricas) com as ciências mais abstratas.

Nesse texto, observamos a classificação das ciências no sistema lógico das ciências, segundo Charles Sanders Peirce, e as possíveis contribuições que essa classificação, descrevendo os níveis de interdependência de princípios entre as ciências, presta às Ciências Especiais, como no caso da Lingüística, e demonstram o lugar que essa ciência ocupa no seu sistema das ciências.

Os estudos desenvolvidos junto ao GEP e ao Prof. Dr. Jaime Nubiola buscaram uma fundamentação teórica mais profunda no pensamento de Peirce. Esse texto é parte dos resultados destes estudos cujas pesquisas caminharam em direção à análise da classificação natural das ciências de Charles Sanders Peirce que demonstra, em caráter lógico, os processos de interrelação de princípios entre as ciências e observamos a forma como Peirce entendia e classificava a Lingüística em seu sistema.

 

2- OBSERVAÇÕES SOBRE O SISTEMA LÓGICO

DAS CIÊNCIAS DE CHARLES SANDERS PEIRCE

O objetivo primordial de Peirce estava centrado no desenvolvimento de uma classificação lógica e sistemática das ciências. Seu sistema é um reflexo do que entendia como a natureza da ciência, cujas bases estão em um conceito mais abrangente de ciência, não restrito apenas às ciências empíricas. Nessa perspectiva, o conceito de ciência é entendido como qualquer tentativa de sistematização do conhecimento. Peirce incluiu em seu conceito não apenas as ciências mais empíricas como a Física ou Química, mas, também, de forma inédita, as chamadas ciências humanas e sociais como a Psicologia, Antropologia e a Lingüística (ciência objeto desse estudo). Seu sistema lógico-científico divide-se, de início, em dois ramos primordiais: as Ciências Teórica e as Ciências Práticas.

Nesse sistema, os ramos estão divididos em Ciências da Descoberta, Ciências da Revisão e Ciências Práticas. A divisão em ramos na perspectiva de Peirce, corresponde ao propósito da ciência. Como observou Liszka (1996, p.3):

The divison in terms of branches corresponds to the purpose of the science (CP 1.238), so that theoretical sciences aim at the discovery of knowledge, whereas the goal of the sciences of review is the organization of the sciences and the practical ones have as their goal the application of knowledge.

No sistema das ciências, segundo Peirce, as Ciências Teóricas objetivam a descoberta do conhecimento, as Ciências da Revisão visam à organização das ciências, e as Ciências Práticas, a aplicação do conhecimento.

Para Peirce, todo conhecimento nasce da observação de um fenômeno. Esse processo de classificação e subdivisão das ciências é utilizado porque todo processo de observação de um determinado fenômeno é o único caminho e meio de alcançar o propósito e objetivo de uma dada ciência.

Como conseqüência desse princípio, as Ciências da Descoberta são subdivididas em três classes: A Matemática, a Filosofia, e as Ciências Empíricas.

Para Peirce, a terceira classe de ciências compreende o que é usualmente chamado de Ciências Empíricas. Essas ciências preocupam-se em observar o que é de fato verdadeiro aos pesquisadores que as estudam. Essa classe de ciências usa um tipo especial de observação que Peirce intitulou como Idioscopia. Em diversos manuscritos chamou essas ciências de Ciências Idioscópicas.

No sistema classificatório, as Ciências Empíricas estão divididas em duas subclasses: as Ciências Físicas (physical) e as Ciências Psíquicas (psychical). Na verdade, essa distinção entre ciências físicas e psíquicas corresponde à divisão entre o que conhecemos na atualidade como Ciências Naturais e Ciências Humanas.

As Ciências Empíricas ou Idioscópicas estão divididas nas seguintes subclasses: nível nomological (nomológico), caracterizado como o estudo das leis gerais; nível classificatory (classificatório), estudo dos tipos gerais de fenômenos, sua formação e crescimento; nível descriptive (descritivo), que busca explicar fenômenos particulares e individuais.

No que concerne às Ciências Humanas, objeto de estudo desse texto, a Psicologia Geral é caracterizada por Peirce como Ciência Nomológica, na medida em que procura descobrir e revelar as leis gerais da mente. A Lingüística e a Etnologia são caracterizadas como Ciências Classificatórias, porque objetivam o estudo de classes e tipos de fenômenos psicológicos e são dependentes, no que diz respeito aos princípios e fundamentos das leis gerais nomológicas da Psicologia Geral. Como Ciência Descritiva, encontramos a História, que é, na verdade, o último nível da ordem das Ciências Especiais. Nesse último nível, Peirce também inclui a Biografia e a Crítica.

A relação de dependência entre as ciências foi definida pelo princípio baseado no sistema científico de Comte:

... the sciences may be arranged in a series with reference to the abstractness of their objects; and that each science draws regulating principles from those superior to it abstractness, while drawing data for its inductions from the sciences inferior to it in abstractness. So far as the sciences can be arranged in such a scale, these relationships must hold good. (Peirce in Liska, 1996, p.7)

Para a construção de seu sistema, Peirce baseia-se no princípio estabelecido por Comte, no qual uma ciência é dependente de outra ciência por princípios e fundamentos teóricos. O que devemos observar, no entanto, é que entre as três classes citadas, a Matemática é ciência mais provedora de princípios e fundamentos, por ser, nos termos de Peirce, a mais abstrata das ciências, ocupando o topo da escala de valores.

“Is the most abstract of all the sciences” (CP 3.428). It “meddles with every other science without exception”. “There is no science whatever to with is not attached an application off mathematics is the only science which can be said to stand in no need of philosophy...” (Peirce in Liszka, 1996, p.7)

Assim, a Matemática é provedora de fundamentos abstratos e gerais para as outras ciências e a Filosofia é provedora de princípios e fundamentos para as chamadas Ciências Empíricas. As Ciências Nomológicas devem ser provedoras de princípios para as Ciências Classificatórias, que por sua vez, devem ser provedoras de princípios para as Ciências Descritivas. No que concerne às Ciências Humanas, Peirce postula que a Lingüística, como Ciência Classificatória, é dependente das leis gerais e princípios fundamentais das ciências classificadas como nomológicas.

 

3- ANÁLISE DAS CIÊNCIAS ESPECIAIS OU IDIOSCÓPICAS NO SISTEMA DAS CIÊNCIAS

As Ciências Idioscópicas estão divididas de forma paralela dependendo da natureza dos objetos investigados. Há as Ciências Físicas, que estudam a natureza material do fenômeno, e as Ciências Psíquicas, que estudam a mente e suas produções. Kent (1987, p.132) observa que Peirce parece ter concluído que as Ciências Psíquicas dependem das Ciências Físicas, mas essa dependência não envolve um apelo por princípios e fundamentos. A forma como as ciências se posicionam paralelamente no sistema, é definida por seu modo de investigação e por diferentes tipos de treinamento.

Devemos observar que as Ciências Especiais empregam princípios da Lógica. Nessa perspectiva, as ciências mais próximas possuem dependência mais direta, enquanto as mais distantes no sistema da classificação recebem princípios lógicos mediados pela ciência empírica anterior.

Segundo Kent (1987, p.185), a tarefa das Ciências Especiais é descobrir fenômenos não previamente conhecidos para subjugar esse fenômeno à crítica, e, dessa forma, criar teorias que são geralmente plausíveis. É no centro da divisão paralela entre as ciências empíricas que ocorrem as relações de princípio e dependência que caracterizam o sistema peirceano.

As Ciências Nomológicas observam os elementos que são intrínsecos ao universo sob pesquisa. No sistema classificatório de Peirce, o universo psíquico usa princípios da Metafísica, da Lógica e da Fenomenologia, e estuda as leis dos fenômenos mentais. Sob a Psíquica Nomológica, está a Psicologia Geral, a Sociologia Geral e a Economia Geral.

Posterior às ciências das leis gerais, estão as ciências das classes e dos tipos, isto é, as Ciências Classificatórias. Essas ciências visam ordenar o fenômeno e estudar as classes resultantes. As leis que são descobertas pelas Ciências Nomológicas são necessárias para explicar as propriedades de uma determinada classe. Peirce classificou a Psicologia Especial, a Lingüística e a Etnologia como as ciências Psíquicas Classificatórias.

Na terceira e última divisão das Ciências Especiais, encontramos as Ciências Descritivas ou Explicatórias, que descrevem em detalhes e explicam as singularidades através das leis e princípios das Ciências Nomológicas e Classificatórias.

Os seguintes esquemas descrevem a forma como os três níveis das Ciências Especiais se interrelacionam. As setas entre os níveis descrevem a direção do processo de fomento de princípios e fundamentos das ciências mais abstratas para as mais concretas:

 

 

CIÊNCIAS ESPECIAIS

(CIÊNCIAS IDIOSCÓPICAS)

 

 

1- NÍVEL NOMOLÓGICO

Estudo das leis gerais

 

 

2- NÍVEL CLASSIFICATÓRIO

Estudo dos tipos gerais de fenômenos, sua formação e crescimento

 

 

3- NÍVEL DESCRITIVO

Explicação de tipos de fenômenos particulares e individuais

 

 

 

CIÊNCIAS PSÍQUICAS

(CIÊNCIAS HUMANAS)

 

PSÍQUICO NOMOLÓGICO

Psicologia Geral, Sociologia Geral e Economia Geral

(estudo das leis gerais)

 

 

PSÍQUICO CLASSIFICATÓRIO

Psicologia Especial, Lingüística e Etnologia

(estudam os fenômenos e são dependentes das leis do nível nomológico)

 

 

PSÍQUICO DESCRITICO

 

História, Biografia e Crítica

(descrevem em detalhes e explicam as singularidades através dos princípios nomológicos e classificatórios)

 

 

4- O LUGAR DA LINGÜÍSTICA NA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS PSÍQUICAS

Visando a um estudo da forma como Peirce entendia a Lingüística em seu sistema das ciências, foram estudados partes dos manuscritos de Peirce publicadas por Kent (1987, p.91- 121) em seu livro Logic and the classification of the sciences. Observamos como e quando, em manuscritos datados de 1866 à 1911, Peirce utilizou o termo Lingüística dentro de sua classificação natural das ciências. Como observou Kent (1987) em seu prefácio, quase todas as pesquisas e estudos realizados por Peirce dentro da classificação das ciências foi escrito entre 1866 e 1911.

A classificação peirceana das ciências está baseada em relações lógicas entre os elementos que compõem seu sistema. Podemos concluir, segundo Kent (1987), que Peirce pretendia mostrar os efeitos concebíveis da ciência, em outras palavras para traçar seu significado pragmático.

A partir da classificação peirceana das ciências, fundamentada, sobretudo, em sua Lógica das Ciências, podemos analisar algumas questões que dizem respeito à Lingüística no sistema lógico-científico.

Podemos analisar, a partir dos estudos desenvolvidos sobre os manuscritos de Peirce, o funcionamento dessa ciência no centro da classificação lógica, observando a forma como recebe princípios dos níveis científicos mais abstratos.

Devemos, de início, observar por um prisma histórico que, desde os seus primórdios, no início do século XX, com a primeira publicação do Curso de Lingüística de Geral, de Ferdinand de Saussure (1916), a pesquisa na área da Lingüística, está passando por um processo de desenvolvimento e expansão de seu campo de atividade, como está ocorrendo em diversos campos, principalmente das ciências humanas e sociais.

Essa diversificação da Lingüística em subáreas demonstra que a Lingüística não se resume mais aos estudos que lhe deram origem, ou seja, ao Estruturalismo. Na atualidade, passa por um processo de diversificação tanto em nível teórico quanto em nível de aplicação de seus estudos que, obviamente, levam a ciência da linguagem a se relacionar de forma interdisciplinar com outras áreas das ciências humanas e sociais. Nesse sentido, como propõe Santaella (1993, p.161):

O mapa das ciências fornecido por Peirce, se atualizado, conforme ele próprio previa, pode nos levar a enxergar a razoabilidade desse crescimento, saindo da confusão, sem perder a riqueza, preservando a complexidade.

Como já foi observado, temos na estrutura da classificação lógica proposta por Peirce: nas ciências nomológicas (primeira divisão) encontramos, a Psicologia Geral, a Sociologia Geral e a Economia; nas ciências classificatórias (segunda divisão), a Psicologia Especial, Lingüística e Etnologia; e nas ciências descritivas (terceira divisão), encontramos a História e a Crítica da Arte.

A Lingüística, que sempre se caracterizou como classificatória (dentro do prisma científico peirceano) com seus estudos histórico-comparativos (diacrônicos), a partir da primeira publicação do Curso de Lingüística Geral, de Ferdinand de Saussure (1916), começou a apresentar pesquisas e estudos de cunho profundamente teóricos.

Na medida em que a Lingüística, a partir de Saussure (1916), hierarquicamente emerge ao nível de ciência nomológica, ou seja, teórica, ela passa a ser fornecedora de princípios e fundamentos para outras ciências humanas e sociais, no dizer de Peirce, ciências psíquicas. Sem dúvida, foi a partir da publicação do Curso de Lingüística Geral e de suas idéias, que os conceitos estruturalistas da Lingüística passaram a influenciar e revolucionar diversas ciências humanas e sociais.

 

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Charles Sanders Peirce concebeu, de forma distinta das perspectivas da História e Filosofia da Ciência, uma Lógica da Ciência na qual as diversas ciências estão ligadas entre si por relações de interdependência, completando-se mutuamente, em um processo evolutivo.

Podemos concluir, assim, que a classificação lógica das ciências, segundo Charles Sanders Peirce, funciona como um sistema para a observação dos processos de complexidade e para análise das relações entre princípios e fundamentos das diversas ciências, no nosso caso, a Lingüística, a ciência da linguagem humana.

O que devemos observar, de início, é que a proposta de uma classificação lógica das ciências como um todo, se caracteriza como um sistema, uma rede de relações que, sobretudo, permite a análise das formas como se relacionam as diversas áreas e subáreas da ciência. Essa classificação está apta a funcionar como uma fundação fenomenológica e epistemológica para toda e qualquer ciência.

Todas as relações lógicas entre princípios e fundamentos que fez Peirce desenvolver seu sistema classificatório descrevem os relacionamentos internos entre a Matemática, a Filosofia, e as chamadas Ciências Especiais e, conseqüentemente, as relações internas e lógicas entre as próprias ciências especiais.

Podemos, dessa forma, perceber e visualizar as relações e trocas existentes entre as diferentes ciências, e, assim, melhor compreender os fundamentos que as ciências mais abstratas fornecem para o desenvolvimento histórico e material das diversas ciências especiais, entre elas, a Lingüística, ciência objeto desse trabalho. Como definiu Peirce (1980, p.139):

É obviamente importante que nossa noção de ciência seja uma noção de ciência como coisa viva e não uma mera definição abstrata. Não nos esqueçamos de que a ciência é uma busca realizada por homens vivos e sua característica mais marcante é que quando ela é genuína está permanentemente em um estado de metabolismo e crescimento.

 

 

6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORREIA, Claudio Manoel de Carvalho. O Lugar da Lingüística na Classificação das Ciências de Charles Sanders Peirce. Pamplona : Universidad de Navarra, Relatório de Pesquisa, 2000.

KENT, Beverley. Charles S. Peirce: Logic and the Classification of the sciences. Kingston and Montreal : McGill-Queen´s University Press, 1987.

LISZKA, James Jakób. A general introduction to the semeiotic of Charles Sanders Peirce. Bloomington and Indianapolis : Indiana University Press, 1996.

PEIRCE, Charles Sanders. Escritos Coligidos. In: Os Pensadores. 2. ed. São Paulo : Abril Cultural, 1980.

SANTAELLA, Lucia. A Assinatura das Coisas: Peirce e a Literatura. Rio de Janeiro : Imago, 1992.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística general. Madrid : Alianza Editorial,1983.