A FLEXÃO EM MONTEIRO LOBATO

UMA OUSADIA LINGÜÍSTICA

Maria Teresa Gonçalves Pereira (UERJ)

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS: REVENDO TEORIAS

Antes de entrarmos propriamente no assunto mencionado, cabe algumas observações que visam a dirimir possíveis contradições.

De acordo com J. Mattoso Câmara Jr., os sufixos, em português, podem ser derivacionais ou lexicais, servindo para a formação de palavras por derivação, ou flexionais, igualmente chamados de desinências.

Celso Cunha denomina os morfemas gramaticais de morfemas derivacionais, correspondendo aos afixos (prefixos e sufixos) e as desinências, morfemas flexionais ou flexivos.

Tanto um quanto outro, no entanto, concordam em que as desinências servem para indicar gênero e número dos nomes (estendendo-se a certos pronomes) e número, pessoa, tempo e modo dos verbos.

Said Ali divide os afixos em prefixos, sufixos, terminações e desinências; no que se relaciona a gênero e número dos nomes, utiliza terminações e, quando trata de pessoa, número, tempo e modo dos verbos chama de desinências.

Rocha Lima trata os afixos de elementos de derivação e os divide em prefixos e sufixos, enquanto desinências são elementos indicativos das flexões. Divide-as em nominais e verbais, incluindo entre as nominais as que expressam as categorias gramaticais de gênero e número.

Há bastantes controvérsias entre os autores quanto à diferença entre sufixo e desinência, dos quais expusemos rapidamente apenas algumas idéias.

Pelo bom senso da colocação e, principalmente, pelas características próprias que os fenômenos lingüísticos assumem em Monteiro Lobato, trataremos a flexão através do gênero e número dos nomes, firmando nossa posição segundo o pensamento de Celso Cunha.

E, no que consiste a flexão? Aproveitando algumas idéias de Mattoso Câmara Jr. naquilo que está em conformidade com nosso pensamento, poderíamos dizer que flexão é o processo de “flectir”, isto é, fazer variar um vocábulo para nele expressar categorias gramaticais, no caso, as de gênero e número. Acrescenta ainda que o termo gramatical “flexão” é a tradução do alemão Biegung “flexão, curvatura”, introduzido por Schlegel, para indicar que um dado vocábulo “se dobra” a novos empregos.

Se, na derivação, como já vimos, não há um quadro regular, coerente e preciso, isto não vai acontecer na flexão, onde há obrigatoriedade e sistematização. É imposta pela própria natureza da frase (naturalis segundo Varrão). Os morfemas flexionais se acham concatenados em paradigmas coesos e com pequena margem de variação. Outro traço característico é a concordância dos determinantes, modificadores, a quaisquer tipos de núcleos.

É uma “relação fechada”, segundo Halliday que vigora entre meninos ou menina e o nome básico singular menino. De acordo com suas palavras, “a lista dos termos é exaustiva”, cada termo exclui os demais, não estando na vontade do usuário da língua introduzir um termo novo no quadro existente porque é preciso se ater às regras da gramática.

Os morfemas flexionais não irão alterar a classe da palavra.

Em português, o mecanismo gramatical assenta fundamentalmente no morfema flexivo, ou seja, nas desinências.

Destacaremos as flexões de gênero e número em Lobato visto que, sem abandonar as desinências mais comuns nas formações existentes, as aplica a radicais de vocábulos que normalmente não as comportariam, resultando em combinações pouco ortodoxas, mas com forte apelo expressivo.

Em muitas situações, na linguagem coloquial distensa, as regras de formação de feminino e de plural não atendem ao que queremos expressar, precisando buscar substituições que, mesmo dentro do sistema lingüístico, soam diferentes, se bem que adequadas, ao nosso interlocutor.

A flexão, principalmente a de gênero, em Lobato resulta “colorida”, com a utilização de um material incrivelmente simplista, mas com resultados e efeitos surpreendentes.

 

2. MANIFESTAÇÕES DA FLEXÃO EM MONTEIRO LOBATO

 

2.1 - de gênero

 

O gênero, que condiciona uma oposição entre forma masculina e forma feminina, tem a desinência a (átona final) como marca do feminino. Assim, o masculino se caracteriza pela ausência de marca do feminino.

A respeito de que em latim havia três gêneros: masculino, feminino e neutro e que o português só conservou os dois primeiros, podendo ser o gênero natural e gramatical, ensina Darmesteter: “Esta distinção de gêneros não corresponde a nenhuma idéia lógica. Nos idiomas românicos, os gêneros não servem mais habitualmente senão de quadros em que a língua distribui a totalidade de seus substantivos, deixando-se guiar mais ou menos obscuramente por analogias exteriores, terminações, sufixos, e algumas vezes, por motivos contraditórios. Em limitado número de casos, para os nomes de pessoas e algumas vozes de animais, o gênero é determinado pela idéia de sexo, e isso mesmo com desprezo da etimologia”

Não nos é difícil perceber que a flexão de gênero é incoerente e confusamente tratada nas nossas gramáticas.

Há uma incompreensão semântica quanto à sua natureza, costumando ser associada intimamente ao sexo dos seres. A primeira é que o gênero abarca todos os nomes substantivos portugueses, quer se refiram a animais, providos de sexo, quer designem apenas coisas. Mesmo em substantivos referentes a animais ou pessoas há discrepância entre gênero e sexo. Na realidade o gênero é uma distribuição em classes mórficas para os nomes.

Após as colocações teóricas acima, observaremos a utilização do gênero através de alguns exemplos das obras de Lobato.

 

a - através de nomes próprios masculinos aos quais foi acrescida a desinência a ou houve a simples troca do o pelo a. Evidentemente que a carga semântica do nome histórico ou literário motivou as ocorrências, com as adaptações concernentes à flexão, indicada pelo “sexo” do referente.

 

- Vai ver, Visconde, que eu ainda acabo a Rollona deste reino ... (História, p. 167)

... dizendo que não é tia Nastácia nenhuma, e sim a giganta Frestona. (D. Quixote, p. 154)

... eu já virei uma Floriana Peixota: confio desconfiando ... (Picapau, p. 14)

... pintou o retrato dele, da Pégasa e dos pegasozinhos, naquela fita ... (Chave, p. 163)

... tia Nastácia com um tridente, feito Netuna ... (Poço, p. 234)

 

b - através de nomes normalmente masculinos quanto ao aspecto mórfico mas que, eventualmente, dependendo da situação, podem funcionar como femininos, porém, no tocante ao sentido. Lobato introduziu a desinência a, reforçando o feminino também quanto à forma.

 

Quer dizer que vocês mulheres são caramujas. (História, p. 85)

Mas foi preciso que surgisse uma “gênia” para fazer essa modificação! (Invenções, p. 58)

E então me veio a curiosidade de espiar o cadáver sem cabeça da monstra. (Hércules I, p. 99)

Realmente davam idéias de centauras, isto é, de formarem um só corpo com os cavalos. (Hércules II, p. 138)

- Este peixe está fisgado! - murmurou Emília consigo, afastando-se. Resta agora a “peixa” ... (Picapau, p. 135)

 

Talvez devessem constar deste caso dois exemplos que apresentam uma pequena variação: aqui os nomes comuns estão sob a forma feminina, embora possam, por processos que agora não são relevantes, designar seres masculinos. Há a presença da desinência o para dar mais ênfase ao elemento masculino. O determinante, inclusive, encontra-se no masculino.

 

O onço agradou-se daquele entusiasmo. (Caçadas, p. 37)

Um aranho de carlota! ... O assombro da pobre gente não tinha fim. (Hércules II, p. 280)

Era seguir na direção deles, que fatalmente dariam com a bicha. (Caçadas, p. 11) (Ocorre a inversão do processo)

 

c - através de palavras masculinas que exprimem um conceito e que foram utilizadas de maneira que a sua carga semântica passasse para os seres a que se referissem. Igualmente observamos a presença da desinência a marcando mais fortemente essa tendência.

 

Isto é, Advérbia só para mim, porque só a mim que ela modifica. Para os outros é uma Substantiva que faz b bolinhos gostosos. (Gramática, p. 69)

Essa “Númera” que só lida com dinheiro é filha da outra, quer ver? (Aritmética, p. 32)

Então Dona Benta é Antônima de tia Nastácia! ... (Gramática, p. 84)

Os mamíferos estão diminuindo de tamanho. Você é mamífera. (Reforma, p. 39)

 

d - através da presença da desinência a em formas que são quase cristalizadas pelo uso do gênero masculino, mas que admitem o feminino, apenas não sendo ele comum. Se é feminino o referente, Lobato as consagra nessa flexão.

 

Olhou e viu que Pantera Branca, a chefa dos Índios Peles-Vermelhas, vinha de pé ... (Peter Pan, p. 53)

... e só depois de muito apertar com a “Timoneira” é que descobriu a marosca. (Geografia, p. 93)

 

Uma forma muito interessante com a marca do feminino nos merece registro especial.

 

Venha ver o “felómeno” que aconteceu com a criançada. Está tudo pernilonga ... (Caçadas, p. 41)

 

Poderíamos incluí-la no segundo caso apresentado se não fosse o sentido de que o termo se reveste. Não significa “o mosquito”, o inseto tão conhecido, mas sim “a qualidade atribuída àqueles que estão com pernas-de-pau”. A desinência a se faz presente no nome adjetivo para concordar com o nome substantivo a que se refere. É um fato bastante expressivo de palavra cuja forma, inclusive na sua estrutura, permite um jogo sutil de sentidos.

Outro caso que aparece com relativa freqüência e nos chama atenção é o emprego do masculino nas ocorrências em que pela própria natureza do contexto, caberia o feminino. Referem-se a situações ou funções devidamente “reconhecidas” como masculinas.

 

O “Rei” Isabel. (Geografia, p. 213) (É título de um capítulo)

Dona Benta, vestida de “lobo-do-mar” e com a luneta de ver ao longe ... (Geografia, p. 33)

... por tia Nastácia, de avental e gorro, como convinha ao “cozinheiro de bordo”. (Geografia, p. 51)

Foi pé antepé à cabina e deu o sinal de SOS, sem que o “Imediato” e o “Capitão” percebessem. (Geografia, p. 93) (Onde o Imediato era Pedrinho e Dona Benta, o Capitão)

 

Observamos que, se nos demais conservou-se a forma no masculino sem quaisquer alterações, no primeiro exemplo, o caso ficou mais expressivo pela colocação de nome próprio feminino ao lado de O e Rei.

 

 

2.2 - de número

 

A flexão de número, que cria o contraste entre forma singular e forma plural, decorre da presença, no plural, da desinência /s/, com que a última sílaba do nome passa a terminar; inclusive, o plural será a forma marcada.

Indica se o ser nomeado é um ou mais de um. A oposição singular/plural abarca todo o conjunto de nomes portugueses. Não só ao que em matemática se chama “quantidades descontínuas” vistas como um indivíduo e sua soma, mas também aos “nomes de massa”, ou “quantidades contínuas” em que falta a conceituação de indivíduos componentes.

Mesmo não sendo tão diversificada quanto a flexão de gênero, a utilização da de número em Lobato se concretiza através de alguns casos que merecem registro.

 

a - plural de nomes próprios usados como comuns; perdem o seu sentido específico passando a portar a designação genérica do substantivo comum, assim como o seu valor, mesmo conservando a maiúscula.

 

... os dois joões se assustaram e fugiram para longe. (Picapau, p. 39) (É evidente que o plural se faz conforme a terminação da palavra e seguindo as regras específicas)

- São meioameios também! - exclamou Emília. Corpo de homem e pernas e pés de bode ... (Hércules I, p. 108) (Meioameio era o nome que Emília havia dado a um centaurinho que ficara amigo deles)

... entre pedras negras de limo, que Lúcia chama as “tias Nastácias do rio”. (Reinações, p. 11)

Vocês ficam sendo os Rabicós celestes ... (Viagem, p. 95)

- Quem sois, ó Adões? Que terra é esta? Falai. (Geografia, p.61)

 

b - plural analógico à maioria das palavras terminadas em s, quando oxítonas.

 

Um monstro com cabeça de porco e “peses” de tartaruga! (Reinações, p. 76) (Ocorrência, aliás, que se dá muitas vezes na linguagem coloquial quando queremos acentuar o ridículo da situação)

 

c - plural corretamente empregado se bem que de uso bastante raro.

 

Cuidados materiais também nenhuns ... (Minotauro, p. 20)

 

d - plural de substantivo composto, criação vocabular de Lobato, respeitando a regra na qual os compostos cujos termos componentes se ligam por preposição, só o primeiro toma a forma de plural.

 

...aqueles “abris-de-lagarto” tinham duração muito curta. (Viagem, p. 8)

Os buracos que estou vendo são, portanto, buracos-de-raiz, e não buracos-de-bicho. (Chave, p. 84)

 

3. CONCLUSÃO

 

Numa leitura mais panorâmica e, por conseguinte, menos atenta, talvez possa concluir que tudo o que falamos no início do nosso estudo, referendado pelos grandes mestres está em desacordo com os exemplos, a garimpagem feita no texto de Monteiro Lobato não valendo para aquelas teorias.

Se isso acontecer, entendemos que inexiste aquela “percepção lingüística” que torna o usuário verdadeiramente íntimo de seu idioma materno, não conseguindo transferir seus conhecimentos, não percebendo a índole da língua, sua essência, a ponto de identificá-la em “alternativas” que o sistema oferece.

Monteiro Lobato, em nenhum momento, afastou-se das “relações fechadas” de que nos fala Halliday e todos os outros gramáticos, filólogos e/ou teóricos, usando palavras ou expressões diferentes. A estrutura manteve-se. Apenas inovou, juntando a radicais que normalmente não as recebem, determinadas terminações (sufixos, desinências, etc.), instaurando um sentido informal, engraçado, mas perfeitamente natural, afinado com a modalidade oral da língua. Poderíamos, tentando uma concretização maior, estabelecer um paralelo com a criança ao iniciar seus primeiros contatos com a língua, antes da escolarização e da cópia dos modelos. Vai fazendo uma série de relações e aproximações com sua realidade imediata, já que não tem acesso às normas vigentes, cria as próprias, baseadas no seu consenso particular de experiências vividas até então em termos lingüísticos.

O emprego baseia-se no geral, nunca no particular. Não são consideradas exceções, “ jeitos” anômalos ou fora do comum.

Não acreditamos, em se tratando da linguagem, em modelos superiores ou inferiores, estes devendo ser isolados, ou sequer discutidos, e aqueles incensados para que a reprodução se faça em série, sem qualquer juízo de valor. Há linguagens diferentes, possibilitando alternativas a serem escolhidas num determinado tempo ou lugar, num determinado contexto.

Para que tal fato ocorra, há necessidade vital de que o manipulador do sistema lingüístico o conheça profunda e totalmente. Monteiro Lobato preenche os dois requisitos. Por isso, pode “ousar”, essa ação revestindo-se de competência. Ao invés de gerar o caos, produz um texto que encanta e envolve não só pelo conteúdo, mas também pela forma.

 

4. BIBLIOGRAFIA

 

ALI, M. Said. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. 6ª ed. São Paulo : Melhoramentos, 1986.

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro : Editora Lucerna. 1999.

CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Estrutura da Língua Portuguesa. 13ª ed. Petrópolis : Editora Vozes, 1983.

CUNHA, Celso. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 1997.

DARMESTETER, Arséne. La vie des mots. Étudiée dans leurs significations. Paris : Librairie Delagrave, 1950.

HALLIDAY, M. A. K. “A Estrutura e Funcionamento da Linguagem”. in: LYONS, John. Novos Horizontes em Lingüística. São Paulo : Cultrix, 1976.

PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. Processos expressivos da obra infantil de Monteiro Lobato. Dissertação de Mestrado. Departamento de Letras PUC/RJ, 1980.

ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 29ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1982.