O MARQUÊS DE POMBAL
E A IMPLANTAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL

REFLEXÕES SOBRE A PROPOSTA DO DIRETÓRIO DE 1757

Lygia Maria Gonçalves Trouche (UFF)

 

Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?

 

Nosso propósito, neste texto, é o de apresentar um panorama da política lingüística conduzida por Portugal para o Brasil colonial, culminando com a promulgação, em 1757, da lei Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão. Trata-se de documento jurídico com a finalidade de regulamentar as ações colonizadoras em terras brasileiras.

A atitude de Portugal em relação à questão lingüística no Brasil colonial reflete uma preocupação com a estreita ligação entre língua e domínio imperial, entre língua e espaço português, entendido este último como uma identidade cuja coesão interna o defenderia contra a corrupção externa.

No estudo da proposta lingüística do Diretório, trabalharemos com alguns conceitos, tais como ideologia, sujeito, história, interpretação, memória.

Assim, nossa análise da proposta lingüística do Diretório em relação ao Brasil colônia busca compreender e evidenciar como os sentidos foram produzidos. Partimos do pressuposto de que sujeito e sentido se constituem mutuamente. O lugar de onde se fala constitui o dizer, logo as diretrizes da política lingüística contidas no Diretório estão baseadas nas concepções do século XVIII de civilização, barbárie e religião.

Logo de início, registramos o silêncio simbólico de nossos mais ilustres pesquisadores em relação a este documento, nas diferentes obras em que tratam da História da Língua Portuguesa no Brasil. Este silêncio cria, além de um constrangimento perturbador, um inequívoco mal-estar com sua constatação. Seria uma espécie de “trauma” no sentido freudiano ou de filiação ideológica de nossa academia? Será possível ignorar a história? Fazemos exceção a trabalhos do professor Celso Ferreira da Cunha que, em Língua, Nação, Alienação transcreve em notas (página 92) os parágrafos do Diretório referentes à obrigatoriedade do uso do português, e discute o assunto em pequeno capítulo intitulado ‘O Diretório e a Reforma Pombalina’ de seu livro A Questão da Norma Culta.

Também menciono outro importantíssimo trabalho de natureza ecdótica - Língua e inquisição no Brasil de Pombal - do professor Dr. José Pereira da Silva que fixou documento de extrema importância para a história da língua portuguesa e para a história política e religiosa da Amazônia. Trata-se das Questões Apologéticas, texto em que o padre Manuel da Penha do Rosário se defende perante o tribunal da inquisição por evangelizar os índios em sua língua vulgar e não na portuguesa, conforme ordem da Coroa. A defesa do padre é uma prova inconteste do predomínio da língua dita geral e do desconhecimento da língua portuguesa pelas populações indígenas.

Outro estudo importante é uma tese de doutoramento na área da antropologia, publicada em 1997, pela editora da UNB, de Rita Heloísa de Almeida, intitulada: O Diretório dos índios: um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Trata-se da leitura e interpretação da lei colonial em toda a sua abrangência, situada no contexto da tradição de conquista dos povos europeus e, em particular de Portugal.

Lembro, também, os trabalhos contemporâneos do grupo de análise do discurso da UNICAMP, que tem desenvolvido o projeto denominado História das idéias lingüísticas: construção de um saber metalingüístico e a constituição da língua nacional.

A partir deste pequeno quadro de informações, pudemos situar a influência e o interesse que a discussão tem tomado no campo do saber das Letras atualmente no Brasil.

Parece-nos fundamental a incursão em nossa história não só para entendermos a situação lingüística no Brasil do século XVIII, bem como para contrastarmos esse período com o século XIX, cujos impasses e problemas serão bastante diversos. Enfim, estaremos procurando filiações de sentido e possíveis relações entre os movimentos de imposição da língua portuguesa e os movimentos de insurreição nativa, já após a independência brasileira, enunciados no confronto com Portugal sobre a representação da língua do Brasil.

Podemos partir de uma conclusão óbvia, no entanto, fundamental: se houve a necessidade de uma legislação sobre as formas de implantação da língua portuguesa, é porque esta não era a língua corrente no Brasil.

A preocupação de Portugal com a questão lingüística e cultural no Brasil colônia não está desvinculada de uma ideologia marcante na época, e segundo Rita Heloisa de Almeida2:

É a partir das missões, principalmente na gestão do Diretório, que se verifica o surgimento de um conceito de civilização cada vez mais associado a uma ação a realizar-se em espaços planejados. Nestes, os índios são instruídos na religião cristã, aprendem ofícios, integram atividades econômicas e estabelecem formas de convívio por meio do comércio, do trabalho e do casamento com os brancos. Nestes espaços, chamados, conforme a cada época, ‘missão’, ‘povoação’, ‘aldeamento’, ou ‘posto indígena’, transcorre uma mesma ação que coetaneamente seria compreendida como sendo uma obra religiosa, uma empresa colonial, um serviço assistencial.

A imposição da língua portuguesa foi uma questão fundamental para Portugal, no sentido da preservação da colônia, contudo, a concorrência do português com a língua geral ainda perdurou até a segunda metade do século XVIII, quando o discurso das autoridades portuguesas se centrou numa política de difusão e obrigatoriedade do ensino da língua portuguesa.

Nas décadas iniciais do século XVI, predominavam as vozes indígenas com a indianização do colonizador e a ameaça constante de outras línguas européias trazidas, notadamente, por franceses, espanhóis e holandeses. Como se sabe, a grande luta travada pelos colonizadores portugueses, nos primeiros tempos da colonização do Brasil, não foi contra os indígenas, mas contra europeus em suas constantes incursões à nova terra americana.

A língua geral era hegemônica, sendo usada por todas as camadas sociais, passando do domínio privado para o público e, apenas aí, encontrando alguma resistência da língua portuguesa. No espaço doméstico, as índias, unindo-se a portugueses e mamelucos, transmitiam por sucessivas gerações não só a língua, mas os costumes, enfim, uma cultura. Como exemplos, relata-nos Sérgio Buarque de Holanda sobre alguns depoimentos da época:

Um deles é o inventário de Brás Esteves Leme, publicado pelo Arquivo do Estado de São Paulo. Ao fazer-se o referido inventário, o juiz de órfãos precisou dar juramento a Álvaro Neto, prático na língua da terra, a fim de poder compreender as declarações de Luzia Esteves, filha do defunto, ‘por não saber falar bem a língua portuguesa’.

Fator importante de reforço da língua geral no espaço doméstico era a escravidão indígena. O português estava restrito aos documentos oficiais que, contudo, deveriam ser comunicados à população em língua geral, para que pudessem ser entendidos. Não por outro motivo sabemos que foram freqüentes os pedidos das autoridades portuguesas para que se enviassem à capitania vigários versados na língua dos índios.

Tal situação levou a Coroa portuguesa, através de seu ministro, Marquês de Pombal a tomar uma atitude vigorosa no sentido de implantar a língua portuguesa definitivamente em terras brasileiras.

Segundo a antropóloga Ruth Heloísa de Almeida5, “o Diretório exprime uma visão de mundo, propõe uma transformação social, é o instrumento legal que dirige a execução de um projeto de civilização dos índios articulado ao da colonização.”

O Diretório dos Índios vigorou entre 1757 e 1798 com a finalidade de instruir o comportamento do colonizador no que se refere às populações indígenas, à definição da fronteira norte do Brasil e seu povoamento. Através das diretrizes propostas pelo Diretório, Portugal buscou a construção de uma nova ordem social com a incorporação dos índios à colonização.

Uma tônica do processo de colonização foi a idéia de civilizar os índios. Aqui estão inter-relacionados conceitos de civilização e colonização. Norbert Elias em O processo civilizador (1990, p.23) define civilização como “um conceito que expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo.” E Rita Heloisa de Almeida em O diretório dos índios (1997,p.24) entende civilização “como uma ação deliberada sobre os índios do Brasil, no sentido de sua conversão aos valores e comportamentos dos colonizadores portugueses.” Evidentemente que o Diretório está inserido numa lógica ou ideologia dominante no século XVIII, partilhada por franceses, espanhóis, ingleses em seu caráter de povos conquistadores de terras fora da Europa - colônias americanas e africanas. Sobre a base em que se sustenta o imperialismo, cabe a precisa análise de Edward W. Said6:

Nem o imperialismo, nem o colonialismo é um simples ato de acumulação e aquisição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação, bem como formas de conhecimento filiadas `a dominação: o vocabulário da cultura imperial oitocentista clássica está repleto de palavras e conceitos como ‘raças servis’ ou ‘inferiores’, ’povos subordinados’, ‘dependência’, ‘expansão’ e autoridade. E as idéias sobre a cultura eram explicitadas, reforçadas, criticadas ou rejeitadas a partir das experiências imperiais.

No estudo da proposta do Diretório tomamos o termo ideologia como interpretação de sentido em certa direção; a ideologia não é ocultação, é a naturalização do que é produzido pelo histórico.7

Assim, na leitura do Diretório buscamos a compreensão de como os sentidos foram produzidos e reproduzidos. Lembramos que, se o lugar de onde se fala constitui o dizer, então o sujeito da enunciação do Diretório se constitui nas concepções filosófico-políticas do século XVIII.

O processo de civilização que a coroa portuguesa deseja implantar implica, necessariamente, a idéia do ‘outro’ (o não eu) e o confronto indisfarçável entre posições de sujeito, com suas redes de sentidos e seus universos semanticamente estabilizados. Nossa inserção no mundo se dá pela linguagem, logo, o encontro dessas duas linguagens - a da ‘barbárie’ e a da ‘civilização’ - haverá de produzir graves crises nas redes de sentido a que se vinculavam. O acontecimento do encontro desses dois mundos provocou uma ruptura nas cadeias dos sentidos e a decorrente necessidade de (re)organização e (re)significação da realidade. Nesse embate inevitável, a prevalência da força do mundo europeu começa a criar uma nova realidade a que o outro - o índio - deverá submeter-se, principalmente, pois, ainda segundo Edward Said8 “essa luta é complexa e interessante porque não se restringe a soldados e canhões, abrangendo também idéias, formas, imagens, representações.”

O termo civilização, atravessado por vários significados, no documento de que nos ocupamos - o Diretório - implica uma intenção educadora, pois pretende uma transformação do outro. Um processo de civilização que implique uma enérgica ação pedagógica com vistas à mudança, só se pode definir de forma autoritária, em relações assimétricas de poder.

O Diretório, com 95 parágrafos, dadas as suas características de uma carta de princípios e de ações e, pelas circunstâncias históricas, assemelha-se a uma constituição: trata da civilização dos índios; da demarcação de fronteiras; do povoamento; da produção e do comércio de espécies nativas; distribuição de terras para o cultivo; formas de tributação; relações de trabalho dos índios com os colonos (moradores); edificação de vilas; regras de convívio social entre brancos e índios; casamento e da figura do ‘Diretor’- personagem central que vinha substituir o missionário.

Do 1º parágrafo ao 16 trata-se da questão da civilização dos índios - a função do tutor e o ideal de civilização que se deseja transmitir aos índios. Do parágrafo 17 ao 73 trata-se de assuntos diversos relacionados à economia - agricultura, fiscalização e tributação, comércio, distribuição e regulamentação da força de trabalho representada pelo índio. Por fim, do 74 ao 95 trata-se da adoção de medidas e providências para a consecução do ideal de civilização que constitui o discurso em que se insere o Diretório.

A análise da orientação lingüística que, presentemente, nos interessa recobre do 6º ao 8º parágrafos inclusive, no entanto, parece impossível deixar de tecer alguns comentários sobre os parágrafos introdutórios.

Na primeira frase - Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e do Maranhão enquanto sua majestade não mandar o contrário - o uso do verbo ‘mandar’ e a referência à ‘sua majestade’ deixa transparecer uma das verdades (ou ideologia) inquestionáveis naquele momento: a autoridade real, bem como seu correlato que é o da obediência incondicional ao poder que dela emana.

Segundo o texto, numa espécie de justificativa da nomeação de um Diretor a quem caberá indicar o Governador e o Capitão General do Estado, ‘ o qual deve ser dotado de bons costumes, zelo, prudência, verdade, ciência da língua, e de todos os mais requisitos necessários para poder dirigir com acerto os referidos índios debaixo das ordens, e determinações seguintes, que inviolavelmente se observarão enquanto Sua Majestade o houver assim por bem, e não mandar o contrário’. A materialidade da língua mal disfarça a distância entre o Governador e seus bons costumes para dirigir os índios ’debaixo’ e inviolavelmente’- a escolha dos advérbios não é imotivada, bem como a repetição do sema contido em ‘ordens e determinações’. Depreende-se claramente o julgamento da Coroa portuguesa sobre a inaptidão dos índios para se autogovernarem, baseado na seguinte justificativa: ‘ estes (os índios) pela lastimosa rusticidade, e ignorância, com que até agora foram educados, não tenham a necessária aptidão, que se requer para o Governo, sem que haja quem os possa dirigir, propondo-lhes não só os meios da civilidade, mas da conveniência, e persuadindo-lhes os próprios ditames da racionalidade, de que viviam privados”. A expressão “até agora” enfatiza a fronteira entre a barbárie e a civilização representada, esta última, pela ação pedagógica dos futuros Governador e Capitão General. Observe-se, ainda, a reafirmação da vontade suprema do rei português expressa por sintagmas de sentido semelhante, mas de efeito intensificador - enquanto Sua Majestade o houver assim por bem, e não mandar o contrário’ , como também, merecem destaque as qualidades ou características concernentes a índios e portugueses : índios (inaptidão para se autogovernarem, rusticidade lastimosa, ignorância); portugueses (bons costumes, zelo, prudência, verdade, ciência da língua). Neste trecho, como em tantos outros, nem sequer se cogita de que os índios viviam em sociedade, se autodeterminavam e que possuíam uma língua. Mas, em compensação, os brancos europeus, ainda que desejando manter ‘ os referidos índios debaixo das ordens, e determinações seguintes, que inviolavelmente se observarão enquanto Sua Majestade o houver assim por bem’, tudo isto faziam em nome de uma missão que, plenamente, justificava-lhes a atitude, ‘propondo-lhes (aos índios) não só os meios da civilidade, mas da conveniência, e persuadindo-lhes os próprios ditames da racionalidade, de que viviam privados”.

O parágrafo 3º do Diretório constitui um magnífico exemplo do conceito de ideologia com que vimos trabalhando - interpretação de sentido em certa direção; ideologia não como ocultação, mas como a naturalização do que é produzido pelo histórico - o colonialismo, da mesma forma pela qual o império, no século XIX, se concebia sem nenhum constrangimento, em perfeita consonância com a circulação das idéias e da cultura da época; a ação concreta da colonização se apoiava em um ideário plenamente justificado e, portanto, só na perspectiva de valores de nosso século podemos ajuizar a violência extrema de tais ações civilizatórias. Mais uma vez, a voz lúcida de Said 10 pode referendar esta afirmação:

Havia um comprometimento por causa do lucro, e que ia além dele, um comprometimento na circulação e recirculação constantes, o qual, por um lado, permitia que pessoas decentes

aceitassem a idéia de que territórios distantes e respectivos povos deviam ser subjugados e, por outro, revigorava as energias metropolitanas, de maneira que essas pessoas decentes pudessem pensar no imperium como um dever planejado, quase metafísico de governar povos subordinados, inferiores ou menos avançados.

Um outro aspecto altamente perturbador não pode deixar de ser trazido à consideração e que se revestiu de grande importância na consolidação e referendum ético para os processos da colonização - a evangelização dos povos rudes. O 4º parágrafo trata desta questão e, de modo incisivo conclama os Diretores a agirem exemplarmente: ‘para se conseguir pois o primeiro fim, qual é o cristianizar os índios’.

No 5ºparágrafo, o texto legal, ao retomar o propósito geral da obrigação dos Diretores, reforça um pré-construído - cuidar da civilidade dos índios - logo, o significado não é dado somente no momento da fala, mas em relação a outros significantes já dados, naturalizando a ideologia da função messiânica da colonização e, por inclusão, a respeitabilidade e a conduta exemplar que a Coroa espera dos Diretores - o óbvio mais uma vez reafirmado. Como bem nos mostram os estudos na área da análise do discurso, a ideologia é a-histórica, pois está sempre presente como resultado das relações de produção entre os sujeitos. Segundo Eni Orlandi11.

A ideologia, por sua vez, é interpretação de sentido em certa direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus mecanismos imaginários. A ideologia não é, pois, ocultação mas função da relação necessária entre a linguagem e o mundo.”

Sob esta perspectiva, continuamos a ler no texto do Diretório, todo o processo lingüístico de dissimulação das formas de assujeitamento do outro, para que as evidências subjetivas apaguem a relação assimétrica entre os sujeitos. Dessa forma estamos tentando a explicitação do modo como o discurso produz sentidos.

Os parágrafos seguintes referem-se à imposição da língua portuguesa no Brasil e suas justificativas

Observemos alguns aspectos relevantes dos parágrafos 6º ao 8º:

Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações que conquistaram novos domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indispensável, que este é um meio dos mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes e ter mostrado a experiência que, ao mesmo passo que se introduz neles o uso da língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração e a obediência ao mesmo Príncipe.

Mais uma vez vem à tona a questão da nobre função civilizatória, a começar pela língua, como fator de identidade , de afeto, veneração e obediência ao mesmo Príncipe - em uma palavra : aculturação.

Segue-se um combate veemente ao uso da língua geral, que, segundo a perspectiva do império, era uma invenção verdadeiramente abominável e diabólica, para que privados os índios de todos aqueles meios que os podiam civilizar, permanecessem na rústica e bárbara sujeição, em que até agora se conservam.

Daí decorre a necessidade óbvia, como um corolário das afirmações anteriores que,

para desterrar este perniciosíssimo abuso será um dos principais cuidados dos Diretores estabelecer nas suas respectivas povoações o uso da língua portuguesa, Não consentindo por modo algum que os Meninos e Meninas, que pertencem às escolas, e todos aqueles índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas nações ou da chamada geral, mas unicamente da Portuguesa, na forma que S. M. tem recomendado em repetidas ordens, que até agora não se observaram, com total ruína Espiritual e Temporal do Estado.

Nos parágrafos 7 e 8 temos, ainda, uma retomada de um já-dito - a justificativa da determinação com base na urgência de trazer aos índios a civilidade, bem como os mecanismos práticos para que se efetivem os objetivos de ensino da língua portuguesa com a criação de escolas públicas, ’ uma para os Meninos, na qual lhes ensine a Doutrina Cristã, a ler, a escrever e contar na forma, que se pratica em todas as escolas das nações civilizadas; e outra para as Meninas, na qual, além de serem instruídas na Doutrina Cristã, se lhes ensinará a ler, escrever, fiar, fazer renda, costura, e todos os mais ministérios próprios daquele sexo.

É interessante notar como no texto do 8º parágrafo, a seguir, ressaltam-se as qualidades positivas dos mestres e mestras, sua alta destinação social como a encobrir o vem logo adiante: o descompromisso da Coroa com o custeio da educação dos índios, cabendo aos pais das crianças esta obrigação, mas sempre de acordo com a situação de miséria em que se encontram. Quer dizer, a ideologia não se representa por um conteúdo, mas por um mecanismo de produzi-lo: (e de reproduzi-lo conforme as instâncias de poder).

Para a subsistência das sobreditas Escolas, e de um Mestre, e uma Mestra, que devem ser pessoas dotadas de bons costumes, prudência, e capacidade, de sorte que possam desempenhar as importantes obrigações de seus empregos; destinar-se-ão ordenados suficientes, pagos pelos Pais dos meninos índios, ou pelas pessoas, em cujo poder eles viverem, concorrendo cada um deles com a porção, que se lhes arbitrar, ou em dinheiro, ou em efeitos, que será sempre com atenção à grande miséria, e pobreza, a que eles presentemente se acham reduzidos.

Não pode restar dúvida de que estas medidas obtiveram um resultado prático, pois, em 1798, quando o Diretório foi abolido, a língua portuguesa dominava, incontestavelmente, (à exceção da Amazônia) as regiões brasileiras, onde há quarenta anos predominava a influência Tupi.

Segundo o testemunho de Celso Cunha12.

A Reforma Pombalina instituiu o ensino público, tornou violentamente obrigatório o ensino elementar da língua portuguesa, destruindo línguas e culturas indígenas; em nível secundário, fez preceder a gramática portuguesa à gramática latina, que passaria a ser ministrada por compêndios em metalinguagem portuguesa, como nos únicos autorizados --os de Antônio Félix Mendes e Antônio Pereira de Figueiredo.

 

REFLEXÕES FINAIS

O moinho já não existe; o vento continua, todavia.

(Van Gogh, Cartas a Théo)

 

Para finalizar estas reflexões, pensamos na complexidade que estes movimentos de confronto, de assimilação, de oposição, de aceitação produzem e produziram sentidos na relação língua- nação em nosso país. Língua imposta pelo colonizador, trazendo todo um referencial simbólico a que se somou também uma cultura, que embora assimilada não deixou de marcar o encontro do europeu com o americano. Assim, pensamos que somente na relação histórica entre a língua e seus falantes, entre a língua portuguesa e os brasileiros poderemos começar a penetrar no instigante mistério da compreensão dos processos de formação da identidade nacional brasileira.

Não podemos deixar de mencionar um momento único de nossa literatura - o Romantismo- em que a relação língua -nacionalidade esteve agudamente presente. O escritor de maior participação neste debate foi, sem dúvida, José de Alencar. Alencar vincula língua e literatura à nacionalidade, qualificando e valorizando as diferenças que o português vinha adquirindo no Brasil e as diversificações raciais que operaram, em nossa terra, a formação do povo brasileiro. Portanto, a língua, a literatura e o povo do Brasil seriam fruto do amálgama racial e lingüístico único que nos constituiria como nação e nos distinguiria de outras nações:

Os operários da transformação das nossas línguas são esses representantes de tantas raças, desde a saxônia até a africana, que fazem neste solo exuberante amálgama do sangue, das tradições e das línguas.”13

Além do projeto de Alencar, um outro momento significativo de nossa literatura - o Modernismo- retoma o discurso através da reafirmação de um imaginário nacional e, como conseqüência a valorização de uma língua liberta dos cânones portugueses que, reproduzindo e criando cultura, identifica um modo de ser específico, fazendo representar o pensamento brasileiro.

Da língua participam a História e a cultura que a constituem e de que ela é ao mesmo tempo produtora. A seguinte transcrição de Benveniste consolida o pensamento que vimos desenvolvendo:

De fato é dentro da e pela língua que indivíduo e sociedade se determinam mutuamente. O homem sentiu sempre - e os poetas freqüentemente cantaram.- o poder fundador da linguagem, que instaura uma realidade imaginária, anima as coisas inertes, faz ver o que ainda não existe traz de volta o que desapareceu. É por isso que tantas mitologias, tendo de explicar que no início dos tempos alguma coisa pôde nascer do nada, propuseram como princípio criador do mundo essa essência imaterial e soberana, a Palavra. 14

Percebemos hoje reflexos destes conflitos entre a língua da terra e a língua transposta já redimensionados no tempo, sob outras perspectivas e injunções sociais. No entanto, nossa tradição cultural ainda vem oscilando entre a ambigüidade dos românticos e a atitude vanguardista dos modernistas, influenciando nossa realidade lingüística, especificamente no que se refere à norma culta escrita do português, cujo padrão prescritivo ainda se assemelha ao de Portugal, com a conseqüente intensificação da distância entre a língua falada e a escrita no Brasil. Verifica-se, por tudo isso, em nossa norma culta escrita a concomitância de alguns usos específicos da oralidade, caracterizando variações ainda não fixadas.

O português culto padrão do Brasil é uma construção se fazendo, não sem alguma polêmica.

Gostaria de encerrar este trabalho, dizendo-lhes que ainda acredito que além das fronteiras de uma língua e de uma nação, como escreve Eduardo Galeano15, ‘sempre é possível encontrar contemporâneos em qualquer lugar do tempo e compatriotas em qualquer lugar do mundo. E sempre que isso acontece, e enquanto isso dura, a gente tem a sorte de sentir que é algo na infinita solidão do universo: alguma coisa a mais que uma ridícula partícula de pó, alguma coisa além de um momentinho fugaz.’

 

BIBLIOGRAFIA

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