DO PROCESSO DE CONCEPTUALIZAÇÃO, DA PRODUÇÃO LEXICAL E DA PRODUTIVIDADE DISCURSIVA

 

Cidmar Teodoro PAIS

Universidade de São Paulo

 

0. Introdução

 

Este trabalho inscreve-se em investigação mais ampla, desenvolvida pelo autor, há alguns anos, numa perspectiva epistemológica multidisciplinar, em que se buscam articulações entre a semântica cognitiva, a semântica lexical, a sociossemiótica, a semiótica das culturas, examinando-se criticamente as metateorias subjacentes. Consideram-se, aqui, relações entre o nível pré-semiótico e trans-semiótico do metassistema conceptual (Pottier), da semântica cognitiva (Rastier), do processo da episteme (Aristóteles), enquanto processo de construção do ‘saber sobre o mundo’, e sua conversão, numa semiótica-objeto – verbal, não-verbal, sincrética -, pela reiteração/engendramento de grandezas-signos, funções semióticas e funções semióticas lato sensu, no processo de semiotização-lexemização, da instância da competência semiótica e lingüística, que autoriza o processo discursivo - processos de enunciação -, que se concluem na produção do enunciado-texto. Noutras palavras, estudam-se, de maneira sumária, as relações entre cognição e semiose.

Esses aspectos são analisados no quadro teórico do percurso gerativo da enunciação de codificação e de decodificação (Pottier, Greimas, Pais): ‘modelos mentais’ ou conceptus e recortes culturais, designata, tornam-se significação, sentido e informação nos discursos manifestados.

Verifica-se, por outro lado, que textos-enunciados (produto) somente significam na intertextualidade, discursos (processos), na interdiscursividade, em incessante reelaboração do mundo semioticamente construído.

Daí resulta que os múltiplos processos de transcodificação, intratextual, intertextual, intradiscursiva, interdiscursiva, inter-semiótica (entre semióticas-objeto distintas, pertencentes à mesma comunidade), intermacrossemiótica (entre semióticas-objeto pertencentes a culturas diferentes) são possíveis mediante a passagem obrigatória pelo nível conceptual, em que se articulam ‘modelos mentais’ e recortes culturais, re-semiotizados, então, em discurso.

 

1. Do mundo semioticamente construído, do percurso gerativo da enunciação, da coerência e da compatibilidade

 

Investigam-se, aqui, as relações entre o processo de construção e reconstrução do ‘saber sobre o mundo’, episteme, efetuado pelo sujeito cognitivo, e o processo de elaboração e reelaboração de um mundo semioticamente construído (Pais, 1993: 556-561), pelo sujeito enunciador/enunciatário (Courtès, 1991) do discurso. Consideraram-se o percurso gerativo da enunciação de codificação e de decodificação, seus níveis de estruturação e transformações, examinando-se de que modo neles se inscrevem e se articulam o fazer cognitivo e o fazer discursivo. Em trabalhos anteriores, estudáramos muitos aspectos dos processos de produção da significação e da informação, da construção e permanente reconstrução das ‘visões do mundo’, nos sistemas significantes, dos problemas observáveis nas relações que se estabelecem entre os processos semióticos, (sistemas semióticos e seus discursos) e a sociedade e a cultura em que se verificam sua operação e manifestação. Trata-se de um domínio multidisciplinar, de que decorre a exigência de cooperação intensa entre ciências e domínios como a lingüística, a semântica cognitiva, a semiótica, a antropologia, a sociologia, a história, a filosofia da linguagem, as lógicas, as ciências da comunicação, a pesquisa da inteligência artificial.

A nosso ver, processos semióticos - sistemas semióticos e seus discursos dialeticamente articulados como suas duas instâncias (Pais, 1993: 309-328, 404-419) - verbais, não-verbais e sincréticos - são concebidos como processos de produção, simultaneamente, da significação - relações entre o plano do conteúdo e o plano da expressão, funções semióticas e metassemióticas lato sensu -, da informação do conteúdo – vistos como recortes culturais -, produção, transformação e reiteração da ideologia, entendida como sistema de valores e, por conseguinte, da ‘visão do mundo’. Espacialmente delimitados e historicamente determinados, devem estudar-se, em sua estrutura e funcionamento, como instrumentos de comunicação humanos, dotados de mecanismos de auto-regulagem e auto-alimentação, e em sua mudança no eixo da história, em suas relações com a sociedade e a cultura, enquanto instituições sociais, culturais e históricas.

Verificamos que diferentes processos semióticos em funcionamento numa mesma comunidade lingüística e sociocultural, não obstante a diversidade da natureza de seus códigos e processos de tratamento da informação, produzem e reiteram, de modo geral, recortes culturais compatíveis, sistemas de valores e ‘visões do mundo’ coerentes. Esse fato é detectável não só nos percursos de transcodificação inter-semiótica, como também nos percursos sintagmáticos concomitantes dos discursos das semióticas sincréticas, resultantes do funcionamento em paralelo de várias semióticas-objeto ditas 'simples' (Pais, 1993: 382-403). Nessas condições, os processos semióticos constituem, em conjunto, a macrossemiótica de uma cultura (Pais, 1993: 420-421).

Esse caráter culturalmente coerente e articulado, no tocante à informação, observado nos processos semióticos, conduziu à necessidade de propor noções operacionais, na metalinguagem científica, de formalizar metamodelos, para tentar explicar não somente os mecanismos que autorizam as transcodificações e impõem a coerência e a compatibilidade mencionadas, no interior de uma macrossemiótica, mas também que permitem as transcodificações inter-macrossemióticas, de uma a outra cultura. Daí decorreram nossos esforços de reconstrução teórica dos patamares do percurso gerativo da enunciação de codificação e de decodificação, dos correspondentes processos de elaboração, transmissão, armazenagem, recuperação e reelaboração da informação. Esses patamares e processos correspondem, teoricamente, a níveis de abstração, dos textos manifestados até as estruturas hiperprofundas, em correlação com os diferentes universos semióticos, no sistema e nas normas (Pais,1993: 522-553, 554-602; 1998).

Em nossa concepção o percurso gerativo da enunciação de codificação, vai da percepção biológica - culturalmente filtrada - e da análise da experiência até a sua manifestação em discurso e, inversamente, o percurso gerativo da enunciação de decodificação, reconstrução teórica do lingüista e do semioticista, vai dos textos manifestados, únicos objetos diretamente observáveis, à reconstrução da experiência. O percurso gerativo da enunciação de codificação e de decodificação, compreende, assim, os patamares de percepção, conceptualização, semiologização, semiotização - que inclui a lexemização e a atualização - chegando à semiose em discurso, quanto ao fazer persuasivo; os patamares de percepção (do texto), reconhecimento da semiótica-objeto, re-semiotização, ressemiologização e reconceptualização, quanto ao fazer interpretativo, a reconstrução, pelo sujeito enunciatário, de uma análise da experiência e conseqüente realimentação e auto-regulagem do metassistema conceptual e dos processos semióticos dele dependentes. (Pais, 1993: 309-328, 522-553, 554-602; 1998).

 

2. Do metassistema conceptual, dos léxicos, da produtividade discursiva

 

A compatibilidade dos recortes culturais, a coerência ideológica e a própria possibilidade das transcodificações exigem postular teoricamente uma instância, imediatamente subseqüente à percepção biológica e, portanto, pré-semiótica – entendida como etapa logicamente necessária - e trans-semiótica - no sentido de sua disponibilidade, para ser tratada, em seguida, por qualquer semiótica-objeto: o nível do metassistema conceptual, da conceptualização, das estruturas hiperprofundas (Pais, 1993: 535-541, 562-598). Nesse nível, são produzidos recortes culturais - destacados do continuum dos dados da experiência, como objetos, processos e atributos de objetos ou de processos - e analisados, a seu turno, em traços semânticos conceptuais, os noemas, objeto da noêmica (Pottier, 1992). Uma rede de relações se estabelece, pois, entre os recortes culturais - os designata do mundo ‘referencial’ - e os conjuntos noêmicos, entendidos como designationes potenciais, como matrizes sígnicas pré-semióticas e trans-semióticas, correspondentes aos conceptus, ‘modelos mentais’, da semântica cognitiva (Rastier, 1991: 73-114). De maneira geral, a cada conceptus, enquanto 'modelo mental', relacionam-se um ou vários conceitos, numa língua natural.

Entretanto, na passagem do patamar da percepção ao da conceptualização, convém distinguir três estágios de atributos semânticos: as latências entendem-se como os atributos semânticos possíveis dos ‘objetos’ e ‘processos’ da semiótica natural; as saliências, como os atributos que se destacam, na estrutura, funcionamento e hierarquia dos ‘fatos naturais’("o perceber"), as pregnâncias, ("o conceber"), por sua vez, constituem o resultado da atividade do homem, das escolhas que faz na apreensão daqueles ‘fatos’ (Pottier, 1992: 61-69; Pais, 1993: 556-561, 1998).

Nessa perspectiva, o protótipo (Dubois, 1991) deve ser considerado como núcleo noêmico, ou núcleo sêmico conceptual. A ele podem corresponder um ou vários conceptus que o contêm, numa relação de inclusão. O conceptus, ou ‘modelo mental’, constitui, assim, um conjunto noêmico expandido, conjunto sêmico conceptual, resultante de uma escolha do sujeito individual e/ou coletivo. Articulam-se dialeticamente os conceptus e os recortes culturais, ou designata, que funcionam como ‘referentes’, ‘objetos do mundo’ semioticamente construído de uma cultura e sociedade.

Aqui, parece-nos indispensável formular a hipótese de que todo metassistema conceptual compreende, dois níveis e três tipos de elementos. Os processos mentais, na atividade cognitiva do homem, os mecanismos de produção dos recortes culturais, de constituição dos ‘modelos mentais’, dos conceptus, os mecanismos de seleção, de mudança e de fixação dos atributos semânticos, do estabelecimento e da transformação das relações entre tais formações e de sua conversão semiótica (através do percurso gerativo) são próprios ao homem, enquanto espécie biológica e, nesse sentido, universais; nesse primeiro nível, o mais profundo, situam-se elementos e estruturas que integram a aptidão semiótica geral do homem - denominadores comuns de todas as culturas e sociedades -, que definem os universais semântico-sintáxicos da linguagem e da significação, que dirigem os processos de construção dos ‘modelos mentais’, as operações cognitivas. A universalidade desses processos e mecanismos assegura a possibilidade de transcodificações entre metassistemas conceptuais distintos e, ipso facto, entre semióticas-objeto de culturas e de macrossemióticas diversas (Pais, 1993: 584-598). Em contrapartida, no segundo nível do metassistema conceptual, ainda pertencente às estruturas hiperprofundas mas subordinado ao primeiro e, portanto, menos profundo, é preciso situar três tipos de conceptus construídos, que constituem conjuntos ordenados de noemas e de conceptus bem definidos - o ‘léxico-conceptual’ -: a) os conceptus lato sensu específicos de uma cultura, característicos desta e disponíveis para todas as semióticas-objeto de uma macrossemiótica, resultantes do processo histórico da cultura, que, por sua vez, compreendem b) os metaconceptus, subconjunto de traços semântico-conceptuais, de caráter cultural; c) os metametaconceptus, subconjuntos de traços modalizadores, manipulatórios (Barbosa, 1999, 2000); d) os arquiconceptus, subconjuntos dos primeiros, constituídos de traços semântico-conceptuais situados na intersecção entre vários conceptus e recortes de línguas e culturas, multilingüísticos, multiculturais (Thoiron, 1996), como, na ‘latinidade’, por nós considerada em trabalhos anteriores, em que estudamos, no âmbito da semântica cognitiva e da semiótica das culturas as oposições privilégio x restrição e tradição x modernidade, num estudo contrastivo das culturas e das sociedades do Brasil e da França (Pais, 1999), do Brasil e de Cuba (Pais, 2000). Esquematicamente:

 

 

Classes de Caracterização semântico - Natureza

Noemas/conceptus conceptual

 


Noemas ‘Universais’ semânticos Mecanismos

‘universais’ hiperprofundos básicos da

cognição

 


Conceptus Atributos semânticos pregnâncias

conceptuais-culturais escolhas

 


Metaconceptus Atributos culturais ideológicos pregnâncias

ideologia

 


Metameta- Atributos modalizadores pregnânvias

conceptus manipulatórios ideologia

 


Arquiconceptus Atributos multiculturais intersecção

conceptual

 


Figura 1: Classes noemáticas e conceptuais

Trata-se, pois, de uma construção cultural e histórica, específica de uma macrossemiótica, ou resultante de interferências de outras macrossemióticas.

Ainda nesse nível, situa-se uma ‘sintaxe-semântica’ conceptual, encarregada da produção dos complexos conceptuais, seqüências sintagmaticamente ordenadas de conceptus, suscetíveis de ser manifestados como enunciados, enquanto análise de determinada experiência, nos textos produzidos por uma semiótica-objeto. Os complexos conceptuais distinguem-se por dois tipos de relações básicas de atribuição, a atribuição de atributos - relações de equivalência, de inclusão, de pertinência - e a atribuição de processo. De maneira sumária, nossa formalização:

 

 

Complexo Atributivos A @ / É / Ì /Î ... B

conceptual de atributos

 


Esquema de ¬

entendimento

 


Complexo Atributivos

Conceptual de processos A <CAUS> B: a ® b ,

A @ / ¹ B

 


Esquema de

entendimento ® ®

 

 

Figura 2: Complexos conceptuais e esquemas de entendimento

 

 

No caso das línguas naturais e seus discursos, torna-se possível analisar, descrever e explicar, de maneira mais precisa, não só as relações de significação, intrassemióticas, como também as relações léxico-semântico conceptuais, a nosso ver, de grande interesse para semanticistas, lexicólogos, lexicógrafos e terminólogos (Barbosa, 1998).

Os metassistemas conceptuais assim construídos, em sua dinâmica, funcionam como instância pré-semiótica e trans-semiótica, assegurando a citada coerência dos recortes culturais e a compatibilidade ideológica intracultural e intra-macrossemiótica, sustentadas em discurso. Assim, os conceptus, enquanto matrizes sígnicas, são disponíveis para o engendramento de funções semióticas e funções metassemióticas (Hjelmslev, 1968: 65-79, 144-157; Pais, 1993: 384-403, 548; 1998), em todos os sistemas semióticos e discursos dependentes do mesmo metassistema conceptual. Sua conversão em significações se dá no percursos gerativo próprio a cada processo semiótico. Nas línguas naturais, autorizam o engendramento/recuperação das unidades lexicais: lexemas, no sistema; vocábulos, nas normas.

 

3. Discurso, intertextualidade, interdiscursividade, transcodificações

 

O processo discursivo, sabe-se, é o único lugar possível da semiose, seja da produção de significação e informação novas, seja da reiteração de significação e informação preexistentes. Num discurso, as funções semióticas e metassemióticas lato sensu têm um valor de comunicação exclusivo desse discurso. O discurso lingüístico e o das semióticas não-verbais co-ocorrentes, como a gestualidade, assim como os discursos complexos das semióticas sincréticas determinam tratamentos em paralelo e processos de semiose concomitantes, transcodificações simultâneas, possibilitadas justamente pelo metassistema conceptual subjacente. Resulta dessa produção significante e informacional, através do percurso gerativo da enunciação de decodificação, a auto-regulagem e realimentação do metassistema conceptual e de todas as semióticas-objeto dele dependentes. Por certo, o mecanismo é mais complexo, nos processos discursivos em que se dão transcodificações entre semióticas-objeto pertencentes a diferentes macrossemióticas, dependentes de metassistemas conceptuais distintos.

As significações e os recortes culturais produzidos, vimos, determinam a configuração de um mundo semioticamente construído. As significações só podem existir no interior de uma semiótica-objeto, no âmbito da macrossemiótica; não são transcodificáveis; a informação de conteúdo, ao contrário, fundamentada nos recortes culturais, é suscetível de transcodificação, não só de uma semiótica-objeto a outra, como também de uma macrossemiótica a outra, ainda que haja filtragem e certa perda de informação potencial.

Constitui o léxico um espaço semiótico privilegiado, nos sistemas semióticos que são as línguas naturais. Com efeito, através dele, sobretudo, se realizam a produção, a reiteração, a transformação e a manifestação dos recortes culturais e da correspondente ‘visão do mundo’. Uma tensão dialética e um processo de alimentação e realimentação são sustentados entre o léxico e os sistemas e práticas sociais e culturais (Pais, 1993: 373-381, 641-649). Noutros termos, o léxico é um instrumento de produção da cultura e, ao mesmo tempo, seu reflexo. Se uma língua natural e seus discursos, assim como os sistemas semióticos não-verbais e sincréticos, pertencentes a uma mesma comunidade lingüística e sociocultural, integrantes da mesma macrossemiótica, produzem e reiteram recortes culturais compatíveis, um sistema de valores coerente, como vimos, segue-se que esses recortes culturais são específicos de determinada cultura, de sorte que não é possível encontrar, noutras culturas, elementos que lhes sejam idênticos, no sentido matemático do termo. Fenômeno comparável se verifica nas relações entre dada língua natural e as metalinguagens, as ‘línguas de especialidade’, a partir daquela construídas, entre uma língua natural e seus universos de discurso. Nessa perspectiva, toda transcodificação constitui uma busca de informações do conteúdo aceitáveis como ‘equivalentes’, para as quais se engendram significações intrassemióticas, na semiótica-objeto receptora, capazes de manifestá-las. Soluções parciais: não existem ‘sinônimos’ perfeitos numa língua natural e é impossível encontrá-los, de uma língua para outra.

Consideramos, pois, que os conceptus e os complexos conceptuais asseguram os processos de elaboração, transmissão, armazenagem, recuperação e reelaboração da informação, a possibilidade das transcodificações intradiscursivas, interdiscursivas, intrassemióticas, intersemióticas, intra-macrossemióticas e inter-macrossemióticas. Desse modo, os elementos do nível conceptual, conceptus e complexos conceptuais desempenham o papel de um tertium comparationis (Pais, 1993: 569-578) entre funções semióticas e metassemióticas lato sensu, recortes culturais, entre designationes e designata -, seja no interior de uma semiótica-objeto e seus discursos - na norma de um universo de discurso, ou quando se passa de um universo de discurso a outro -, seja quando se passa de uma semiótica-objeto a outra, seja, ainda, quando da passagem de uma macrossemiótica a outra, tanto para o lingüistica e o semioticista, em seu caráter operacional, como para os sujeitos semióticos enunciadores/enunciatários, em geral, em seus processos de produção discursiva, ainda que disso não sejam conscientes, eis que se trata de mecanismos automatizados. Por isso, entendemos que os conceptus, para o pesquisador, como para os sujeitos semióticos enunciadores/enunciatários das semióticas-objeto verbais, não-verbais e sincréticas, constituem critérios e parâmetros que permitem avaliar a qualidade e a quantidade de informação produzida, o instrumento, para estabelecer relações entre unidades do léxico das línguas naturais, unidades das metalinguagens construídas a partir daquelas, significações, recortes culturais que são encarregadas de representar, entre designationes e designata e, ainda, para julgar as equivalências postas e a precisão relativa das transcodificações.

 

4. Da concepção de universo de discurso

 

Tomando-se a noção matemática de universo como "conjunto de todas as partes", torna-se possível elaborar uma concepção muito útil, operatória, o metamodelo de universo de discurso (Coseriu, 1967; Pais, 1984).

Assim, este pode ser definido como um conjunto não finito, ou que tende ad infinitum de todos os discursos manifestados ou manifestáveis, que apresentam determinadas características e constantes, assim como determinadas coerções, suscetíveis de configurar uma norma.

Dessa maneira, o conjunto de discursos pertencentes a um mesmo universo de discurso pode ser formulado como:

 

 

Dx = {dx1, dz2, dx3, ..., dxn, ...}

 

 

A norma discursiva que lhe corresponde, definida por tais características comuns e constantes, bem como por tais coerções, configura, portanto, um conjunto de critérios de equivalência, pelos quais é licito reunir discursos manifestados, discursos-ocorrências numa classe de equivalência discursiva, o universo de discurso considerado. Essa norma é dinâmica, seja porque se reformula continuamente, ao longo do eixo da História, seja porque sofre a interferência de normas de outros universos de discurso. O sujeito falante-ouvinte, ou, de outro ponto de vista, o sujeito enunciador-enunciatário, dela tem ou pode ter uma noção intuitiva, ao passo que, do ângulo científico, a norma discusiva assume sempre um valor estatístico (constantes em relação a variáveis) e nunca imperativo, já que um único e mesmo discurso manifestado pode pertencer simultaneamente a mais de um universo de discurso, como, por exemplo, o científico/pedagógico.

Por outro lado, semelhante norma de universo de discurso compreende, na verdade, uma série de normas frásticas, lexicais, sintáticas, semântico-sintáticas e, por vezes, fonético-fonológicas; e outras tantas normas transfrásticas, narrativas e discursivas, relativas à argumentação, à veridicção, à verossimilhança, ou à eficácia e às relações entre estas, as concernentes aos mecanismos de persuasão/interpretação, de manipulação/contramanipulação, de sedução, a formulações específicas das relações enunciado/enunciação, das relações intersubjetivas e espaço-temporais, como, ainda, as que dizem respeito às modalidades e às modalizações discursivas dominantes, ou às que estariam, em princípio, excluídas, e, enfim, aos processos de produção e sustentação de ideologia próprios aos diferentes universos de discurso.

Além disso, a conceituação de um universo de discurso deve levar em conta, igualmente, as relações que se estabelecem entre os discursos manifestados – relações efetivas, a partir das quais se estabelecem propostas de descrição das normas que lhes são subjacentes – e entre os discursos manifestados e os manifestáveis - relações virtuais -, ou seja, relações interdiscursivas, devendo-se considerar, ainda, as relações que se instalam entre os textos desses discursos, ou seja, relações de intertextualidade intrassemiótica stricto sensu (isto é, a intertextualidade dinamicamente concebida no interior de um universo de discurso).

Nesses termos, a noção de universo de discurso pode ser assim formalizada:

 

Udi = {Di, Di/Ni, Rdi, Rtxi}

 

onde UD = universo de discurso; D = discurso-ocorrência, manifestado ou manifestável; N = norma(s) correspondente(s) ao(s) universo(s) em questão; R = rede de relações; Tx = texto do discurso.

 

 

Por conseguinte, temos, numa semiótica-objeto constituída por uma língua natural - e seus discursos -, por exemplo, espacialmente delimitada, socioculturalmente condicionada e contextualizada, historicamente determinada, a definição de microssemióticas-objeto, ou, se preferirmos, de diferentes universos de discurso, como sejam, o universo de discurso científico, o universo de discurso tecnológico, o universo de discurso jurídico, o universo de discurso político, o universo de discurso jornalístico, o universo de discurso publicitário, o universo de discurso burocrático, o universo de discurso pedagógico, o universo de discurso religioso, dentre outros, aos quais correspondem outras tantas normas discursivas, e que constituem, por exemplo, o objeto da sociossemiótica, enquanto estudo dos discursos sociais não-literários.

 

5. Exemplo de relações entre um conceptus lato sensu, sua estruturação semântico-conceptual e suas manifestações léxico-semânticas

 

Sabemos que os diferentes universos de discurso se caracterizam, dentre outros aspectos, por suas estruturas de poder, por suas modalidades, modalizações, sobremodalizações e sobredeterminações (Pais, 1984; 1993: 454-520)

Assim, o discurso científico (ou da produção do conhecimento) se define pela modalidade complexa poder-fazer-saber; o discurso tecnológico (ou da competência) se define, por sua vez, pela modalidade complexa poder-saber-fazer; o discurso político, pela modalidade complexa poder-fazer-querer; o discurso jurídico, pela combinatória modal poder-fazer-dever; o discurso burocrático, pela combinatória poder-fazer-fazer.

A seu turno, o discurso pedagógico revela uma estrutura de poder muito complexa, que pode ser assim formalizada:

 

 

 

 

Universo de Discurso Estruturas de poder

Modalidades complexas

 


Poder-fazer-saber Þ

Discurso pedagógico Þ poder-saber-fazer Þ

Þ poder-fazer-querer Þ

Þ poder-fazer-dever Þ

Þ poder-fazer-crer

 

 

Figura 3

 

o que significa, dentre outros aspectos, que se trata de um discurso voltado para a formação e a informação, ou, noutras palavras, que se propõe a criar e transmitir conhecimento, gerar uma competência, despertar uma vocação, instaurar uma ética geral e profissional e estabelecer, desse modo, um sistema de crenças a propósito dos elementos precedentes.

 

Além disso, são amplamente reconhecidas as relações que se estabelecem entre o discurso pedagógico, de um lado, e o discurso político (da política educacional, sobretudo), do discurso jurídico (da legislação pertinente), do discurso burocrático-administrativo (da gestão das instituições e do processo ensino/aprendizagem), etc., de outro.

Consideremos, pois, o conceptus lato sensu <<instituição de ensino superior>>. Trata-se, evidentemente, de um conceptus que se semiotiza e lexemiza em micro-universos de discurso de diferentes Sujeitos de discurso, como o estudante, o professor, o funcionário, a instituição, a mantenedora, o legislador, o administrador, os órgãos governamentais competentes, a família do estudante, a sociedade como um todo. Nessa perspectiva, a unidade léxica que manifesta o conceptus lato sensu, ou seja, instituição de ensino superior, em nível de sistema, só pode ser polissêmica e, mesmo, polissemêmica.

Por outro lado, cada um desses Sujeitos de discurso tem seus programas narrativos próprios, seus objetos de valor específicos. Assim, por exemplo, o <<estudante>> busca, em princípio, [+conhecimento], [+capacitação profissional]. [+ascensão social], [+socialização]; o <<professor>> persegue [+salário], [+reconhecimento profissional], [+gratificação psicológica], [+ascensão social]; a <<instituição/mantenedora>> pretende realizar [+prestação de serviços] e alcançar [+reconhecimento público], [+recursos financeiros].

Obviamente, seria impossível esgotar, no espaço deste trabalho, toda aanálise semântico-conceptual e semêmica de todos os Sujeitos de discurso envolvidos, tais como os citamos mais acima. Ao fazê-lo, procuramos mostrar a complexidade da questão. Para os fins deste artigo, no entanto, limitamo-nos, mais especificamente aos três casos considerados por último, os do <<estudante>>, do <<professor>>, da <<instituição/mantenedora>>.

Do ângulo das estruturas narrativas, temos três discursos em que S1 = estudante, S2 = professor, S3 = instituição/mantenedora, de tal forma que estudante, professor, instituição/mantenedora se definem por uma relação actancial de destinação recíproca, dois a dois. De acordo com o modelo semiótico das relações actanciais, temos:

 

 

 


Destinatário Destinador

(Professor)

 

 

 

 


Sujeito1 Objeto de Valor1

(Estudante) (formação, capacitação)

 

 

 

 


Destinatário Destinador

(Estudante)

 

 

 

 


Sujeito2 Objeto de Valor2

(Professor) (reconhecimento, gratificação)

 

 

 

 


Destinatário Destinador

(Instituição/Mantenedora)

 

 

 

 


Sujeito2 Objeto de Valor3

(Professor) (salário, reconhecimento )

 

 

 

 

 


Destinatário Destinador

(Professor)

 

 

 

 


Sujeito3 Objeto de Valor4

(Instituição/Mantenedora) (qualidade, recursos)

 

 

 

 


Destinatário Destinador

(Estudante)

 

 

 

 


Sujeito3 Objeto de Valor5

(Instituição/Mantenedora) ( prestação de serviços

recursos, reconhecimento)

 

 

 

 


Destinatário Destinador

(Instituição/Mantenedora)

 

 

 

 


Sujeito1 Objeto de Valor6

(Estudante) (formação, capacitação

ascensão social)

Figura 4

 

Vale a pena conferir, a esse respeito, o trabalho de Kaplanas (1997: 185).

 

Depreende-se desses programas narrativos, como dos objetos de valor e da análise semântico-conceptual e semêmica vista mais acima, que os três Sujeitos em tela - da mesma forma que os demais Sujeitos envolvidos no processo - fazem, cada um deles, um recorte distinto do conceptus lato sensu <<instituição de ensino superior>>, privilegiando certas zonas de traços semântico-conceptuais e deixando latentes outras zonas, de modo a definir metaconceptus e metametaconceptus distintos, conquanto se mantenha sempre a intersecção absoluta do arquiconceptus.

Temos, pois:

 

Conceptus lato sensu <<instituição de ensino superior>>

 

Subconjunto do <<estudante>>

 

Metaconceptus 1 Subconjunto do

<<professor>>

[+formação]

[+capacitação Metaconceptus 2

profissional]

etc. [+trabalho]

[+salário]

Metametaconceptus 1 Arquiconceptus [+segurança]

 


etc.

[+ascensão social] [+poder}

[status] [+fazer] Meta-

[+ascensão [+saber] -conceptus 2

profissional] [+saber fazer]

[+realização pessoal] [+querer] [+reconheci-

[+sociabilidade] dever] mento]

etc. [+crer] [+gratificação

[+instituição] psicológica]

 


[+processo] etc.

 

 

 

 

Metaconceptus 3

Metametaconceptus 3 Subconjunto da

[+prestígio] <<instituição/

[+status] [+prestação de mantenedora>>

[+crescimento] serviços]

[+expansão] [+recursos

[+lucro]?, etc. financeiros]

[+reconhecimento]

etc.

 

 


 

Figura 5: Estrutura do conceptus lato sensu, ao nível da semântica cognitiva

Como se pode observar, configura-se um arquiconceptus, enquanto subconjunto de traços semântico-conceptuais constitutivos da intersecção absoluta dos três conceptus resultantes do processo de conceptualização dos três Sujeitos de discurso, estudante, professor e instituição/mantenedora, em função dos interesses, necessidades, em suma, dos microssistemas de valores sustentados pelos Sujeitos em seus discursos. Os três metaconceptus que lhes correspondem compreendem traços semântico-conceptuais culturais. configuram consensos dos segmentos sociais representados e, até certo ponto, da sociedade como um todo. Entretanto, os metametaconceptus compreendem traços semântico-conceptuais modalizadores, eminentemente manipulatórios, que dizem respeito ao caráter político dos discursos em que se manifestam e, que, por conseguinte, conduzem a uma visão global do ‘sistema’. Evidentemente, a análise que apresentamos, vale repetir, é ilustrativa e não exaustiva e, mais ainda, constitui, apenas, uma leitura. Outras leituras certamente são perfeitamente exeqüíveis.

 

6. Conclusão

 

Verificamos, pois, que o poder-fazer-saber do sujeito cognitivo só pode realizar-se através de um poder-saber-fazer do sujeito enunciador-enunciatário do discurso, que, manifestando-se, conduz à realimentação e à regulagem do metassistema conceptual e dos processos semióticos dele dependentes. O sujeito cognitivo e o sujeito semiótico produzem um saber sobre o ‘mundo’ e sobre si mesmos e são simultaneamente produzidos num processo, em que são determinantes a racionalidade, a sensibilidade, a intuição, a afetividade e a historicidade.

Observamos, ainda, que os discursos só significam na interdiscursividade, como também os textos só significam na intertextualidade, impondo-se a distinção entre esses dois tipos de relações, a primeira concernente à enunciação, ou seja, ao processo de produção discursiva, a segunda, relativa aos enunciados-textos que daquele processo resultam.

Verificamos, enfim, que a instância de competência de uma semiótica-objeto traduz em grandezas-signos, funções semióticas e metassemióticas os conceptus, ‘modelos mentais’ dialeticamente articulados aos designata, os recortes culturais.

Dessa maneira, a partir de determinada experiência, o metassistema conceptual, constituído pelos conceptus lato sensu, sua rede de relações e pelos complexos conceptuais, preside o percurso gerativo de enunciação de codificação e de decodificação. Do fazer interpretativo do enunciatário resulta a realimentação e auto-regulagem do metassistema conceptual e, conseqüentemente, a instância de competência de todas as semióticas-objeto dele dependentes, no âmbito de uma cultura. Desse complexo processo decorre a permanente (re)elaboração da ‘visâo do mundo’, a incessante (re)construção do mundo semioticamente construído. No âmbito da língua dita natural e dos seus discursos, determina, também, aquele processo a transformação e o enriquecimento do léxico.

 

 

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