ETIMOLOGIA E LEXICOGRAFIA ETIMOLÓGICA HODIERNA

Josenir Alcântara de Oliveira (UFPI/USP)

Atendo-se somente ao aspecto etimológico, esta comunicação pretende explicitar quatro das principais lacunas observadas nas obras lexicográficas etimológicas.

Para se atingir tal fim, invocar-se-ão apenas exemplos de dicionários etimológicos que fazem da raiz indo-européia o terminus a quo, por se entender que eles representam, devido a tamanho recuo formal-semântico, o último avanço, lato sensu, da Ciência Etimológica e, stricto sensu, da lexicografia etimológica.

1. A INDISTINÇÃO ENTRE HOMONÍMIA E POLISSEMIA.

Uma das primeiras lacunas a serem preenchidas por essa última tendência da lexicografia etimológica é o tratamento equivocado da polissemia por homonímia e vice-versa. Além de cometerem esse equívoco, os autores, que contemplam a raiz indo-européia em seu trabalhos lexicográficos, apresentam variações de acepções, como se vê infra:

d’HAUTERIVE:

pel- I. (i.-e.), pó.

pel- II. (europ.), idéia de esvoaçar.

pel- III. (i.-e.), dobrar, pregar.

pel- IV. alargado em plek-, trançar, enlaçar.

pel- V. (i.-e.), pequena palha.

pel- VI. (i.-e.) , pálido (amarelo claro cinza)

pel- VII., ple- (i.-e.), idéia de encher, de abundância, de grande número.

pel- VIII. (europ.), pele. (...)

ROBERTS & PASTOR:

pel-1. Pó; farinha.

pel-2. Pálido.

pel-3. Pregar, dobrar [prov. alarg. de *plek-].

plek-. Trançar, pregar.

pel-4. Pele; couro.

pel-5. Impelir; empurrar.

WATKINS:

pel-1. Poeira, pó, farinha.

pel-2. Pálido.

pel-3. Dobrar.

pel-4. Pele, couro cru.

pel-5. Vender.

pel-6. Empurrar, bater, conduzir.

pel-7. Prato.

pel-8. Encher.

Tal como está posto, todas essas formas se apresentam como homônimas uma das outras. Se se valer, porém, de recuperações semânticas, perceber-se-á que algumas dessas raízes são polissêmicas, enquanto outras realmente são homônimas, como se vê a seguir:

a. dobrar” > “o que tem forma dobrada”: *pel- “dobrar” > *pel- “prato”;

b. dobrar” > “curvar, flexionar” > “entrelaçar, enroscar” > “matéria-prima utilizada em entrelaçamento, costura, enroscamento”: *pel- “dobrar” > *pel- “pele, couro cru” (WATKINS); *pel- “pequena palha” (d’HAUTERIVE);

c. “dobrar” >curvar, flexionar” > “locomover-se, no ar, com uma série de flexões dos membros” > “voar”: *pel- “dobrar” > *pel- “voejar”;

d. “dobrar” > idéia de “dobrar, por mais de uma vez, a quantidade de algo” > “mais quantidade ou intensidade” > “muito” > “aumentar” > “encher”: *pel- “dobrar” > *pel- “encher”;

e. dobrar” > idéia de “dobrar, por mais de uma vez, a quantidade de algo” > “mais quantidade ou intensidade” > “muito” > “aumentar” > “encher” > “completar, cumprir” > “realização da transação de compra e venda”: *pel- “dobrar” > *pel- “vender”;

Essa proposta de recuperação semântica torna-se patente quando se lhe invoca dois citados cognatos do lat. plico - < i.-eur. *pel- “dobrar”: gr. plerów “encher, cumprir, pagar”; gr. mod. plerôno “encher, cumprir, pagar”. Embora opositivas, as ações de vender – como em monopólio – e de pagar encerram uma complementaridade.

f. “dobrar” > “flexionar” > “entrançar, entrelaçar” > “bater para compactar o entrançado, o entrelaçado”: *pel- “dobrar” > *pel- “bater”.

Das três acepções apresentadas por WATKINS, a acepção de “bater” entende-se ser a primeira delas pela proximidade com a acepção do terminus a quo. As duas outras acepções, “conduzir” e “empurrar”, são extensões dessa primeira, como se propõe infra:

dobrar” > “flexionar” > “entrançar, entrelaçar” > “bater para compactar o entrançado, o entrelaçado” > “conduzir batendo” > “empurrar, batendo, alguém ou algo para fazer uma ação contra a vontade”

Diante dessas concatenações semânticas, verifica-se que, a partir do i.-eur. *pel- “dobrar”, emanam as seguintes sete polissemias: “prato”, “encher”, “pequena palha”, “pele, couro cru”, “vender”, “voejar” e “empurrar, bater, conduzir”. Tal verificação tem como conseqüência o reconhecimento dos seguintes dois homônimos: “poeira, pó, farinha” e “pálido”.

Como se acaba de ver, apesar de todo o avanço que representam os dicionários etimológicos que contemplam as raízes indo-européias como termini a quibus, eles carecem de uma concatenação semântica que lhes desfaçam o equívoco entre raízes homônimas e polissêmicas.

Essa polissemia da raiz indo-européia *pel- “dobrar”, que já é grande, ficaria ainda maior se esta comunicação invocasse as alterações fonéticas dessa raiz, como *pele1-, pele2-, pele3-, *plak1-, *plat-, *plek-, *pleu-, as quais poderão ser retomadas em outra oportunidade.

2. O PROCESSO DE ABSTRAÇÃO.

Um outro equívoco não menos grave do que não distinguir polissemia de homonímia, é o atropelamento de um princípio da alteração semântica, observado no âmbito das línguas indo-européias: “todo significado abstrato procede de um concreto”. Aclare-se tal princípio com os seguintes exemplos:

1) Lat. peccare “tropeçar (com os pés)” > “tropeçar (espiritualmente, moralmente, psicologicamente)” > “pecar”;

2) Ing. mod. sin “mácula” > “o que macula o espírito” > “pecado”;

3) Lat. remorsum “ação de morder a si próprio” > “uma imagem do auto-flagelo, auto-punição”; “remorso”.

Esse princípio da alteração semântica permite a seguinte dedução: “Atendida sua necessidade de comunicação com os outros homens, o homem sentiu-se ávido por expressar o seu mundo interior, e, para esse fim, aplicou a este as imagens, as sensações do seu mundo exterior, as quais, sendo vivenciadas pelos demais da comunidade, viabilizaram o processo coletivo da abstração”. Se não se aceitar, pelo menos, a plausibilidade de tal desenvolvimento da linguagem, fica bastante difícil entender como um homem inventou uma palavra para uma coisa que ele nunca viu e, muito menos, como um outro homem, que também nunca a viu, compreende o que o seu interlocutor disse.

Ora, um dicionário etimológico tem por finalidade precípua o fornecimento de uma forma primitiva, real ou hipotética, seguida de seu significado primitivo, também real ou hipotético, o qual, se aceito o argumento do parágrafo anterior, não pode ser senão concreto. É na esteira desse raciocínio que se flagra, em, por exemplo, WATKINS, o atropelamento do referido princípio de alteração semântica:

i.-eur. *pri- “amar” > ing. mod. free “livre”, friend “amigo”; scr. priya- “querido, precioso”.

Nessa proposta, partir de um conceito abstrato, “amar”, não é um ato sem conseqüência para o estabelecimento da relação semântica entre a raiz indo-européia e os seus termini ad quos, uma vez que o aspecto fonético coincide com a projeção tradicional. Dos três cognatos, enquanto o último é sinônimo da raiz, os dois primeiros não são compreendidos na sua relação semântica imediata com a raiz indo-européia.

É na busca dessa compreensão que se percebe que o resgate semântico que se faz mister aqui é mui diverso daquele da relação “homonímia-polissemia”, tratado em primeiro lugar. Enquanto, na relação “homonímia-polissemia”, predominam as concatenações lógicas (resgates de metáforas, metonímias, analogias e demais operações lógicas), o resgate da relação entre i.-eur. *pri- “amar” e os seus termini ad quos tem como pré-requisitos as seguintes etapas:

1) Propor um terminus a quo concreto, a partir do qual se desenvolvam as concatenações lógico-semânticas, concretas ou abstratas;

2) Contextualizar sócio-historicamente a proposta supra, cuja aceitabilidade passa necessariamente pela compatibilidade entre o resgate semântico e os fatos sócio-histórico-culturais.

Seguindo essas etapas, propõe-se a seguinte cadeia semântica como elucidação da proposta de WATKINS:

dobrar, curvar, flexionar” > “fazer dobra, sulcar” > “aproximar superfícies, extremidades” > “proximidade entre coisas e entre pessoas” > “relação sócio- afetiva” > “semelhança, comparação” > “livre (qualidade comum aos pares, semelhantes)”

Seguramente, de todos os elos semânticos citados supra, o último pode dar a impressão de arbitrariedade. Tal impressão se deve ao fato de a relação entre livre (free) e os seus elos semânticos anteriores não ser explicitada somente pela concatenação lógica, mas pela concatenação histórico-lógica. Se se retomar o lat. populus “povo”, verificar-se-á que, originalmente, o conceito de “povo” era mais restrito do que o que se entende hodiernamente, comportando apenas os livres que tinham direito à voz política e à elegibilidade. Ideologicamente, tem sido uma prática corrente entre vários povos a afinidade entre os pares, os semelhantes sócio-políticos, que, gozando do status que o poder lhes confere, estendem somente aos seus amigos (friend), aos seus amados (priya-), aos seus próximos, enfim, aos seus, tudo de bom que o poder político pode dar, numa espécie de “os outros são os outros ...”. Faz eco a esse contexto os tratamentos que os elementos dessa classe se davam, como, por exemplo, Boni “os Bons” e Superiori “os Superiores”.

Um outro conceito que reforça essa interpretação é o de família. Enquanto a família hodierna envolve apenas pessoas vinculadas por um grau de parentesco, a família primitiva abarcava tanto pessoas quanto escravos, animais, propriedades e coisas, tudo isso pertencente a um senhor. Assim, nesse contexto, tudo que estava próximo a tal senhor era sua família.

Se se disser que esse i.-eur. *pri#- ,amor’ é a base formal-semântica do al. mod. Freund ,amigo’, frei ,livre’ e do ing. mod. friend ,amigo’, free ,livre’, ver-se-á que o tradicional alb. palë ,dobra, fila, canga, casal’ – principalmente esta última acepção – oculta em si a recuperação semântica proposta aqui.

Nessa reinterpretação e recontextualização, a Ciência Etimológica, a Historiografia e a Antropologia Cultural se completam, à medida que cada uma dessas Ciências confirma e consolida as propostas das outras duas. Essa lacuna da reinterpretação e da recontextualização sócio-históricas da etimologia, que é tão evidente nos dicionários etimológicos que partem do terminus a quo indo-europeu, é magistralmente preenchida por BENVENISTE, em Le Vocabulaire des Institutions Indo-Européennes.

3. DESCONSIDERAÇÃO DAS HOMORGÂNICAS.

Imbricada com as duas primeiras lacunas, quer como causa quer como efeito, está a desconsideração das homorgânicas, o que tem como principal prejuízo a negligência do reconhecimento de muitos cognatos. Para ilustrar essa lacuna, parecem ser suficientes três vocábulos latinos que são tratados como homônimos pela tradição, mas que são cognatos, se consideradas as variações homorgânicas da raiz, uma vez que a afinidade semântica é explícita entre os três: plico “dobrar”, flecto “dobrar, curvar” e valgus “que tem as pernas curvas, dobradas para o lado de fora”.

Contemplando esses três vocábulos, logo se reafirma que o núcleo semântico compartilhado por eles é “dobrar, curvar, flexionar”. O que impede, porém, de esses vocábulos serem tratados como cognatos é a variação fonética ocorrida na raiz: p ~ f ~ v.

Ora, para se entender a relação entre p e f , é necessário que se a recomponha gradativamente, como segue: p ~ ph ~ pf ~ f. Inclusive, essas duas extremidades têm uma alta freqüência no ramo germânico, como: i.-eur. *pel- “dobrar” > ing. mod. fold “dobrar”, i.-eur. *penkwe “cinco” > al. mod. fünf. Embora seja evidente que, no ramo itálico, a tendência do i.-eur. p é de se conservar, nada impede que, ao lado dessa alta freqüência, verifiquem-se outras freqüências mais baixas, como a que existe entre o lat. plico “dobrar” e o lat. flecto “dobrar, curvar”.

Do mesmo modo, para se entender a relação entre p e v , é necessário que se a recomponha gradativamente, como segue: p ~ b ~ v. O primeiro instante dessa série homorgânica é visualizado entre o lat. pila “bola” e o port. bila. O segundo instante tem a sua afinidade fonética comprovada em: port. assobiar / assoviar, covarde / cobarde, varrer / barrer. Aplicando-se a mesma conclusão do parágrafo anterior, pode-se afirmar que a relação entre p ~ v, ainda que de baixa freqüência, faz com que se reconheça que o lat. plico “dobrar” e o lat. valgus “que tem as pernas curvas, dobradas para o lado de fora” são cognatos, isto é, procedem de uma mesma raiz, i.-eur. *pel- “dobrar”.

Diante do exposto, pode-se firmar: além da afinidade semântica, a afinidade fonética, que deve englobar as homorgânicas, é indispensável para que não se percam os termini ad quos de uma determinada raiz indo-européia.

4. ESCANSÃO MORFOLÓGICA.

A possibilidade de estrutura morfológica do vocábulo indo-europeu é a seguinte:

+/-prefixo +/-redobro +raiz +/- sufixo lexical +/- sufixo gramatical

Desses elementos que gravitam em torno da raiz, os mais importantes para esta comunicação são os sufixos lexicais, os quais, por estarem colados a ela, são confundidos, não raras vezes, com a própria raiz, como, por exemplo, *plek-. Verificada essa confusão, adota-se, aqui, a seguinte postura teórica: qualquer segmento vocálico ou consonantal, ou a combinação de ambos, que siga a raiz será considerado como pertencente ao sufixo ou à desinência, mas nunca como pertencente à raiz. Assim, assume-se que o i.-eur. *plek- - proposto, por exemplo, por SKEAT e DEVOTO - trata-se de um radical, formado pela raiz de grau reduzido *pl-, seguida de um sufixo lexical *-ek-. Tomando-se o i.-eur. *pel- como exemplo, observa-se que compartilham do mesmo equívoco morfológico do i.-eur. *plek- - que, na verdade, trata-se de um radical oriundo do i.-eur. *pel- “dobrar”, e não de uma raiz - as seguintes formas:

Raiz em grau normal: *pel – t -; *pel - « -; pel – u -;

Raiz em grau reduzido: *pl8 - u -; *pl – eu -; *pl – eud -; *pl – euk –; *pl – eks -; *pl – at -; *pl – ud -; *pl – oud -;

Raiz em grau alongado: *pel – owi-.

Novamente, as conseqüências da indistinção entre raiz e radical interferem imediatamente na catalogação de novos cognatos que, por um lado, mantêm com a raiz indo-européia afinidade fonético-semântica, mas que, por outro lado, têm como elemento obstruidor a escanção morfológica. Eis alguns vocábulos latinos que ilustram esse prejuízo do não-reconhecimento de outros cognatos, emanentes do i.-eur. *pel- “dobrar”, pela indistinção entre raiz e radical: planus “plano”, placeo “agradar”, placo “acalmar”, planta “sola do pé”, plecto “(en)trançar, entrelaçar”.

A partir da exposição dessas quatro deficiências dos dicionários etimológicos que fazem da raiz indo-européia o terminus a quo, chega-se às seguintes conclusões:

1) Na base do primeiro e do último aspecto tratado aqui, subjaz a falta de definição inequívoca do que se entende por homonímia, polissemia, raiz e radical;

2) Quanto ao terceiro aspecto, o fonético, é urgente que, partindo-se sempre da afinidade semântica, acatem-se as homorgânicas como uma das fontes desveladoras de outros cognatos;

3) Na elucidação do processo de abstração, evidencia-se que somente o conhecimento lingüístico não basta, mas que o entrelaçamento das Ciências que gravitam em torno do homem e de sua cultura se faz uma questão sine qua non;

4) Nos aspecto morfológico, verifica-se a importância de se conhecer a extensão da raiz e do sufixo, para que aquela não seja confundida com o radical;

5) Na recuperação semântica, depara-se com dois tipos dela: um somente lógico, como no primeiro aspecto, e outro ideológico-lógico, como no exemplo do ing. mod. free “livre”, friend “amigo”; scr. priya- “querido, precioso”.

Diante do exposto, percebe-se que, mesmo representando o que de mais avançado há na lexicografia etimológica, os dicionários etimológicos que fazem da raiz indo-européia o terminus a quo ainda carecem de superar muitas lacunas das quais as quatro apresentadas nesta comunicação são apenas ilustrações das principais. Se é verdade que essas lacunas indicam o que ainda está por ser feito na lexicografia etimológica, não é menos verdade que elas explicitam, ao memso tempo, o muito que já se fez na Ciência etimológica e o desafio àqueles que se propuserem a abater essas lacunas.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BENVENISTE, E. Le Vocabulaire des Institutions Indo-Européennes, Paris, 1969, 2 vols.

DEVOTO, G. Aviamento alla Etimologia Italiana. Firenze. 1989.

GRANDSAIGNES - d’HAUTERIVE, R. Dictionnaire des Racines des Langues Européennes. Paris, 1949.

ROBERTS, E. A. & PASTOR, B. Diccionario Etimológico Indoeuropeo de la Lengua Española. Madrid, 1996.

SKEAT, W. W. An Etymological Dictionary of the English Language. Oxford, 1882.

WATKINS, C. The American Heritage Dictionary of Indo-European Roots. Boston, 1985.