A CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA PITECO INVENTA O SIGNO PAZ

Simone Zied Pinheiro

Rejane Cristina Rocha

Transgredindo as leis da semiose habitual

Não estacionar em locais cuja guia é marcada por uma faixa amarela. Vestir preto em ocasiões de luto. Enviar flores... As situações descritas colocam em evidência alguns dos aspectos da semiose que chamamos de habitual: todas elas são situações em que a partilha de um código comum é imprescindível para que haja comunicação e entendimento entre os sujeitos envolvidos. Para que a sinalização de trânsito seja eficiente, para que se consiga demonstrar consternação ou afeto, é necessário que se utilize códigos previamente convencionados e, ainda, que o outro sujeito envolvido no processo comunicacional seja capaz de decodificá-los.

Portanto, ocorre um acordo social que convenciona que tais signos representem as regras sociais estabelecidas. Isso nada mais é do que uma lei da semiose habitual, que em lingüística denomina-se “Primeiro Princípio do Signo” (SAUSSURE, 1972: 81; BARTHES, 1975: 52).

Na história em quadrinho (HQ) “Mensagem de Paz”, de Maurício de Sousa, essa lei da semiose habitual é transgredida, já que, alguns dos códigos estabelecidos são alterados, tanto para os leitores quanto para os personagens no interior da HQ: por um lado, o leitor já domina a semiose habitual e por isso identifica o desajuste dos significados conferidos, por Piteco, aos animais, aos gestos e aos objetos para expressar a idéia PAZ; por outro lado, os personagens da HQ ainda não vincularam a tais signos (animais, gestos e objetos) esses segundos sentidos familiares ao leitor. Portanto, o que Piteco faz é uma transgressão da semiose habitual, tanto sob o aspecto endofórico do texto quanto em seu aspecto exofórico (NÖTH, 1995, p. 100). Nesse sentido, nosso objeto de estudo para esse artigo é o modo como Piteco, para construir o signo PAZ, perverte a semiose habitual.

Há dois movimentos relacionais e estruturais da Hq que remetem ora àquilo que é endofórico, ora àquilo que é exofórico. Por endofórico está se entendendo aquela “estrutura que não se refere ao mundo externo, mas ao mundo do próprio discurso” (NÖTH, 1995, P. 100). Num primeiro momento, endofórico expressa as relações e estruturas sígnicas que são estabelecidas no interior da HQ, em contraposição à estrutura exofórica que se relaciona ao leitor. Portanto, por exofórico, entende-se a estrutura exterior da HQ. Há ainda um segundo momento, relativo à estrutura interior da HQ. Nessa, o endofórico remete às relações entre Piteco e Bolota, membros da mesma tribo e o exofórico, por outro lado, remete às relações entre as tribos, portanto a relações exteriores.

A experiência semiótica de Piteco

Inicialmente, a construção do percurso narrativo da HQ se dá pelo diálogo estabelecido entre os personagens Piteco e Bolota. Eles informam que a tribo de Mu é inimiga do povo de Lem, povo ao qual eles pertencem, e ainda apresentam um motivo para terem saído dos arredores de sua tribo de origem: “buscar jabuticabas em terras estranhas”. Para agravar a situação, ambos encontram-se desarmados e, por conseguinte, impossibilitados de confrontarem-se diretamente com os três membros da tribo inimiga.

Motivados por essa impossibilidade de confronto, os personagens especulam acerca de três alternativas - “lutar até morrer”; renderem-se; “pedir Paz" - das quais duas são descartadas antes mesmo de sererm colocadas em prática, já que, percebe-se, não atingiriam o fim esperado: garantir-lhes a sobrevivência.

A respeito da última alternativa, pela qual eles optam como solução há, ainda, explicações a serem elaboradas. Piteco, inventor da sigla Paz, tem uma dupla tarefa a realizar: explicar endoforicamente o seu sentido para Bolota, um membro de sua tribo e, exoforicamente expor à tribo inimiga o significado que essa sigla assume para si próprio. Esse esforço exofórico produz na tribo inimiga uma série de reações que demonstram o fracasso na comunicação. Por fim, a comunicação acontece acidentalmente. Para a construção do efeito cômico, o percurso narrativo dessa HQ retorna ao conflito inicial da falha comunicacional.

Para início de análise é fundamental apreendermos a natureza do signo peirceano:

Um signo, ou representamen, é algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor desenvolvido. Ao signo assim criado, denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Coloca-se no lugar desse objeto, não sob todos os aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que tenho, por vezes denominado o fundamento do representamen. (PEIRCE, 1975, p. 94).

O signo peirceano é uma combinação triádica, em que um dos elementos é o objeto e que o seu sentido é construído por meio do representamen e do interpretante – os outros dois correlatos do signo. No caso do signo Paz veremos que ele é composto pelo representamen, que é a própria palavra Paz, pelo interpretante, que é a idéia construída na mente do intérprete e pelo objeto ao qual o representamen se refere.

Paz é um símbolo, ou seja, é um signo de terceiridade, que diz respeito ao objeto que se representa: "A idéia do símbolo é, portanto, uma pura abstração. Em termos lingüísticos, diríamos que é uma categoria da langue, ou seja, do sistema lingüístico, e não da parole, da língua falada." (NÖTH, 1995: 87)

Diferente de um signo, que possui fora de si um objeto referencial concreto, o signo Paz tem como objeto uma idéia. A idéia-objeto Paz é uma essência que não possui concretude por si só e que, portanto, só pode ser concretizada por meio de ações pacíficas; há uma idéia geral e essencial que é, pois, o objeto Paz.

Entretanto, percebemos que a idéia-objeto Paz é distinta do interpretante, que também é uma idéia suscitada na mente do intérprete, porém que se altera. Por exemplo, quando o objeto em questão é uma “cadeira”, o representamen pode gerar diversos interpretantes (cadeira com braços; cadeira simples; cadeira a Luis XV; cadeira giratória; etc.) que, no entanto, se remetem à mesma palavra. A menos que se especifique qual “cadeira” está em questão, o intérprete pode, a partir de seu mundo cognitivo, escolher, mesmo que inconscientemente, qual objeto “cadeira” é referido. A relação triádica do signo “cadeira” é fácil de ser identificada, porque remete a um objeto concreto. Mas essa identificação não é tão simples quando o signo se remete a um objeto não-concreto.

O signo Paz conhecido hoje pelo leitor advém da palavra latina pace. No entanto, a pace romana suscitava uma idéia distinta da que temos hoje. O significado de pace não evocava uma tentativa de comunicação entre nações, apenas a harmonia interna entre os cidadãos de Roma, mediante a invasão e conquista romana dos territórios vizinhos e longínquos. Portanto a Paz era uma norma de conduta interna da sociedade romana para que, pacificada internamente, pudesse declarar guerra aos outros povos.

Os romanos incluíam desejo de Paz nas saudações, até mesmo nos cumprimentos cotidianos. Diz-se que o gesto de mão aberta que caracterizava a saudação romana vem de tempos mais antigos e visava mostrar que não se tinha pedra alguma na mão. (SILVA, 1997: 204b)

Entretanto, na semiose habitual do leitor, esse significado etimológico já se perdeu: Paz, não é apenas uma norma social interna, é também um sentimento de bem viver. Um bem viver que evoca não só uma boa relação interna, mas que também diz respeito às boas relações externas.

Na semiose de Piteco, o significado da palavra Paz aproxima-se consideravelmente àquele do leitor, já que a idéia de uma boa relação externa está claramente expressa na HQ. Entretanto, para que haja o efeito cômico, as diversas possibilidades criadas por Piteco (utilização de gesto, música, animal e objetos) para a transmissão do sentido desse "novo" signo são totalmente aleatórias. Se estabelecermos uma comparação entre o gesto romano de saudação (expresso por meio de uma mão aberta para evidenciar o desarmamento), e a primeira sucessão de gestos realizada por Piteco (balançar os braços para cima e para baixo), perceberemos que esse primeiro pedido de Paz de Piteco não é entendido não só porque não havia um acordo sígnico entre as partes, mas também porque esses gestos não facilitam a visualização de um possível desarmamento. Além disso, se no gesto romano há uma explicação plausível, afinal a mão aberta expunha o desarmamento daquele que saudava o outro, não ocorre no gesto de Piteco uma explicação para o balançar dos braços.

Analisando a HQ do ponto de vista endofórico (em relação ao seu interior), duas assertivas podem ser suscitadas dessa criação sígnica de Piteco: por um lado, a sigla Paz é um signo com interpretante privado, o que torna impossível até mesmo para Bolota, seu amigo pessoal e membro de sua tribo, dominá-lo; por outro lado, o signo Paz possui seu interpretante ausente para todos os demais personagens da situação comunicacional, já que ainda não existe construída a idéia específica de Paz e há apenas a sua idéia geradora.

Essas assertivas apontam para três tópicos da semiose peirceana: o interpretante privado, que nessa HQ é gerado pelo neologismo de Piteco; a semiose ilimitada construída a partir do signo Zuzum chegando ao neologismo Paz; e o interpretante ausente, que requer auxílio extra para sua compreensão.

Na HQ, problematiza-se o interpretante da palavra Paz porque inicialmente Bolota e, posteriormente, os três membros da tribo de Mu não conseguem encontrar o seu significado sem o auxílio das explicações de Piteco, o único detentor do conceito criado em sua mente, visto que trata-se de um neologismo. Portanto, o interpretante, nesse caso, é privado já que o significado não é compartilhado pelos outros membros da situação comunicacional. Assim, é necessário que Piteco faça um exercício endofórico para explicar a Bolota o significado da nova palavra.

Para tanto, Piteco se utiliza de uma expressão previamente estabelecida e compartilhada por Bolota para construir e transmitir a nova idéia. “Como cada idéia cria um interpretante, que por sua vez, é representamen de um novo signo, a semiose resulta numa ‘série de interpretantes sucessivos’, ad infinitum.” (NÖTH, 1995, p. 100). Como ainda não há definido o signo Paz, é necessário que se recorra a outra idéia, a do deus Zuzum, criando, assim, uma situação de semiose ilimitada.

E, ainda, a palavra Paz, criada por Piteco, é um signo cujo interpretante está ausente, tanto para os membros da tribo inimiga, quanto para Bolota. Isso porque, retomando, Piteco criou um signo cujo interpretante é privado, já que não compartilhado por ninguém e que, para ser devidamente entendido requer explicações de seu criador. Tais explicações são dirigidas a Bolota, nos seguintes termos: “Vamos pedir Paz” (...) “significa...Pelo Amor de Zuzum”. Tal sintagma, apresentado por Piteco como significado da palavra Paz, remete, na mente de Bolota – que, nesse caso compartilha com Piteco o significado da expressão - a um outro significado ainda: “Zuzum, nosso deus do ‘deixa pra lá". Podemos observar que ao signo Paz foi conferido um primeiro significado, que na mente de Bolota tornou-se um novo signo ao qual o personagem conferiu um outro significado.

Se, inicialmente, a criação do signo Paz se dá arbitrariamente de modo unilateral (por ter seu interpretante privado) e, para a comunicação desse signo, Piteco lança mão de diversos meios de representatividade (gestos, objetos animais, música), posteriormente, percebe-se que o esforço endofórico desse personagem não foi suficiente para a efetuação da comunicação, pois não podemos nos esquecer que o seu objetivo comunicacional visava principalmente a tribo inimiga. Assim, são necessárias tentativas exofóricas de explicação do termo Paz. Duas possibilidades foram discutidas por Piteco e Bolota: a de se conversar diretamente, que logo foi descartada por Bolota; e outras espécies de comunicação, a utilização de gestos, objetos, música e animais.

Diante da impossibilidade de comunicação direta, Piteco e Bolota terão de recorrer a outros signos que possam assumir outros significados, além daqueles já conhecidos, a fim de expressar a idéia Paz. A cada tentativa de explicação, Piteco faz gerar reações na tribo inimiga.

A primeira tentativa exofórica de Piteco na intenção de expor a sua Paz falha porque seu gesto não exprime a idéia que ele gostaria de expressar: comparado ao gesto romano de abrir a mão para expressar a saudação pacífica, o gesto de Piteco apresenta-se inapropriado. Além de constituir uma escolha arbitrária, todo e qualquer gesto acaba por expressar uma idéia elaborada.

Os romanos mostravam a palma da mão numa tentativa de exposição de seu desarmamento; balançando os braços intensamente, o gesto de Piteco acaba por impedir que ele se exponha desarmado ao inimigo. Enquanto o movimento romano de abrir a mão é uma exposição nítida de desarmamento — já que é estático —, o gesto de Piteco — dinâmico — pode produzir um efeito ilusório, além de impossibilitar uma correta avaliação: o adversário fica impossibilitado de verificar se ele se encontra armado ou não (pequena arma, evidentemente). Além disso, os movimentos contínuos e intensos e fazem com que os inimigos se sintam alvos de zombaria. Portanto, em vez do gesto promover e indicar Paz, acaba por gerar mais conflito e reação hostil por parte da tribo inimiga.

A segunda tentativa de comunicação da idéia de Paz não obteve mais sucesso que a primeira: novamente Piteco escolhe um signo que não comunica a idéia pretendida frente à tribo de Mu. Dessa vez, Piteco escolhe um objeto para exprimir a idéia de Paz: mediante a sugestão de Bolota de abanar outra coisa que não os seus braços, ele acata a idéia e resolve abanar suas próprias roupas, confeccionando, assim, uma bandeira. A falha comunicacional ocorre, aqui, por dois motivos, primeiro porque as cores da roupa de Piteco não conseguem exprimir a sensação de tranqüilidade evocada pela idéia de Paz; segundo porque, ao verem as roupas de Piteco serem sacudidas no ar, os inimigos conferem a essa atitude uma conotação pretensiosa, a de exibir suas peles, melhores, a eles. A reação dos membros da tribo de Mu é uma rajada de flechas em direção a Piteco e Bolota.

A opção de Piteco por expressar a idéia de Paz por meio de uma "corujassauro" também não é bem sucedida. Isso porque a ave, ao ser retirada de seu ninho, demonstra grande irritação e ataca aqueles a quem deveria transmitir uma idéia pacífica. As sensações de "bondade, singeleza e caridade", que deveriam ser provocadas pela "corujassauro", são substituídas por uma demonstração de hostilidade derivada de seu ataque. Resultado? Mais flechadas...

Diante das sucessivas frustrações, Bolota sugere ainda uma outra tentativa de chegar ao coração dos inimigos: cantar. No entanto, as vozes desafinadas dos personagens também não causam boa impressão nos membros da tribo inimiga. Observe-se que o símbolo musical reproduzido no quadrinho em que Piteco e Bolota cantam, possui um duplo aspecto: é, ao mesmo tempo, um símbolo do som emitido no interior da HQ (relacionado aos personagens que o ouvem) e um símbolo de notas musicais (relacionado ao leitor que o vê). O aspecto distorcido dessas notas é o que faz com que o leitor perceba o quanto os personagens são desafinados e, por conseguinte, o quanto eles desagradam aos inimigos, em quem esperavam produzir uma sensação agradável. O som desagradável é identificado, pelos inimigos, como uma canção ritualística de "mau agouro". A reação é a mesma de sempre...

Apenas quando Piteco monta uma fogueira, em sua última tentativa não menos frustrada de exprimir a idéia de Paz, seus inimigos compreendem o interpretante do signo Paz que até então se encontrava ausente. Entretanto, percebe-se que não foi exatamente a fogueira, que na concepção de Piteco "representa fraternidade, reuniões, conversas..." que atingiu o objetivo almejado, e sim as conseqüências do incêndio provocado acidentalmente: ao abanar com um lenço branco, Bolota atiça demais o fogo, fazendo com que Piteco, chamuscado, corra segurando um pedaço oco de madeira, cuja ponta está em chamas. Essas chamas espantam um bando de "pombodátilos" brancos que voam em direção aos membros da tribo inimiga. Os sucessivos atos involuntários (o vôo dos "pombodátilos", Bolota sacudindo um lenço branco e Piteco carregando o pedaço oco de madeira chamuscado) geram um efeito positivo: os inimigos passam a ter uma sensação agradável diante de tais objetos e animais. A mensagem de Paz finalmente é comunicada.

A ancoragem estabelecida entre o símbolo Paz e os "pombodátilos" e, em seguida, o lenço branco, é de caráter indicial, pois são eles que apontam um sentido ao símbolo abstrato; eles são, pois, a manifestação concreta desse símbolo.

No uso pragmático da língua falada ou escrita, em situações concretas, os símbolos logo adquirem ancoragem indicial. É essa ancoragem que liga o signo aos objetos e situações fatuais do mundo. (NÖTH, 1995: 87)

Uma nova semiose se instaura a partir do contato que os membros da tribo de Mu têm com os "pombodátilos". Os aspectos tátil ("fofinhos") e visual ("branquinhos") promovem o começo de uma boa sensação na tribo inimiga: "Não sei por que, mas me passaram um sentimento tão bom!", que é estendida ao lenço também branco que Bolota acena. A semiose é mais uma vez ilimitada.

Outro signo surge do encontro "pacífico" entre as tribos: o cachimbo. Cachimbo, como a palavra Paz, não existia até então. Entretanto, diferentemente da palavra Paz, que foi gerada por uma única pessoa, o termo cachimbo é um neologismo criado coletivamente: primeiro há um membro da tribo inimiga que exprime curiosidade em relação ao objeto (pedaço oco de madeira queimado em uma das extremidades) que chamusca os cachos de Piteco; um outro membro da tribo utiliza-se do radical da palavra "cacho" para gerar uma nova palavra ("cachimbo") que nomeia o pedaço oco de madeira; e esta nova expressão é complementada por Piteco ("Cachimbo da Paz").

Só então o vocábulo Paz torna-se público: é a partir da expressão "cachimbo da Paz" que Piteco consegue explicar o seu neologismo:

Um membro da tribo de Mu: – 'Paz?!'

Piteco: – Claro! É a palavra que nós, povos distantes, usaremos para nos entender! Pra que ficar brigando se podemos resolver nossas diferenças conversando? Podemos dividir terras, repartir alimentos, ajudar-nos uns aos outros..." (SOUSA, 1999: 61-2)

Antes mesmo de Piteco conseguir tornar pública a palavra Paz, seu sentido já havia sido propagado, mesmo que involuntariamente: o representamen ainda não havia sido compartilhado, entretanto a tribo inimiga já compreendia o sentido da mensagem que Piteco procurava transmitir.

Contudo, há uma nova interferência comunicacional entre tribos. Quando ocorre finalmente o compartilhamento do signo Paz, eis que surge uma nova incompreensão sígnica: o aperto de mão proposto por um dos membros da tribo de Mu, que pretendia selar a nova amizade, acaba por ser mal interpretado por Piteco, gerando assim novo conflito. O acordo de Paz termina por não se firmar.

Há ainda mais um ponto a ser discutido. Na tentativa de utilizar gestos, animais e objetos para transmitirem a idéia de Paz, Piteco comete uma primeira transgressão: transforma ícones em índices: a "corujassauro" que, inicialmente, era apenas um animal, portanto um signo da primeiridade, que expressava apenas uma qualidade, passa a participar da categoria de secundidade . Peirce define da seguinte maneira o signo indexical:

Os índices podem distinguir-se de outros signos ou representações por três traços característicos: primeiro, não têm nenhuma semelhança significante com seus objetos; segundo, referem-se a individuais, unidades singulares, coleções singulares de unidade ou a contínuos singulares; terceiro, dirigem a atenção para os seus objetos através de uma compulsão cega (…). Psicologicamente, a ação dos índices depende de uma associação por contigüidade e não de uma associação por semelhança ou por operações intelectuais. (PEIRCE, In: NÖTH, 1995: 85).

Portanto, a associação proposta por Piteco ao escolher um ícone "corujassauro" para indicar o símbolo Paz reforça a idéia peirceana do signo indexical, já que não há uma associação por semelhança entre o animal e a idéia de Paz; o que há é uma associação por contigüidade, pois os animais "podem demonstrar bondade, singeleza, caridade…"

A segunda transgressão cometida por Piteco, é se apossar de uma orientação indicial na desorientação simbólica: " a importância especial dos signos indexicais em situações nas quais a comunicação simbólica se rompe é particularmente evidente" (NÖTH, 1995:115) no gesto de Piteco de sacudir os braços. Diante da ausência do representamen simbólico do signo Paz, o gesto indexical procura fornecer, pelo menos, uma orientação mínima para a tribo inimiga. Desafortunadamente, tal substituição gestual do símbolo arbitrário Paz não foi bem sucedida. " Tal substituição gestual dos símbolos arbitrários por meios indiciais, mais diretos e naturais, bem ilustra uma regressão a estágios anteriores da evolução humana onde os modos de semiose ainda eram precários." (NÖTH, 1995: 115-116).

Há, ainda, uma terceira transgressão, a que diz respeito à semiose habitual. Quando o leitor entra em contato com a imagem de uma pomba branca, imediatamente pensa no signo Paz, ou seja, essa transformação do ícone pomba em símbolo da Paz faz parte da semiose habitual. O símbolo pode possibilitar isso porque tem força de lei. Entretanto, Piteco transgride essa semiose ao escolher gestos, animais e objetos outros que não os já estabelecidos por ela.

Recriações, desdobramentos e recusas

as comunicações sígnicas na Idade da Pedra

Na HQ, como em qualquer situação em que o interpretante é privado e/ou ausente, é o código dos símbolos que permanece enigmático ao membros da tribo de Mu, e mesmo a Bolota. Piteco, ao falar sobre a palavra Paz a Bolota, indica que ele a acabara de inventar, sugerindo, assim, que esta se trata de um símbolo arbitrário que a tribo de Mu necessariamente terá de aprender para que ocorra a comunicação. Os códigos (animal, objeto, música e gesto) inicialmente usados por Piteco é um desses códigos simbólicos: Piteco, ao se movimentar balançando intensamente os braços, ao utilizar uma "corujassauro", ou mesmo suas roupas e uma canção para expressar a idéia de Paz, acaba pervertendo o sentido original que gesto, animal, e objeto já possuíam. É, pois, a arbitrariedade de conferir uma nova função àqueles que dá ao signo o caráter simbólico.

A experiência semiótica de Piteco só obtém êxito quando a tribo inimiga consegue decodificar o signo Paz mediante a utilização de outros signos que não os escolhidos por ele: o signo "pombodátilos branquinhos e fofinhos", o lenço branco e mesmo o cachimbo da Paz foram utilizados para expressar a idéia de Paz sem que Piteco tivesse planejado isso. Portanto, a arbitrariedade de se conferir uma função aos "pombodátilos", ao lenço branco e ao cachimbo da Paz é dupla: por um lado são conferidas, pelos membros da tribo de Mu, funções outras que não a função inicial que o lenço branco (assoar o nariz), pedaço oco de madeira (fazer uma fogueira) e os "pombodátilos" (serem animais) possuíam; por outro lado, não foram esses os objetos e animais escolhidos por Piteco para representarem o símbolo Paz, entretanto, foram esses os escolhidos pela Tribo de Mu.

Portanto, diante da desorientação simbólica do signo Paz é necessário que haja uma orientação icônica. Os "pombodátilos", lenço branco e cachimbo deixam de ser ícones para servirem como meio para expressar o código simbólico Paz, ou seja, eles se tornam símbolos para expressarem a palavra Paz; o método proposto por Piteco para expressar o símbolo Paz é produzir um ícone do signo simbólico Paz, já que Paz é um objeto não concreto que necessita de outros objetos para que haja sua manifestação concreta

Piteco inventa o signo Paz e procura, no decorrer de toda a HQ, escolher determinados signos na tentativa de esclarecer o seu neologismo. A ironia dessa Hq está no fato de Piteco acabar por ser vítima da arbitrariedade alheia, pois são os membros da tribo de Mu que escolhem outros animais e objetos para representarem e simbolizarem a mensagem de Paz.

BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. Trad. Izidoro Blikstein. 11 .ed. São Paulo : Cultrix, 1996.

NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce. São Paulo : Annablume, 1995.

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia. Trad. Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. 2. ed. São Paulo : Cultrix/ EdUSP, 1975.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral. 4.ed. São Paulo : Cultrix, 1972.

SILVA, Deonísio. De onde vêm as palavras. 5. ed. São Paulo : Mandarim, 1997.

SOUSA, Maurício de. Mensagem de Paz. In: ––. Mônica. São Paulo: Globo, abril 1999, p. 53-62.