O GÊNERO EXPLICAÇÃO DO DISCURSO DO PROFESSOR
NA INTERAÇÃO EM SALA DE AULA

Ana Paula Sarmento Carneiro (UFPB)

1. INTRODUÇÃO

Os estudos sobre letramento, ainda recentes no Brasil, têm trazido à tona questões de ensino e de aquisição de língua vistas não de uma perspectiva interna, isolada do social, mas no âmbito em que o social, o cultural e a história se apresentam imbricados.

Apesar de não se ter ainda uma definição consensual sobre letramento, visto que algumas definições priorizam apenas o aspecto social, outras o sócio-cultural, e outras incluem, além destes, o histórico, optamos por uma definição que achamos ser mais abrangente, que inclui os aspectos culturais e sócio-histórico, definição esta defendida por estudiosos como Soares (1998); Street (1984, 1993); Heath (1983); Magalhães (1995), dentre outros.

Assim, preocupada em discutir questões sobre letramento, surgidas a partir de nosso trabalho com alfabetização de adultos e de discussões outras em disciplinas cursadas no mestrado, realizamos este trabalho objetivando identificar, em cinco coleções de livros didáticos (LD) do Ensino Fundamental (livros da 1ª série), a concepção de letramento a elas subjacentes, a partir dos gêneros trabalhados, das propostas de atividades de leitura e escrita sugeridas e das orientações teóricas presentes no manual do professor.

Foi com o intuito de nos inteirarmos destes estudos que nos motivamos a realizar este trabalho, mas esperamos ainda, de forma despretenciosa, que ele possa lançar alguma contribuição aos professores do ensino fundamental.

2. ASPECTOS METODOLÓGICOS DA ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS

A escolha das cincos coleções de LD se deu pelo fato de 04 delas serem utilizadas em várias escolas tanto particulares quanto públicas de nossa cidade. E uma outra coleção, que é lançamento, por se apresentar como uma proposta para o letramento. Em cada uma delas analisamos apenas o livro de 1ª série do ensino fundamental, por dois motivos: o primeiro diz respeito à inviabilidade de se analisar todas as séries de cada coleção em um trabalho monográfico; o segundo, pelo fato de ser a 1ª série uma continuação do processo inicial de alfabetização para crianças que fizeram a série anterior (a alfabetização) e pelo fato de essa série ser a entrada de parte de crianças de escolas públicas na vida escolar. Nesses dois casos a criança está no processo inicial de aquisição da leitura e da escrita.

As coleções selecionadas são: ALP1 - Análise Linguagem e Pensamentos de M. Fernandes Cócco e Marco A. Hailer, editora FTD; Construindo a escrita, leitura e interpretação de textos de Carmen S. Carvalho e Mª das Graça Baraldi, da Ática; O prazer da Redação 1 de Samir Mesarani, editora Ática. A coleção Rosa - dos - Ventos . Língua Portuguesa 1 de Emmanuel C. de Oliveira e Mª da Penha Gonçalves, editora Moderna e a coleção Português - uma proposta para o letramento 1 de Magda B. Soares, da editora Moderna (lançamento).

A análise consistirá em observar em cada um desses LDs da 1ª série do ensino fundamental três unidades de ensino propostas: a inicial (unidade 1- U1), uma unidade do meio (unidade 2- U2) e a última (unidade 3- U3), para verificarmos os gêneros trabalhados, observando se há uma preocupação em apresentar textos de gêneros diferentes, socialmente utilizados, numa perspectiva não só de que o aluno os conheça em termos de estrutura, mas de que produza nesses gêneros e se os fazem relacionando com a realidade sua sócio-cultural. Isto nos permite avaliar se a proposta do livro, a partir dos gêneros trabalhados favorece apenas a aquisição e a decodificação individual da leitura e da escrita, enquanto código (proposta de alfabetização) ou se favorece a aquisição da leitura/escrita numa proposta de letramento.

O outro aspecto da análise consiste em comparar a orientação dada no manual didático do professor com as três unidades de ensino observadas, para confrontarmos o conceito de letramento do manual com as propostas de atividades. Para isto, faremos um resumo da proposta pedagógica, da teoria que embasa cada coleção, a fim de enquadrá-las numa perspectiva de alfabetização ou letramento, conforme especificamos na teoria.

3.1. Alfabetização e Letramento

Possivelmente, pelo fato de os estudos sobre letramento ainda serem recentes e por serem muitos os aspectos enfocados (letramento individual, social, ideológico, níveis de letramento, letramento e oralidade, dentre outros) não há uma definição única, consensual sobre letramento. O que se observa é uma tendência geral para se separar o conceito de processo de alfabetização do que se concebe como letramento. Em função disto, faremos uma ligeira abordagem sobre alguns aspectos do que se tem discutido sobre alfabetização e letramento que consideramos relevantes para este trabalho.

Tfouni (1997: 9) afirma que escrita, alfabetização e letramento, apesar de estarem inevitavelmente ligados, são apresentados por muitos estudiosos como sendo distintos. O que levaria a essa separação seria o fato de que os sistemas de escritas são vistos como um produto cultural e a alfabetização e o letramento como processos de aquisição de um sistema escrito.

Com base nesta concepção, Tfouni (op. cit.) propõe definições distintas para alfabetização e letramento. Segundo ela, a alfabetização se caracteriza pela aquisição de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem que são efetuadas pela instituição formal, a escola, práticas estas também denominadas de escolarização. O letramento, por sua vez, se preocupa em abordar os aspectos sociais, culturais e históricos da aquisição da escrita.

Tfouni testando a teoria cognitivista e individual da alfabetização de Scribner e Cole (1981) na qual defendiam que a alfabetização proporcionaria o desenvolvimento do raciocínio lógico através das alterações cognitivas que proporciona, mostrou, em pesquisas realizadas com adultos não-alfabetizados (1988), que esses têm capacidade para descentralizar seu raciocínio e resolver conflitos e contradições que se estabelecem no plano da dialogia. E concluiu que, o problema real está no fato de ser ou não letrada a sociedade em que os não-alfabetizados vivem e não apenas o fato de ele ser ou não alfabetizado.

O argumento de que se pode encontrar em grupos de indivíduos não-alfabetizados características que geralmente são atribuídas a indivíduos alfabetizados e escolarizados favorece a idéia de que letramento e alfabetização são distintos.

Entretanto, Soares (1998) fala em letramento individual e social. Quando ele se centraliza na dimensão individual, o letramento é visto como um atributo pessoal, posição também defendida por Wagner (1983: 5). Quando o foco se desloca para a dimensão social, o letramento é visto como “um fenômeno cultural, um conjunto de atividades sociais que envolvem a língua escrita, e de exigências sociais de uso da língua escrita”, (op. cit., apud Soares, 1998: 66).

As definições que priorizam, no fenômeno letramento, a sua dimensão social consideram que ele não é um atributo unicamente individual, mas sobretudo uma prática social:

“Letramento é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais”, ou seja, “é o conjunto de práticas sociais relacionadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social”, (Soares, 1998: 72).

Paulo Freire (1967, 1976) foi um dos primeiros educadores a realçar o caráter social, “revolucionário” da alfabetização, defendendo um modelo de letramento ideológico.

Entendendo a alfabetização como processo não apenas individual, William Teale (1982: 559) separa o conceito de alfabetização do conceito de escolarização, passando a defini-la numa visão mais ampla em que fatores sócio-culturais estariam interagindo.

Assim, ele mostra que a alfabetização não é algo que se dê apenas na escola e consistindo no apreender a habilidade, a tecnologia do ler e escrever, de forma individual, isolada de todo o contexto sócio-cultural e histórico, no qual os indivíduos estão inseridos e usando a linguagem.

Também nesta perspectiva social, Cook Gumperz (1991: 11) afirma que a alfabetização não consiste apenas em saber ler e escrever, ela é um fenômeno socialmente construído. Ao contrário da perspectiva cognitivista, que vê na alfabetização apenas a aquisição de habilidades lingüísticas e psicológicas da leitura e da escrita, a visão social a vê como “um processo social de demonstração da capacidade de adquirir conhecimentos” (op. cit.: 13). Desta forma, “a alfabetização é entendida também como um processo metacognitivo que torna possível outros progressos cognitivos e sociais” (op. cit.: 13).

As correntes de estudos que vêem a alfabetização na visão social, ou seja, numa perspectiva social do letramento, estão preocupadas em analisar o problemas da aquisição da leitura e da escrita não só no âmbito escolar, como noutras instâncias sociais, a família, a igreja, por exemplo (Heath, 1983). Muitos desses estudos procuram analisar a atuação das crianças em sala de aula e fora dela, observando o uso da língua, os problemas que interferem na alfabetização de crianças de grupos economicamente inferiores ao da classe média.

Outros estudos como os de Magalhães e Costa (1988) observam a interação professor/aluno analisando a assimetria do discurso em sala de aula; Kleiman (1995) aborda sobre a concepção e modelos de letramento; Terzi (1995) discute o papel da oralidade tornar a escrita significativa para crianças oriundas de famílias com baixo nível de escolarização e que tiveram pouco contato com a escrita na fase pré-escolar; Rojo (1995) também apresenta pesquisas sobre as relações entre a oralidade e a escrita e processo de letramento; Soares (1998) procura esclarecer o que é letramento e alfabetização e os mecanismos utilizados para medir e avaliar as práticas de letramento; Bortoni (1995) estuda variação lingüística em prática de letramento escolar, mostrando como a escola rejeita a variante lingüística utilizada pelos alunos das classes pobres. Este tem se colocado como um entre outros problemas da escolarização, ou seja, da escola como agência oficial do letramento.

Estas e outras pesquisas têm demonstrado que a aprendizagem não é apenas uma questão de processamento cognitivo, no qual os indivíduos recebem, armazenam e utilizam certos tipos de conteúdos que estão organizados em um currículo.

Não é fácil delimitar que concepção de letramento enfatiza, apenas o aspecto social, cultural ou histórico. O que se percebe é que a medida que outras áreas de conhecimento avançam e se comunicam em suas pesquisas com os estudos da linguagem, novas abordagens ou ramificações da visão social vão surgindo.

Se é o letramento um fenômeno histórico, social e cultural a sua aquisição não é neutra, ela está intimamente entrecortada pelo ideológico, pela história da sociedade, dos grupos de poder que determinam as regras do “jogo” dos indivíduos letrados e iletrados, segundo Tfouni não existe o grau gero de letramento (op. cit.: 23). Afirma ainda esta pesquisadora que, do ponto de vista sócio-histórico, o que existe de fato nas sociedades modernos são “graus de letramento”, sem que com isso se pressuponha sua inexistência, ou seja, não existiria o grau zero de letramento. Isto ocorre porque mesmo não sendo alfabetizado o indivíduo convive com práticas de leitura e escrita na sociedade, exemplo disto se dá quando o não-alfabetizado pede para alguém ler ou escrever uma carta.

Também Kleiman (1993: 769) mostrou que os estudos sobre o letramento permite identificar níveis diferentes de letramento nas comunidades. Segundo ela, isto ocorre porque cada grupo social faz diferentes usos e funções da leitura e da escrita.

Para uma compreensão melhor do que estas práticas significam, faz-se necessário entendermos a língua numa concepção que a define enquanto ação, atividade, produto da história, de um trabalho coletivo de experiências que se multiplicam de forma contínua e duradoura. O sentido, nessa acepção não é determinado a priori, depositado na memória dos falantes, mas é entendido como ação, um modo de vida, social e historicamente determinados pela situação da enunciação, pelas condições de produção.

Nessa concepção de letramento fica evidente que a aquisição da escrita não pode ser analisada como uma tecnologia neutra, a escrita tem usos particulares, que dependem das experiências textuais e dos propósitos dos membros da comunidade. Isto nos leva a concluir que a escola não pode continuar ensinando a língua desconsiderando os aspectos que a constituem: o contexto de uso (a enunciação), a finalidade e os interlocutores envolvidos.

3.2. O conceito de Gêneros do Discurso


Relevante ainda para esse trabalho são as contribuições de M. Bakhtin (1979) sobre gêneros do discurso e de Schneuwly e J. Dolz (1986) sobre agrupamento de gêneros, os quais se relacionam com o conceito de letramento na perspectiva que aqui defendemos. Portanto, importantes para o ensino de língua portuguesa e para analisarmos os textos presentes nos LDs.

As discussões sobre gêneros do discurso têm início com as contribuições que Bakhtin, op. cit.: 274) faz sobre a linguagem. Para ele, qualquer utilização da língua efetua-se em forma de enunciados orais e escritos resultantes das esferas de atividades humanas. Cada esfera comporta um repertório de gêneros, por isso há uma heterogeneidade deles, tanto orais quanto escritos. Assim, Bakhtin conceitua gênero do discurso como sendo formas do dizer sócio-historicamente cristalizadas, oriundas de necessidades produzidas em diferentes esferas da comunicação humana. Deste modo, o enunciado reflete as condições específicas de cada uma dessas esferas através de três elementos: o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional. Portanto, ao nos comunicarmos nas mais diferentes circunstâncias, utilizamo-nos de inúmeros gêneros orais e escritos que possuem características próprias.

Partindo da concepção de Bakhtin, Dolz & Schneuwly (1996, apud Rojo, 1998: 04), pesquisadores da universidade de Genebra, afirmaram que o desenvolvimento e a apropriação dos gêneros secundários, pelo indivíduo, se dão através de relações formais mediadas pela leitura/escrita em especial, mas não somente por ela. A escolha do gênero se faz em função da definição dos parâmetros da situação que guiam a ação. O indivíduo, desta forma, não cria o gênero, se apropriaria dele. Schneuwly (1994, op. cit.: 05) afirma que há uma relação entre meio-fim e nisto ele se baseia para dizer que o gênero é um instrumento. Essa relação entre escolha e utilização do gênero, segundo ele, se enquadra bem na concepção bakhtiniana.

Assim, com base na definição de Bakhtin, Dolz & Schneuwly e (1996, op. cit.) propuseram um agrupamento de gêneros ao perceberem que:

“os gêneros pertencentes a uma mesma esfera social de comunicação, apresentando semelhanças em suas situações de produção, compartilham outros aspectos a nível composicional e temático, apesar de apresentarem diferentes graus de complexidade” (Rojo, op. cit.: 04).

A partir disto, eles sugerem cinco desses agrupamentos, definindo-os a partir de três critérios: domínio social a que pertencem os gêneros; capacidade de linguagem envolvida na produção e compreensão desses gêneros e, por último, sua tipologia geral.

São eles: a) agrupamento da ordem do relatar - ligado ao domínio social da comunicação voltado à documentação e memorização das ações humanas, (relatos de experiências vividas, diários íntimos, diários de viagem, notícias, biografias, relato histórico etc); b) agrupamento da ordem do narrar - ligado ao domínio da cultura literária ficcional, (contos de fadas, fábulas, lendas, ficção científica, romance, etc); c) agrupamento da ordem do argumentar - ligado ao domínio social da comunicação voltada à discussão de problemas sociais controversos (diálogo argumentativo, carta de reclamação, debate, editorial, ensaio argumentativo, etc); d) agrupamento da ordem do expor - ligado ao domínio social da comunicação voltado à transmissão e construção de saberes, (texto expositivo, conferências, seminários, resenhas, artigos, etc.); e, e) agrupamento da ordem do descrever ações - ligado ao domínio social da comunicação voltado às instruções e prescrições, exige a regulação mútua de comportamentos (instruções de uso, instruções de montagem, receitas, regulamentos, regras de jogos, etc).

A partir dessa proposta de agrupamento, procuraremos enquadrar os textos presentes nos LDs, observando a variedade deles e como foram trabalhados.

3.3. O Livro Didático

O livro didático continua sendo uma das principais ferramentas do ensino fundamental tanto nas escolas públicas quanto nas particulares.

Apesar dos problemas de falta de escolas e verbas para o ensino fundamental, as escolas públicas recebem livros didáticos do MEC para as disciplinas básicas. Este fato demonstra como o LD é um material educacional importante que deveria funcionar como um prolongamento da ação pedagógica do professor, um recurso metodológico a mais, entretanto, o que se observa é que o LD tem demonstra a anulação do professor. Basicamente, a função passou a ser a de “repassador” de conhecimentos presente no LD e a de “fiscalizador” da aprendizagem desses conhecimentos.

Por ele apresentar uma visão da sociedade, de mundo e de ensino de língua, muitas críticas são feitas ao “poder” destes manuais pelo fato de poderem formar ou deformar o aluno no desempenho do seu papel de leitor/escritor na sociedade. Principalmente, porque para muitas crianças, ele é o único material escrito a que elas têm acesso. A questão central é se o LD possibilita ao aluno o desenvolvimento de uma consciência critica sobre a sociedade, a cultura, o mundo no qual o aluno está inserido. Esta é uma das preocupações centrais do nosso trabalho já que buscamos saber se as atividades propostas para leitura e escrita na 1ª série do ensino fundamental permitem aos alunos uma prática de letramento ou apenas de alfabetização, como já discutimos.

Provavelmente, tentando auxiliar a escolha de LD, o MEC através de órgãos executivos, criou mecanismos para avaliá-los dando o seu parecer para que professores e escolas dispusessem de alguma orientação no momento de escolhê-los. Exemplo disto é o Guia de Livro Didático de 1ª a 4ª séries - PNLD (Programa Nacional do Livro Didático-2000). Não cabe neste trabalho, fazermos avaliações sobre os critérios de avaliação dos LDs utilizados pelo MEC.

Quanto à questão da escolha do LD, sabemos que são vários os fatores que influenciam a sua escolha: a formação, atualização e experiência de ensino do professor, orientação da escola, modismos de linhas teóricas, etc. Nem sempre o LD escolhido, por melhor que seja, é bem utilizado pelo professor. O que não se pode esquecer é que escolher um LD implica em escolher uma proposta pedagógica para o ensino de LP que traz em si uma concepção de língua e de sua aquisição.

Não se trata aqui de se apresentar os “defeitos” dos LDs, mas de discutir-se as linhas teóricas que as embasam, ou seja, analisar se a concepção de língua nele presente propicia um ensino voltado para preparar o cidadão ou não. Sabemos da importância do LD enquanto material didático-pedagógico que objetiva facilitar o trabalho do professor. Entretanto, o LD não é visto pelo professor como uma ferramenta possível, em geral, ele é “dogmatizado” em sala de aula, mostrado como verdade absoluta. Um exemplo disto são as correções de atividades feitas ao “pé da letra” das respostas do LD do professor.

Outra questão crucial diz respeito à complexidade do LD, quanto ao fato de ele estabelecer o consenso entre objetivos do ensino, objetivos do livro com relação à concepção de língua oral, escrita e produção de texto veiculadas, como também os instrumentos de avaliação utilizados para a verificação do conteúdo, (Silva, Williany M., 1996: 02, inédito). Se por um lado ele facilita o trabalho do professor, por outro ele impõe, apresenta, em geral, uma visão de língua distante da realidade social, dos usos que os indivíduos de fato fazem dela. As conseqüências disto é uma prática de língua descontextualizada da vivência dos alunos.

Marcuschi (1997: 40 e 41) em seus estudos sobre a concepção de língua falada nos manuais didáticos observou que em geral, há uma visão monolítica da língua que valoriza apenas a escrita em detrimento do oral, sem se observar as relações de influências mútuas entre fala e escrita. Com relação à escrita, ele afirma que prevalece ainda o ensino da escrita da classe dominante, o padrão necessário, mas que, em geral, ocorre o desprezo às demais variantes utilizadas pelos alunos de classes sociais pobres.

4. Análise de Dados

Após o levantamento feito nos LDs com relação aos gêneros presentes nas três unidades analisadas, podemos situar as coleções em dois grupos: a) um grupo em que predomina uma concepção de aquisição de língua mais próxima de uma proposta de alfabetização e, b) outro grupo em que predomina uma concepção de língua numa perspectiva sócio-cultural do letramento.

Consideramos como uma proposta de aquisição de língua, enquanto alfabetização, aqueles LDs que, apesar de apresentarem textos pertencentes a diferentes ordem de gêneros socialmente utilizados, como: ordem do narrar (fábulas, lendas, contos de fadas); ordem do relatar (bilhete, carta, convite); ordem do expor (proposta de dissertação); ordem do descrever ações (receita), ainda priorizam atividades tanto de leitura quanto de escrita que se caracterizam como aquisição da língua enquanto código. Assim, observamos nesse grupo três características: a) concepção de língua como instrumento de comunicação numa visão cognitivista de aprendizagem que leva a preocupação com a interiorização do código da língua a partir do estudo da sua estrutura; b) não referência ao ensino de outras variantes lingüísticas; c) abordagem da língua oral como sendo simples conversa entre alunos ou entre professor e alunos em sala de aula sobre o assunto determinado. Analisemos como isto ocorre.

A concepção de língua como instrumento de comunicação caracteriza um ensino de língua voltado, basicamente, para a aquisição da estrutura, do código da língua. Esta abordagem prioriza atividades que enfatizam a compreensão de texto voltada principalmente, para a palavra, sua estrutura e sua ortografia em frases:

“Ligue as frases em que as palavras destacadas têm o mesmo sentido” (Rosa-dos-Ventos,

Língua Portuguesa 1, p. 94).

“Ortografia. Sublinhe, no texto, as palavras começadas com ga go gu. Complete com ga go ou gu” (op.cit., p. 66).

Elas priorizam assim, o estudo e o exercício sobre a estrutura mais do que a compreensão do uso da língua em diferentes situações. Como conseqüência dessa ênfase à estrutura da língua é comum encontrar atividades que são apenas cópia, preenchimento de espaços vazios do texto original:

(3) “Aqui você tem uma cópia ou reprodução do texto da leitura (A floresta do sacy, p. 06). Mas faltam nela os nomes dos moradores da floresta. Coloque esses nomes (onde tem uma linha com espaços em branco). Veja o texto original: lá estão todos os nomes”. (Redação 1, p.07).

Com relação às questões de interpretação, há uma predominância para aquelas que pedem a identificação de informações presentes no texto através de frases para serem completadas ou questões para marcar, incluindo as questões de vocabulário, observemos os exemplos:

(4) “Assinale as frases que têm o mesmo sentido.

( ) Dona Chica admirou-se com o berro do gato.

( )Dona Chica ficou alegre com o berro do gato.

( )Dona Chica ficou surpresa com o berro do gato.” (L. P.,Rosa-dos-Ventos, ).

(5)“Preencha as frases abaixo, indicando o tipo de sensação, como neste exemplo.

Pelo tato sinto que o dia está quente.

Pela _____________ sinto que este pano é azul.

Pelo _____________ sinto um perfume de rosa.” ( Redação 1, p. 75).

Apenas há uma ou duas questões para que o aluno se posicione quanto às idéias do texto. Em meio a essa abordagem que enfatiza a aquisição da estrutura da língua encontramos algumas propostas de atividades de produção de textos interessantes, por serem utilizadas na sociedade e poderem fazer parte do universo da criança de 1ª série, por exemplo:

“Preencha a ficha do veterinário com as informações sobre seu animalzinho” (L. P. Rosa-dos-Ventos, p. 100).

Porém, essas atividades são raras não constituindo um objetivo, uma proposta de ensino que se preocupa com o preparar o aluno para a realidade que o cerca.

Apesar deste LD (L. P. Rosa-dos-Ventos) apresentar textos pertencentes a gêneros de diferentes ordens, nas unidades (U) estudadas encontramos: na U1 e na U2 todos os textos pertencem ao gênero da ordem do descrever ações: na U1 : placas, imagens de ruas, sinais de trânsito; na U2: texto de enciclopédia (descrição de um mamífero); e, na U3 : textos da ordem do narrar, uma tira em quadrinhos (Mafalda - sobre o natal), observamos que as atividades propostas enfatizam a leitura como decodificação e a escrita como reprodução dos textos estudados.

Nessa coleção, o manual do professor não apresenta concepção explícita sobre a proposta teórico-metodológica de língua, como também não se refere a letramento, apenas faz explicações e orientações sobre os tópicos de gramática, compreensão e interpretação de textos presentes no LD com os títulos: estudo do texto, vocabulário, aprendendo mais sobre nossa língua, etc. no intuito de orientar o professor a saber como utilizá-los.

De igual modo, o LD “O Prazer da Redação 1”, específico como proposta de redação, apresenta, nas três unidades observadas, textos do gênero da ordem do narrar para as U1 e U2: para a U1 - “A floresta do Saci” (p. 06) na qual pede-se uma cópia; para a U2 - “Crianças enjoadas” (p.4), pede-se um resumo do texto e, da ordem do expor para U3 pede-se uma dissertação (falar sobre os alimentos) a partir da leitura do texto “O paladar” (p. 72), além de uma proposta de narração.

O manual do LD “O Prazer da Redação 1” não faz referência ao conceito de língua, apenas, em forma de questões, o autor apresenta a proposta do livro que consiste no ensino de redação através de três categorias: a reprodução, a paráfrase e a criação.

Deste modo, no manual do professor de ambas as coleções não há de forma explícita a perspectiva teórica sobre língua, porém podemos depreendê-la a partir das orientações dadas para o que seja texto, interpretação e estudo de gramática. Assim, pudemos depreender desses itens uma visão de língua que inclui não só a aquisição individual da tecnologia de ler/escrever, mas todo um universo social que a envolve, afirmando que o aluno chega a esse domínio, leiamos o seguinte trecho:

(7) “Baseado no trinômio ler/conversar/escrever, a interpretação busca incentivar o aluno a refletir sobre o texto e o tema ali apresentados. Isso desenvolve a orientação lógica do pensamento e transpõe os limites do texto, isto é, propicia a leitura do meio, da sociedade, da vida e das relações” (p. 4, Manual. R. dos Ventos).

Entretanto, essas observações nos parecem uma contradição quando comparadas à análise aqui apresentada: a qual nos mostrou a ênfase na identificação de informações contidas no texto e na aquisição do código escrito, e não numa abordagem social da língua.

O outro aspecto que caracteriza a visão de alfabetização nesse grupo de LDs está relacionado à valorização dada à língua padrão numa abordagem de ensino-aprendizagem que desconsidera as outras variantes lingüísticas em uso pelos vários grupos sociais, e conseqüentemente, as variantes usadas pelos alunos de classes populares. Nesses LDs não encontramos atividades que abordassem essas diferenças de uso da língua, nem mesmo como estudo de vocabulário, como por exemplo, mostrar o significado de uma palavra de outra variante lingüística presente no texto.

Por último, os LDs que classificamos com a concepção de alfabetização não abordam sobre a língua oral. O foco central do ensino é o aprendizado da escrita. Quando muito o que se observa é uma simples referência a atividades de conversa com o colega ou com o professor a partir de algumas sugestões de perguntas, como nos exemplos a seguir:

(8) “Comunicação e avaliação: Pronto? Já fez? Primeiro a professora vai dizer quais são as palavras que devem ir para os espaços em branco. Depois de conferir, a classe pode conversar sobre viagens. Para que lugar você gostaria de ir? De ônibus, de carro, trem, navio, avião, de espaço-nave...” (O prazer da Redação 1, p.13).

(9) “Para conversar:

Qual é a festa de que você mais gosta? Em que mês se comemora essa festa? Etc. Nessa festa as pessoas costumam trocar presentes? (esta atividade está na U3 - tira de Mafalda sobre o natal” (Coleção R. dos Ventos, p. 167).

As atividades de “conversa” são colocadas como a parte da interpretação ou da compreensão do texto. No exemplo citado em “11”, ele vêm após a atividade escrita, e em “12”, após o estudo do vocabulário. Este concepção de língua oral nos lembra estudos de Marcuschi (1997: 41) ao afirmar que predomina em muitos LDs “a idéia monolítica de língua escrita, é como se a oralidade não existisse” ou, como vimos, é como se fosse uma simples conversa em sala de aula, sem o objetivo de desenvolver a língua oral com atividades que treinem habilidades específicas de argumentação, refutação, análise, comentário, comparação etc.

Deste modo, o que se observa nos dois LDs analisados é que não há a preocupação em estudar as diferentes ordens de gêneros, observando os diferentes interlocutores e a situação em que eles são utilizados. Evidentemente, essa nossa análise foi feita em apenas uma série de cada LD, não sabemos se nas demais a abordagem se dá dessa forma. Entretanto, este fato não invalida as observações feitas neste trabalho, uma vez que não precisamos esperar por outra série para fazermos uma abordagem desse nível.

Resumindo, apesar de apresentarem textos pertencentes a diferentes ordens de gêneros: narrar (poesia, fábula, etc.); expor (dissertação); relatar (carta, bilhete, convite) descrever ações (receita), a abordagem feita não situa esses gêneros observando a função deles e sua importância social. É um mero conhecimento da existência desses textos e de exercícios para apreensão de sua estrutura. Portanto, essa concepção que prioriza a simples posse da tecnologia individual de ler/escrever como vimos nos LDs (O Prazer da Redação 1 e L. Portuguesa-Rosa-dos-Ventos) enquadra-os na visão de alfabetização e não do letramento, pois como afirma Soares (1998: 72) “ letramento é o conjunto de práticas sociais relacionados à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto”.

O outro grupo de coleções que se enquadra como proposta de letramento é aquele que não só apresenta atividades de leitura e escrita com base em gêneros utilizados na sociedade e que pertencem a diversas ordens: narrar, descrever ações, expor, relatar, mas que também tem como preocupação principal fazer com que o aluno aprenda esses gêneros para saber utilizá-los, entendendo a sua função na realidade sócio-cultural na qual ele vive. Desse modo, as atividades de ler e escrever são vistas dentro de um contexto maior que o escolar, no qual o indivíduo está inserido antes, durante e após a escola. Nessa abordagem, o aluno não deve produzir textos unicamente para a escola e nem para o professor, mas para que ele se situe no seu universo social, sendo não só leitor como também produtor desses gêneros.

Assim, são características desse grupo: a) concepção de língua como ação, interação entre os indivíduos numa proposta socioconstrutivista de aprendizagem vendo sua utilização, sua função social na perspectiva do letramento; b) estudo de outros registros lingüísticos além do formal, utilizados socialmente, principalmente no universo da criança; c) presença de atividades voltadas para a aquisição da língua oral mostrando-a distinta da escrita

Os LDs ‘ALP1” e “Construindo a Escrita 1”apresentam, no manual do professor, a concepção socioconstrutivista de aprendizagem a qual defende a idéia que o aluno constrói seu conhecimento de forma conjunta. Nesta abordagem, o conhecimento não é cumulativo, mas construído pelo aluno enquanto sujeito e não objeto da aprendizagem. Esta abordagem traz hoje em si uma convergência das idéias de Piaget (1978, 1981) e de Vygotsky (1989), enfatizando a construção do conhecimento numa visão social, histórica e cultural, em outras palavras, na visão do letramento. A preocupação principal está em desencadear reflexões sobre como a língua escrita se organiza e articula, mostrando-a distinta da fala, como outro sistema de organização. Afirmando que o aluno a aprende na interação com os outros, essa teoria defende a necessidade de uma abordagem social do uso que os indivíduos realmente fazem da língua.

No manual do professor do LD “ALP1” os próprios autores definem como proposta para o ensino de língua:

“Capacitar o aluno para a leitura e a escrita em todos os aspectos” (Cócco, M.F e Hailer, M.A 1999:02). Apesar de apresentar uma proposta de ensino de língua bastante ampla, desta afirmativa podemos deduz a proposta do letramento (aprender a ler e escrever no aspecto individual e social).

Diferentemente das demais coleções, o LD “Português - uma proposta de letramento 1” já se coloca na perspectiva do letramento, o qual é definido pela autora, na orientação ao professor:

“Letramento é o estado ou condição de quem não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e de escrita que circulam na sociedade em que vive conjugando-as com a práticas sociais de interação oral.” (Soares, Manual do Professor, 1999: 03).

Defendendo uma concepção de língua como interação, ação entre indivíduos, ou seja, a língua vista em seu funcionamento, vamos observar como uma das características desse grupo a preocupação em escolher textos que componham uma unidade temática, ou seja, os assuntos tratados nos textos giram em torno de uma temática maior, de um assunto mais amplo, permitindo, assim, uma maior diversidade de textos de diferentes ordem de gêneros dentro de uma mesma temática.

No LD “Construindo a escrita 1”, apesar de privilegiar a temática infantil com textos da ordem do narrar (contos de fadas), apresenta textos pertencentes a outras ordens de gêneros como: ordem do descrever ações: receita; da ordem do relatar: diário, notícia, dentre outros.

O LD “ALP1” os temas giram em torno de animais e do mundo próximo à criança: o corpo, a família, o amigo.

Mas é no LD “Português - uma proposta para o letramento 1”, que há a presença de unidades temáticas mais delimitadas, relacionadas à vivência da criança e com a preocupação de situá-la em seu mundo infantil para conhecê-lo melhor. Vejamos as unidades: a primeira ‘É hora da escola” que situa a criança no contexto da escola conscientizando-a de suas necessidades, discutindo seus problemas (carregar o peso das mochilas por exemplo), mostrando a necessidade de se separar a hora de brincar da hora de estudar; a segunda, intitulada “Muito prazer Dona Rua” fala sobre a criança e a rua (diferentes ruas, leituras nas ruas, etc); a terceira, “O melhor amigo do homem” aborda sobre o cão: raças e cuidados, e a quarta: “Bruxas? Bruxas!”, volta-se para o mundo da fantasia, a realidade das bruxas. Em todas as unidades há gêneros de ordens diferentes nas quais os assuntos estão relacionados, mostrando outros aspectos da mesma temática.

Analisando o conceito de letramento que se depreende a partir das atividades de leitura e escrita desses LDs, podemos enquadrá-los numa visão social, na perspectiva do letramento, uma vez que a língua é entendida como sendo interação, portanto, construída socialmente. Daí a necessidade de se abordá-la em seu uso e sua função, como já foi especificado na fundamentação teórica. Primeiramente, mostraremos como se dá a distribuição de diferentes ordens de gêneros nas três unidades analisadas, em seguida, os aspectos que as enquadram no letramento. Vejamos como as unidades (U) se apresentam. No LD “ALP1” encontramos os gêneros da ordem do expor para a U1 reflexões sobre a língua, sobre o alfabeto e as diferentes letras (p. 8 a 12); e da ordem do narrar para as U2 (texto: “O super-herói e seus hiperinimigos” de Ziraldo, p. 88) e U3 (texto: “Ficção científica” de José P. Paes, p. 144), ambas trabalhando como produção textual escrita o bilhete, evidentemente com as demais questões de interpretação.

No LD “Construindo a Escrita 1” encontramos as seguintes ordens de gêneros: na U1 e na U3 o gênero de textos é da ordem do narrar. Na U1 com o texto “O gato de botas” (p. 06 a 12), a única atividade é a produção de um texto não-verbal (p. 13); na U3 para o texto “A coisa...” de Ruth Rocha (p. 86), a produção escrita solicitada são questões de compreensão e interpretação, apresentadas em duas partes, com propostas também de produções não-verbais (p. 88). Esta coleção apresenta ainda outros gêneros: poesia, receitas, notícias, cantigas de rodas, textos científicos, informativos.

Nas unidades analisadas no LD “Português- uma proposta para o letramento 1” constatamos a presença de textos pertencentes aos seguintes agrupamentos de gêneros: da ordem de relatar U1 - “A escola”, poema de J. de Nicolas (p. 8); na U3 -cartaz (p. 188), convite (p. 189), cardápio (p. 190), da ordem do descrever ações: receita (p. 191); como produção escrita pade-se lista de ingredientes (p. 194); e verbete na U2 “Começo de uma página - verbete da palavra cão” (p. 92) e a capa do dicionário “Aurélio Infantil” de Ziraldo. As questões se referem ao uso e importância do dicionário. Para a produção escrita pede-se para a U1 - lista; para a U2 - apenas interpretação e para a U3 - construção de narrativas, elaboração de receitas e cardápios.

Analisando as atividades de leitura e de escrita vimos que elas se caracterizam por preparar o aluno para o mundo que o cerca. Observamos a preocupação em apresentar não só os elementos da estrutura dos textos, o como são feitos, mas a sua função social com questões que indagam quanto ao produtor e leitor do texto. Vemos questões do tipo:

(10) Para quem o bilhete foi escrito? Quem assinou o bilhete? Por que aparecem nesse bilhete data e hora? E o autor do bilhete ele conhece o leitor? ( “Construindo a Escrita 1”, p. 54 a 57).

Em outro exemplo, pede-se para que se faça o bilhete numa situação diferente da trabalhada no texto, a U3 do LD “ALP1”, por exemplo, apresenta ainda outra proposta para a produção de bilhete, contextualizada pela história lida “Pequeno Príncipe”, (ALP1, p. 153):

(11) “Imagine que o piloto precisou partir e não pôde se despedir pessoalmente do principezinho. Deixou um bilhete escrito para ele. Escreva esse bilhete no espaço abaixo”.

Nessa mesma abordagem o LD “ALP1” trata o bilhete (p. 92 e 93), especificando sua função. O mesmo ocorre com o estudo do texto carta (Construindo a Escrita 1, p. 58 a 61), exemplo:

(12) “ No bilhete, o autor escreve de uma forma “meio parecida” com a forma de se falar. E nesse carta, isso também acontece?” (ibid., p. 60).

Na U2 do LD “Construindo a escrita 1” o texto presente se enquadra na ordem do descrever ações: receita de bolo de chocolate (p. 44) e a abordagem feita compara-o com os textos de fábulas lidos, vendo a sua função social:

(13) “Para que se escreve uma receita culinária? (Construindo a Escrita 1, p. 45).

Noutras atividades se observa, ainda, a preocupação em situar o aluno no mundo que o cerca, procurando formar a consciência de cidadão:

(14) “ Seu desenho e seu texto sobre rua está no mural, ao lado dos de seus colegas. Para identificar seu desenho e seu texto, preencha esta ficha com os seus dados” (nome, endereço, fone, escola, série, turma, professor, Português- Prop. para o letramento 1, p. 63).

No LD “Português- uma proposta para o letramento 1” além das propostas diversificadas, todas as orientações sobre a função social dos textos, como também as orientações dadas ao professor vêm ao lado de cada atividade, por exemplo:

(15) “Após a leitura silenciosa, conversar sobre o caderno ou o livro de receitas como um tipo de portador de escrita nas práticas sociais, discutir sua função: registro para apoio à memória.” ( p. 191).

Diferentemente dos livros que se enquadram na concepção de alfabetização, nestes se observa uma visão de língua em seu funcionamento, buscando incluir os diferentes usos, registros presentes na sociedade (formal e informal), como no exemplo:

(16) “‘saco’ é uma gíria que podemos usar quando falamos com nossos amigos. Lúcio não poderia falar assim com o professor. Que palavra ou expressão Lúcio poderia usar em vez de ‘saco’ para falar com a professora?” (Português - proposta para o letramento 1, p. 24 e 25).

Dos LDs analisados este é o que mais se caracteriza na perspectiva do letramento, principalmente porque não há uma preocupação com exercícios que treinem o aluno para aprender a estrutura, no que se refere a questões gramaticais da língua. Ele prioriza a produção textual, a leitura, a interpretação; por outro lado, há o enfoque sobre aspectos da oralidade da língua. Neste aspecto ele difere dos demais que enquadramos como letramento por abordar a oralidade em vários momentos que são apresentados com os títulos: linguagem oral, o qual motiva o debate (P. 68); interpretação oral e língua oral - língua escrita. Vejamos um exemplo do item linguagem oral:

(17) “No livro Pirata de Palavras, de onde foi tirado o texto, a autora explica: Heitor imaginava criar uma grande história, colecionando palavras. È possível criar uma história colecionando palavras?

Discuta com seu professor e seus colegas: apresente o seu ponto de vista; ouça com atenção o ponto de vista de seus colegas; defenda o seu ponto de vista, se julgar que ele é o mais certo; -9oncorde com seu colega, se julgar que o ponto de vista dele é o mais certo.” (Português - uma prop. para o letramento, p.61).

Mesmo quando apresenta questões de ortografia estas são mostradas de forma bastante reflexiva e não mecânica, observando as diferenças entre língua oral e língua escrita, como por exemplo:

(18) “Observe a relação entre o que você fala e o que você escreve:

Leia em voz alta: HEITOR

Se trocarmos a letra H pela L HEITOR se transforma em LEITOR”. (Port. Proposta para o letramento, p.71).

Começando, assim, o jogo do troca-letras com outras palavras, sempre fazendo a relação da língua oral com a escrita. È importante frisar que das três coleções desse segundo grupo (letramento), esta é a única que não se preocupa em ensinar ortografia numa visão mecânica, de treino, isolada de contextos.

No LD “ALP 1” também encontramos itens relativos a oralidade: um denominado “Produção Oral” (p. 33), em que se pede para os alunos fazerem a apresentação oral de uma notícia; e outro denominado de “Produção Oral e Escrita” (p. 139), na qual se pede a partir do texto “A eleição na mata” de M. A Hailer e M. F. Cócco, que o aluno identifique os ouvintes do leão e produza um discurso para depois fazer a sua leitura. Neste LD estas ocorrem em proporções bem menor se comparadas às do LD “Português-Proposta para o letramento1”. De modo geral, nos três LDs deste grupo observa-se o estudo da escrita em comparação com a língua oral, mostrando as diferenças entre essas duas modalidades.

Mas é no LD “Português - uma proposta para o letramento 1” que encontramos uma maior diversidade de gêneros estudados: preenchimento de fichas individuais e outras, cartazes, diário. A U2 trabalha o dicionário, começando pela capa identificando nome, editora, função, o interlocutor do dicionário, para em seguida, expor o verbete da palavra cão. Também na U3 encontramos gêneros diversos tais como: cardápio, receita, lista, convite, todos na mesma temática “Bruxas”, tanto para a leitura como para a produção escrita.

Resumindo, este grupo apresenta uma abordagem de língua preocupada com a realidade do aluno, a fim de que ele possa usá-la no meio social em que vive. Isto não quer dizer que não se levem em conta aspectos cognitivos e individuais da aquisição da língua, todos eles são vistos na perspectiva social, cultural, na visão do letramento, como vimos nos vários exemplos analisados.

5. Considerações Finais

 

Após esta análise, pudemos constatar a importância de uma abordagem de ensino de língua na perspectiva do letramento, pois permite a preparação do cidadão, a fim de que ele possa atuar na sociedade; além de aproveitar, ao máximo, o tempo em que o aluno passa na sala de aula, ensinando-lhe o que realmente possa lhe ser útil para atuar no mundo e não apenas na escola. Possivelmente, por fazer uma abordagem que considera a realidade do aluno, de sua língua e que o vendo-o como sujeito, esta perspectiva permitirá a diminuição da evasão e da repetência escolar, problemas cruciais hoje na escola.

Das coleções analisadas duas se identificam com o conceito de alfabetização (processo de aquisição individual da leitura e da escrita), são elas: “Língua Portuguesa - Rosa-dos-Ventos 1” e “O Prazer da Redação 1”. As outras três, com o conceito de letramento, entendendo este como os usos que os indivíduos fazem da leitura e da escrita nos diversos grupos sociais (Soares, 1998). São as coleções: “ALP 1”, “Construindo a escrita, leitura e interpretação de textos 1” e “Português - uma proposta para o letramento 1”, sendo esta última a que mais corresponde a essa visão teórica.

Finalizando, podemos afirmar ainda que, se não é fácil encontrar coleções que se preocupem com uma abordagem de letramento hoje, também não é fácil encontrar professores de primeira fase que estejam cientes desta abordagem e que possam encaminhá-la com ou sem o LD. Em geral, ele está habituado a seguir métodos em LDs que enfatizam o aprendizado da estrutura da língua, numa perspectiva de alfabetização. Isto nos leva a afirmar que, uma proposta de letramento poderá não ter efeito, se o professor não souber conduzi-la.

O importante é sabermos que não se trata, neste trabalho, de colocarmos um LD superior aos demais, pois sabemos que o professor pode fazer do LD apenas mais um instrumento de aprendizado e não o único, ou seja, mesmo o LD não sendo uma abordagem do letramento, o professor ciente desta proposta, pode encaminhá-la, se utilizando de gêneros do discurso de diversas ordem e socialmente utilizados.

Apesar de essas discussões ainda serem recentes no Brasil, vimos que o conceito de letramento na perspectiva sócio-cultural, aqui defendida, começa a despontar como propósito do ensino de língua portuguesa. Além das coleções aqui mencionadas, citamos a proposta de alfabetização de jovens e adultos, o projeto “Alfabetização solidária”, divulgada pelo MEC, cuja preocupação é o letramento.

Desse modo, só nos resta esperar que outros LDs comecem a encaminhar propostas de ensino de língua na perspectiva do letramento.

5. Referências Bibliográficas

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