O DECADENTE COMO UM ARQUIVISTA DOS CLÁSSICOS

Elis Crokidakis Castro (UERJ)

Podemos chamar decadentes alguns homens que viveram do meio para o final do século XIX e tinham como princípio básico a evocação de valores que se filiavam à corrente de pensamento baudelairiana.

Tinham a vida marcada pela artificialidade, pela valorização da arte como única forma de redenção humana, pelo elogio à maquiagem, pelo dandismo, pelos paraísos artificiais, pela embriaguez dos sentidos e por todas a formas de excesso que pudessem ter conhecimento. Buscavam a quintessência de tudo como um ideal.

O decadente, então, buscando esse ideal, reage aos ditames do realismo/naturalismo, procurando viver a vida como se essa fosse imitação da arte e não ao contrário.

Diante disso, a visão clássica de arte é a todo o momento revisitada, na concepção desse homem que acredita que o que é belo é bom. Ou seja, o homem decadente vem, depois de vinte três séculos, dizer o mesmo que diziam os gregos, numa apologia do belo. Percebemos então que é revivificando a arte clássica que o decadente sobrevive à reificação uniformizante do final do séc. XIX, com todas as suas mazelas sociais, econômicas e seu desenvolvimento técnico e científico.

Para sobreviver, o decadente desenvolve técnicas ou formas próprias de levar a vida. Ele é um esteta, um colecionador de peças belas e raras, de objetos de arte de fina sensibilidade para a fruição estética, é um dandy, que tem sua imagem facilmente identificada por suas roupas, e seus hábitos exóticos e excêntricos.

Por ser tão diferente e valorizar o incomum, o decadente não poderia deixar de, também, tentar criar para si um espaço que fosse o reflexo de sua alma. Esse espaço é sua casa, lugar em que ele cria um museu de formas, colecionando os mais diversos objetos de arte, seja ela plástica, literária, botânica e o que existir. Em sua casa, a arte clássica tem grande importância. Nela se encontram desde livros que remontam à Antigüidade até livros contemporâneos que revitalizam os clássicos; dando-lhes nova roupagem ou apenas interpretando-os. Além dos livros, ou melhor, dos textos, outras concepções da antiguidade são retomadas e de certa maneira passam a ser o pano de fundo de muitas questões que somente surgirão com a virada do século XIX para o século XX.

Entendemos que o homem decadente com sua forma de viver e seu texto faz o giro vertiginoso, a transição do antigo para o moderno, sem deixar de lado suas tradições, e mais, até se utilizando delas para ter um melhor entendimento de sua realidade.

No entanto, ao contrário do que muitos supunham, a arte decadente não está estacionada no tempo como uma arte morta, incapaz de interagir com o leitor atual ou com o receptor da obra de arte, ela está em constante movimento, instigando cada vez mais o receptor que dela se aproxima. Não é à toa que esse fato acontece. Muito da arte decadente teve como modelo a arte clássica que é revista ao longo dos séculos, trazendo para o contexto, aqui especificamente decadente, as concepções mais antigas, que são relidas, reapresentadas no momento da modernidade. Ou seja, a modernidade presta tributo ao mundo clássico. Um exemplo claro disso é encontrado no livro Às avessas, considerado a bíblia do movimento decadente, escrito por J-K Huysmans e publicado em 1884. Esse livro traz todos os conflitos, objetivos, angústias e desejos do homem decadente que, na obra, é representada pela personagem des Esseintes, um dandy aos moldes de Baudelaire, que vive no final do século XIX sem conseguir entender o processo de modernização vigente, a crescente reificação do homem e os valores do capitalismo, passando por isso a viver de sonhos em sua torre de Marfim.

Nesses sonhos não são poucas as recordações de seres e coisas que a personagem não conhece pessoalmente e que só visitou através de livros.

Para que o processo onírico ocorra, des Esseintes possui em sua biblioteca uma longa fileira de autores da Antigüidade clássica, gregos e latinos, como Petrônio, Lucano entre outros.

Revisitando as obras antigas, o decadente busca argumentos e forças para sua concepção de arte. Ao valorizar o belo, o estético, se confronta com a realidade do final do século XIX, onde o capitalismo se apresenta como principal sistema econômico, mostrando sua face mais cruel, visível no inchamento das cidades industriais e no grande número de operários vivendo em condições subumanas. O decadente então, ao contrário dos realistas/naturalistas da época, não faz do meio, da rua o seu laboratório de criação, e busca na arte uma forma de reação àquele momento histórico.

Tendo a arte como própria essência da vida, o decadente não apenas se familiariza com a literatura clássica, como passa também a colecionar objetos de arte, principalmente de arte grega e romana, arte esta que forma os dois pilares da civilização e da arte ocidental.

Dessa forma, o decadente garimpa, busca essa arte como quem busca o ar para respirar e, ao encontrá-la, ele a expõe em sua própria casa e a organiza de acordo com sua forma de ver a vida. Assim, o decadente não só preserva a arte clássica, mas também infunde a ela um valor que não corresponderia mais aos tempos modernos. Ora, não podemos deixar de atentar para o fato de que o decadentismo surge como reação ao realismo/naturalismo, o que implica em ir contra toda e qualquer forma de arte que busque apenas na realidade os seus fundamentos, que não comungue com o sentido transcendental das palavras, com seus sentidos outros, com seus símbolos e metáforas mirabolantes.

Seguindo essa linha, podemos dizer que o decadentismo, enquanto corrente literária que teve suas principais representações na arte escrita, busca na arte greco-latina os fundamentos para sua existência, ressuscitando os modelos passados em detrimento dos modelos presentes no final do século passado.

Logo, diante desses conceitos e definições, observamos, na maioria das obras que pertencem ao decadentismo, uma integração de elementos da arte clássica com elementos da arte já considerada moderna, como ocorre, por exemplo, com a reutilização de mitos, personagens, comparações etc.

A título de curiosidade, ilustrando o que dissemos, buscamos no livro Às avessas alguns exemplos. No capítulo III, o narrador nos fala da biblioteca de des Esseintes. Nesse espaço surge então um verdadeiro compêndio de literatura clássica. Começando por Homero e passando por Virgílio faz-se uma minuciosa análise dos autores daqueles tempos, principalmente os do período denominado Decadência Romana. A cada autor é atribuída uma qualidade ou crítica à luz dos conceitos decadentes vigentes, dando preferência a obra de Petrônio, Satyricon que descrevia a vida cotidiana e os costumes de Roma. Outros autores são também citados e comentados, indo a linha temporal dessa biblioteca da Antiguidade Clássica até o surgimento das línguas neolatinas. Também aparece no livro um interessante estudo de filologia demonstrando a evolução da língua latina até o francês do século XIX.

No capítulo V, novamente a referência à Antigüidade vem à tona, desta vez é a pintura de Salomé de Gustave Moreau que é comparada à figura mítica de Helena de Tróia. “...Tal como a Besta monstruosa, indiferente, irresponsável, insensível, a envenenar como Helena antiga, tudo quanto dela se aproxima, tudo quanto vê, tudo quanto ela toca”(AA,p.86). Assim, Salomé é vista como mais que uma figura bíblica pertencendo também às teogonias do oriente.

Entretanto, essa Antigüidade clássica, retomada por Huysmans e outros decadentistas e simbolistas, pode ser representada menos pelos exemplos concretos de obras e textos e mais pela soma de idéias e concepções a respeito da arte. Ou seja, mais pelo ideal estético, que é algo abstrato, do que pela efetiva presença de objetos, mitos etc, que de fato povoavam toda a literatura que conseguisse romper os limites da literatura realista.

Tal fato também ocorre com os Simbolistas, que em sua poética buscam aproximar sua literatura da clássica, povoando-a com deuses, rituais, magias e mitologias.

Porém, não só de ideal clássico vivia o decadente, este possuía, podemos dizer, duas características que são encontradas com facilidade e freqüência nos livros desse movimento literário. A primeira característica, como já afirmamos, é que de fato o ideal decadente de beleza surge 23 séculos antes dele, com a estética clássica definida por Platão, que prega que belo é o que produz prazer, não um prazer qualquer, mas o prazer dos sentidos mais nobres e elevados, a visão e a audição. A outra característica é um pouco mais complexa e implica num entendimento mais psicanalítico da corrente decadente, traduzindo-se no fato de que o homem decadente não consegue entender, digerir e elaborar o movimento, a turba que ocorre socialmente no final do século XIX, não digere as mudanças e por isso foge para “tempos mortos”, retorna às civilizações desaparecidas, a épocas pretéritas que ele não conheceu. Ou seja, ele se exila em sua torre de marfim e se alimenta dos prazeres estéticos que tem ao ler e rememorar o que leu. Seu alimento é mental, é a busca pelo desconhecido passado, é a quintessência da arte que o capitalismo estava matando.

Dessa forma, entendemos que a Antigüidade Clássica tem duplo papel, de lugar de exílio e de fonte de ideais estéticos.

Deixando de lado um pouco o decadentismo, percebemos que essa visita aos clássicos é feita a todo o momento, seja na literatura, no cinema, na televisão ou nas artes plásticas. E mesmo hoje, às portas do terceiro milênio, podemos observar o quanto as culturas clássicas nos influenciaram. Na verdade, depois de Homero, alguém já disse, nada mais foi originalmente inventado, tudo é reinventado de acordo com a vivência e bagagem do autor que escreve, que vai reapresentar algo que já existe, que está aí, e faz parte da essência do homem ocidental sem que ele se dê conta.

Assim, o universo mítico apresentado na Antigüidade Clássica nunca morre, sempre está renascendo, transmitindo-se, sendo relido, de acordo com a época e o contexto, enfim, transcendendo sua própria existência.

 

BIBLIOGRAFIA

HUYSMANS, J-K, Às avessas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo : Companhia das Letras, 1987.

ARISTÒTELES, Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Lisboa : Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1992.

PLATÃO, Diálogos: Mênon, Banquete, Fedro. Rio de Janeiro : Ediouro.

BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas. São Paulo : Brasiliense, 1985, v.3.

CAPPELLETTI, Angel. La estética griega. Mérida (Venezuela) : Vértice editores Universidad de Los Andes, 1991.

CASTRO, Elis Crokidakis. A rubrica decadentista e o teatro do espaço (uma leitura de Às avessas). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro : UFRJ, 2000.