A PALAVRA “FILOLOGIA”
E AS SUAS DIVERSAS ACEPÇÕES
soluções que se impõem para o problema da polissemia

Maximiano de Carvalho e Silva (UFF e ABF)

 

A palavra filologia, de origem grega, é, como acentuou Carolina Michaëlis de Vasconcelos no valioso e minucioso estudo que inicia as suas Lições de Filologia Portuguesa, de formação culta e tardia, e tem sido usada em várias acepções em mais de vinte e quatro séculos de existência documentada. Constituem essa palavra dois elementos: filo, que traduz a idéia de “amor”, “apreço e estima especial”, e logia, que significa “doutrina, ciência, erudição, conhecimento ou estudo cientifico”.

Desde a origem, a palavra filologia, que do grego passou ao latim, com o sentido amplo de “amor da ciência” e “culto da erudição ou da sabedoria em geral”, e com o sentido especial de “culto da ciência da linguagem”, englobou toda a sorte de indagações sobre os textos de qualquer natureza - históricos, religiosos, filosóficos, literários e científicos - com a finalidade de preservá-los e de interpretá-los corretamente, o que implicava o trabalho de restituí-los na medida do possível à apresentação original, através de minuciosos estudos comparativos dos testemunhos existentes, conservados muitíssimos deles apenas por cópias de diversas origens, a que se deu o nome de apógrafos. Assim sendo, para designar “os homens que se distinguiram quer pela vastidão, multiplicidade e profundeza dos seus conhecimentos gerais, quer pelo culto especial das ciências da linguagem” foi usada a palavra filólogo.

Sendo fundamental para o exame dos textos o aprofundamento dos conhecimentos sobre a estrutura e o funcionamento das línguas em que estavam redigidos, logo se criou também, como referência ao “pensamento especulativo sobre a linguagem”, a palavra gramática (com base no radical grama, “sinal gravado”, “letra”), aplicada de início ao que respeita “à escrita e, derivadamente, à leitura” e por extensão à língua e ao saber lingüístico. Tais especulações gramaticais eram porém a princípio meramente ancilares, voltados para o objetivo fundamental de favorecer a compreensão dos textos de maior expressão cultural, como o que foi feito pelos primeiros filólogos - para dar apenas dois exemplos - na Grécia e em Alexandria (Egito), em relação aos textos literários helênicos, e na Índia aos textos de caráter religioso de especial valor para o hinduísmo.

Desde os albores da época do Renascimento, renovando-se e aumentando o interesse pelo estudos dos textos, as palavras filologia e filólogo nas acepções mencionadas passaram a ser empregadas para designar estudos especiais, em expressões como Filologia Greco-Latina ou Filologia Clássica, e a partir do século XVIII Filologia Indo-Germânica, Filologia Românica e assim por diante. Todavia, segundo a observação de Carolina Michaëlis, à medida que tais estudos se aprofundavam, sentia-se a necessidade de “separar o estudo das línguas do das literaturas de cada uma delas”.

A noção exata da riqueza e complexidade da linguagem humana foi conquista de muitos e muitos anos de pacientes reflexões. Espíritos mais atilados, com a noção da variedade das línguas, perceberam afinal em línguas históricas e nas suas próprias línguas uma diversidade de usos circunstanciais, todos eles merecedores de atentos estudos e observações. Lembre-se, por exemplo, que numa de suas cartas o grande orador e escritor romano Cícero chamou a atenção do seu correspondente para o fato de estar usando linguagem um tanto diferente da dos seus discursos no Senado romano: “Parece que uso contigo a língua vulgar. (…) Nos discursos aprimoro mais, escolho mais; nas cartas, porém, teço as frases com expressões cotidianas.” Lembre-se mais que data dessa época o precioso registro que um estudioso dos fatos do latim literário nos deixou, no documento conhecido como o Appendix Probi, de palavras ou expressões da linguagem mais apurada em confronto com o que se dizia na linguagem corrente (o chamado “latim vulgar”), atestando assim uma série de fatos de fundamental importância para a explicação da origem de muitas formas das línguas românicas.

 

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Sabe-se muito bem, mas é preciso repetir neste excurso, que mantendo-se sempre o interesse pelo funcionamento das línguas e pelo exame dos textos escritos no correr dos séculos, todavia só decorrido muito tempo, ou seja, do século XVIII em diante, os estudos sob os rótulos de Filologia e Gramática conseguiram progressivamente maiores avanços e melhor caracterização dos seus objetivos e métodos. Aos poucos, pautados por crescente rigor metodológico, foram assumindo caráter novo, realmente científico, graças às percepções de grandes mestres, expostas em trabalhos de fundamental importância.

Já nas primeiras décadas do século XIX, graças às luminosas contribuições dos grandes renovadores dos estudos filológicos, lingüísticos e literários, passou-se a ter uma visão, incompleta embora, de um complexo de novas ciências, interligadas mas autônomas, e ancilares umas das outras, que teriam o mesmo objeto material - o estudo da linguagem humana articulada - mas ao mesmo tempo objetos formais distintos: eram as denominadas “ciências da linguagem” (usada a palavra linguagem não em sentido geral, mas apenas referida à linguagem humana articulada). Uma série de fatos, porém, dificultou ou impediu a delimitação das áreas de atuação respectivas. A esse conjunto de ciências diversas, mas de limites ainda indefinidos, continuou a aplicar-se, à falta de outros nomes, o antigo rótulo de Filologia.

Quanto à palavra gramática, entendida como “estudo ou conhecimento especulativo da língua como saber prático”, também teve desde a sua remota origem variado uso, com acepções diversas, como já assinalaram os melhores tratadistas da matéria. Não é porém nosso objetivo neste artigo expor os diversos conceitos em que essa palavra tem sido usada.

Para filologia encontrou o notável dicionarista D. Rafael Bluteau, no seu gigantesco Vocabulário Português e Latino, publicado em seis volumes, de 1712 a 1720, a seguinte explicação:

É palavra grega composta de philos, amigo, e logos, discurso; e Filologia val o mesmo que estudo das letras humanas, começando da Gramática (que antigamente era a parte principal da Filologia), e prosseguindo com a Eloqüência Oratória, e Poética, com as notícias da História antiga, e moderna, com a inteligência, interpretação, e crítica dos autores, com a erudição sagrada, e profana, e geralmente com a compreensão, e aplicação de todas as cousas, que podem ornar o engenho, e discurso humano. Rigorosamente falando, Filologia é a parte das ciências, que tem por objeto as palavras, e propriedade delas.

Na continuação do verbete, Bluteau alerta para o uso diversificado ou identificado das palavras filologia e gramática, já documentado em autores latinos.

 

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Só com a criação de palavras ou expressões mais apropriadas para designar o estudo científico da linguagem humana articulada - Lingüística ou Lingüística Geral ou Teoria da Linguagem - surgiu da segunda metade do século passado em diante a possibilidade de resolver a deficiência e imprecisão terminológica de que estamos tratando. Uma das soluções era restituir à palavra filologia o sentido primitivo que lhe atribuía como tarefa principal a equivalente ao que hoje se denomina crítica textual. Foi o que procurou fazer em Portugal o grande iniciador da renovação dos estudos lingüísticos naquele país, Francisco Adolfo Coelho, ao dizer logo no início de um trabalho publicado em 1881 e com reedição emendada e aumentada em 1887:

Filologia propriamente dita é o conjunto de conhecimentos que se referem à literatura dum ou mais povos e à língua que serve de instrumento a essa literatura, consideradas principalmente como a mais completa manifestação do espírito desse povo ou desses povos.

Logo em seguida, esclarecendo melhor seu pensamento, Adolfo Coelho afirma que o “estudo da língua” e outros estudos correlatos “são para a filologia auxiliares, não fins”, e acrescenta:

Por Filologia Portuguesa deve pois entender-se o estudo dos monumentos literários da língua portuguesa sob todos os pontos de vista.

Indica mais, entre as nove partes que deve compreender uma ciência assim denominada, a “determinação da autenticidade” e a “restituição dos textos a uma forma tão próxima quanto possível da original”.

Na conclusão do primeiro tópico de seu luminoso livro, Francisco Adolfo Coelho, depois de mencionar as palavras lingüística, glótica e glotologia como as apropriadas para denominar a nova ciência que se voltaria para o estudo científico histórico-comparativo de todas as manifestações do fenômeno língua, declara preferência pela última denominação, assinala que a glotologia não tem por fim o estudo prático das línguas para as falar ou escrever, nem o estudo das línguas como meio para o estudo das literaturas”, e acrescenta:

A Glotologia é porém uma ciência histórica, como a Filologia, e não uma ciência natural. A linguagem não é um produto natural, mas sim um produto social, como o direito, a religião, a arte.

 

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Por bom tempo, os três termos - filologia, lingüística e glotologia (ou glótica) - dividiram a preferência dos estudiosos, nem sempre usados com o mesmo sentido.

Ferdinand de Saussure, entre as formulações iniciais do seu famoso Cours de Linguistique Générale, segundo o que se publicou pela primeira vez em 1916, usou os termos Filologia e Lingüística para designarem duas ciências distintas, cada uma delas com finalidade própria. Assim, já no primeiro capítulo da obra se lê:

A língua não é o único objeto da Filologia, que quer, antes de tudo, fixar, interpretar, comentar os textos; este primeiro estudo a leva a se ocupar também da história literária, dos costumes, das instituições, etc.; em toda parte ela usa seu método próprio, que é a crítica. Se aborda questões lingüísticas, fá-lo sobretudo para comparar textos de diferentes épocas, determinar a língua peculiar de cada autor, decifrar e explicar inscrições redigidas numa língua arcaica ou obscura.

Quanto à Lingüística, devia ter como “tarefa” [tâche] fundamental a de “fazer a descrição e a história de todas as línguas que puder abranger”, “procurar as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos peculiares da história”. Para Saussure, portanto, devia estabelecer-se uma distinção nítida entre Filologia e Lingüística, “malgrado os pontos de contato das duas ciências e os serviços mútuos que se prestam”.

Saussure, como se sabe, assumiu tal posição nos cursos ministradas em Genebra (Suíça) entre a primeira e a segunda década do séculos XX, mas ela só se tornaria bastante conhecida alguns anos mais tarde. Enquanto isso, entrava em cena no mundo de língua portuguesa um elemento altamente perturbador: a posição clara, incisiva, categórica, de dois dos maiores lingüistas e críticos textuais portugueses, Carolina Michaëlis e Leite de Vasconcelos, em favor do emprego amplo da expressão Filologia Portuguesa para englobar toda a sorte de investigações a respeito da língua e dos seus diferentes usos. Para Leite de Vasconcelos, por Filologia Portuguesa se devia entender:

o estudo da nossa língua em toda a sua amplitude, no tempo e no espaço, e acessoriamente o da literatura, olhada sobretudo como documento formal da mesma língua.

Para Carolina Michaëlis, Filologia Portuguesa seria:

o estudo científico, histórico e comparado, da língua nacional em toda a sua amplitude, não só quanto à gramática (fonética, morfologia, sintaxe) e quanto à etimologia, semasiologia, etc., mas também como órgão da literatura e como manifestação do espírito nacional.

Carolina, na lição I, menciona o vocábulo lingüística e seus sinônimos glotologia e glótica, na acepção lata e na restrita.

Desde então, no Brasil, a palavra filologia se usou preferentemente no amplo sentido das definições de Leite de Vasconcelos e de Carolina Michaëlis. Entre os primeiros mestres que adotaram e ajudaram a divulgar os ensinamentos dos dois filólogos portugueses estavam os professores Mário Barreto, Sousa da Silveira, Antenor Nascentes, Mário Barreto, Augusto Magne e outros.

No ano de 1934, quando começou a funcionar a primeira Universidade brasileira (a Universidade de São Paulo - USP), tinha entre as suas cátedras a de Filologia Portuguesa, confiada de início ao professor visitante português Francisco Rebelo Gonçalves, cujos programas abrangiam estudos variados de Lingüística Portuguesa (sincrônica e diacrônica) e estudos de textos que hoje estão no âmbito da Crítica Textual.

Todavia, com o correr do tempo, a percepção mais nítida da existência de uma ciência geral da linguagem humana, avivada com a leitura da obra de Saussure e das obras de outros grandes mestres, deu ensejo a que na segunda experiência do ensino superior de Letras no Brasil, a da Universidade do Distrito Federal, na cidade do Rio de Janeiro (então capital da República), se instituísse uma cadeira autônoma de Lingüística Geral e que no curso da matéria aí ministrado em 1938 pelo professor Joaquim Matoso Câmara Júnior se sentisse o alcance dos estudos da teoria da linguagem e a sua aplicação como base dos estudos das lingüísticas especiais. As aulas do curso de Matoso Câmara, graças ao apoio do então catedrático de Língua Portuguesa da UDF, professor Sousa da Silveira, que com lucidez percebeu a necessidade de se reconhecer a Lingüística como ciência autônoma e matéria básica e indispensável à boa formação dos estudantes de Letras, foram sem demora publicadas, nos anos de 1939-1940, sob o título “Lições de Lingüística Geral”, em 12 fascículos da Revista de Cultura dirigida pelo Padre Tomás Fontes, e em 1941 como livro editado pela Livraria Briguiet e prefaciado por Sousa da Silveira, com o título de Princípios de Lingüística Geral (Como Fundamento Para os Estudos Superiores de Língua Portuguesa). Essa obra é portanto um marco na evolução dos estudos das ciências da linguagem no Brasil.

Deve ser lembrado, como prova da persistência do uso da palavra filologia no seu sentido mais extensivo, que em 1944, ao se congregarem no Rio de Janeiro os grandes estudiosos das ciências da linguagem para criar uma instituição a elas consagrada, foram unânimes na escolha do nome Academia Brasileira de Filologia.

Serafim da Silva Neto, na “Explicação” prévia do seu Manual de Filologia Portuguesa (1952), via a Lingüística como “uma ciência de princípios gerais, aplicáveis a quaisquer línguas”, e a Filologia como a ciência que "encerra todos os estudos possíveis acerca de uma língua ou grupo de línguas: Filologia Portuguesa, Filologia Indo-Européia". Reafirmava pois a posição de Leite de Vasconcelos, Carolina Michaëlis e tantos outros. Na "Introdução" da terceira edição (1956) do seu livro Fontes do Latim Vulgar, dizia o grande mestre:

Por Filologia Portuguesa devemos entender todos os estudos referentes à nossa língua e literatura. Não pareça estranho incluir-se a literatura no rol dos estudos filológicos, pois ela é a execução estética da matéria lingüística.

E acrescentava mais adiante:

As pesquisas filológicas podem cingir-se a determinada fase da língua [estudo sincrônico] ou abranger todos os períodos, desde o início à fase atual [estudo diacrônico].

Portanto, no conglomerado de disciplinas que compõem a Filologia Portuguesa deviam figurar, conforme o parecer de Leite de Vasconcelos e Carolina Michaëlis, retomado por Serafim da Silva Neto e outros seguidores das lições dos dois eminentes lingüistas e filólogos portugueses: estudos de lingüística portuguesa sincrônica e diacrônica; história da literatura; versificação portuguesa; crítica textual aplicada a textos em língua portuguesa.

 

O uso de Filologia

como equivalente a Crítica Textual

Já foi mencionado que Francisco Adolfo Coelho em 1881 propôs, para resolver o problema terminológico, o uso das seguintes expressões: Glotologia ou Lingüística Geral; Glotologia ou Lingüística Especial (como a Glotologia Portuguesa); Filologia [Geral]; Filologia [Especial] (como a Filologia Portuguesa).

Ficou patente em suas explicações citadas que a expressão Filologia (geral ou especial) designaria um complexo de ciências entre as quais a que hoje se denomina com mais freqüência e mais adequadamente Crítica Textual.

Já foi mencionado também que Ferdinand de Saussure, nos cursos ministrados em Genebra entre 1906 e 1911, teria proposto que o nome Filologia se aplicasse apenas à ciência que tem como finalidade principal “fixar, interpretar e comentar os textos”, bem diversa da finalidade da Lingüística Geral.

O uso do termo filologia como equivalente a crítica textual é o que se observa largamente entre autores italianos, mormente da segunda metade do século XX, em que tantas obras de fundamental importância têm dado inestimável contribuição ao estabelecimento dos princípios teóricos dessa ciência e à aplicação dos mesmos ao estudo das origens, da fixação e da interpretação dos textos, entre os quais os de língua portuguesa.

Por outro lado, três grandes figuras no campo da Teoria da Linguagem, o romeno Eugênio Coseriu, o português Herculano de Carvalho e o sueco Bertil Malmberg, em diferentes ocasiões propuseram em termos incisivos essa identificação.

Num trabalho pela primeira vez publicado em 1951, e reeditado em espanhol em 1986 com o título Introducción a la Lingüística, Eugenio Coseriu trata da confusão dos usos dos termos lingüística e filologia e das explicações para o fato. Deixa bem claro, no entanto, o que no seu entender seria a melhor opção de uso:

En sentido estricto, por filologia se entiende hoy comúnmente la crítica de los textos y, en su sentido más amplio, la ciencia de todas las informaciones que se deducen de los textos, especialmente antiguos, sobre la vida, la cultura, las relaciones sociales y familiares, económicas, políticas y religiosas, etc., del ambiente en que los textos mismos se escribieron o a que se refieren.

Em seguida, Coseriu estabelece os limites com relação ao uso dos termos lingüista e filólogo, aplicáveis a estudiosos das línguas e dos textos como objetos materiais comuns mas como objetos formais distintos, visando a finalidades bem diversas.

O lingüista e crítico textual Herculano de Carvalho, tratando das dificuldades acarretadas pela polissemia do termo filologia, falou na conveniência para “evitar mal-entendidos” de só se usar a palavra para designar o estudo dos textos “com vistas à sua fixação e interpretação”, tarefa que como sabemos é a da Crítica Textual.

Foi essa mesma posição que assumimos nós como professor do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, ao apoiarmos a decisão de dar o nome de Departamento de Lingüística e Filologia a uma das divisões setoriais (sendo a outra o Departamento de Literatura) da nova unidade universitária, e mais adiante ao tomarmos a iniciativa de dividir a disciplina de Língua Portuguesa em dois setores: o de estudos de Lingüística Especial Portuguesa e o de estudos de Crítica Textual. Tendo adotado para o setor de Crítica Textual, pouco depois convertido em disciplina autônoma, a denominação de Filologia Portuguesa, organizamos para ele programas especiais e atividades de pesquisa próprios, como as de preparação de edições críticas e comentadas de autores brasileiros e portugueses dos séculos XIX e XX. Inclusive fizemos realizar em 1973 o Congresso Internacional de Filologia Portuguesa, cujo temário propunha exclusivamente o debate dos problemas teóricos da Crítica Textual e a aplicação dos seus princípios ao estudo dos textos da língua portuguesa.

Essa posição nossa, sustentada firmemente, mas com muitas incompreensões, durante vários anos, não nos impediu de ver afinal que é insolúvel o problema da polissemia da palavra filologia, razão pela qual a matéria básica criada por nossa iniciativa no curso de Letras da UFF, de que fomos Titular e em cujo domínio obtivemos o título de Livre-Docente, hoje se denomina Crítica Textual, para que não paire mais nenhuma dúvida a respeito do seu campo de atuação. Por outro lado, na última divisão em setores do Instituto de Letras da UFF o antigo Departamento de Lingüística e Filologia se converteu em Departamento de Ciências da Linguagem, abrangendo como disciplinas básicas Lingüística Geral, Crítica Textual e Teoria da Literatura.

 

Conclusões

Diante do exposto, chegamos às seguintes conclusões:

1) A palavra filologia é usada hoje não só no Brasil como em outros países em duas acepções principais: a) na acepção ampla que abarca um complexo de disciplinas como Lingüística Especial Sincrônica e Diacrônica, Crítica Textual, História e Análise Literária e várias outras; b) na acepção restrita de Crítica Textual.

A experiência mostra que é impossível impor o uso dessa palavra apenas num único sentido, pois não há como deixar de reconhecer a polissemia que a caracteriza em âmbito internacional. Assim sendo, devemos conformar-nos com a ambigüidade do seu uso, sem a menor ilusão de que se resolva tal problema, que é com toda a certeza insolúvel.

Não há como impedir portanto que a palavra filólogo se aplique indistintamente aos estudiosos de Lingüística Especial e de Crítica Textual, e até mesmo de História da Literatura (quando se ocupam da gênese e evolução das obras literárias). É oportuno relembrar como exemplo dos mais expressivos que em 1944, ao se criar no Brasil uma instituição para congregar os que se dedicam a tais estudos, tendo como “finalidade precípua” o estudo da língua portuguesa, o nome escolhido para a mesma foi Academia Brasileira de Filologia, nela se admitindo como ocupantes das 40 cadeiras não só lingüistas ou críticos textuais como Sousa da Silveira, Antenor Nascentes, Serafim da Silva Neto e outros, mas também especialistas em estudos literários como Afrânio Peixoto (o festejado autor dos Ensaios Camonianos) e Sílvio Júlio de Albuquerque Lima (autor de obras de literatura comparada e de interpretação de textos de literatura brasileira). Ficou assentado pois que podem fazer parte como membros efetivos da Academia os especialistas em Teoria da Linguagem ou Lingüística Geral, em Lingüística Portuguesa, em Crítica Textual, e em ciências afins, como a História e a Crítica Literária entre outras.

2) Sendo imperativa a aceitação da polissemia da palavra filologia, é necessário que o seu emprego se restrinja aos casos inquestionáveis, e que mesmo nesses casos se tenha o cuidado de deixar bem nítido o sentido em que está empregada, por imposição da clareza que deve caracterizar a exposição de um assunto científico. Não tem sentido, por exemplo, aplicar a denominação de Filologia aos estudos puramente de Teoria da Linguagem ou de Lingüística Geral, como por exemplo os de Eugênio Coseriu, a quem o rótulo de filólogo estaria mal aplicado, pois como se vê pela leitura do mais importante em sua extensa e tão valiosa obra de ensaísta ele é acima de tudo um lingüista teórico ou especialista em Teoria da Linguagem.

3) A denominação mais conveniente para a ciência que trata da gênese dos textos, da sua transmissão através dos tempos, e das técnicas de reprodução cuidadosa dos mesmos e preparação das edições fidedignas ou de edições críticas, é a de crítica textual, e o especialista em tal tipo de estudos melhor será que seja reconhecido pelo título de crítico textual, pois o termo filólogo sempre estará marcado pelo insolúvel problema da polissemia.

A palavra ecdótica, usada desde o final do século passado, também é de uso discutível, pois se emprega em três sentidos diferentes: a) como sinônimo de Crítica Textual: b) como denominação da parte culminantes das atividades da Crítica Textual, ou seja, a fase da preparação das edições críticas; c) como uma ciência dos textos mais ampla, de que a crítica textual seria a parte nuclear, segundo o entendimento do crítico textual italiano Aurelio Rocaglia, que está todavia em desacordo com a etimologia da própria palavra em causa.

A ciência cujos fundamentos tem sido estabelecidos progressivamente na segunda metade do século XX com o nome de Crítica Genética, marcada pela finalidade de, através do estudo comparativo dos esboços originais com os elementos posteriores até a conclusão final da obra artística, fixar os princípios da atividade criadora, confundiu-se a princípio com a Crítica Textual, por tomar como objeto material único os textos literários.

Tendo-se estendido ultimamente o campo de atuação da Crítica Genética a outras artes - como a arte cinematográfica, a arte do desenho e da pintura e outras mais - ficou bem claro que ela se situa no campo mais amplo da Semiologia, pois tem como objeto material não apenas a linguagem humana articulada e fixada nos textos escritos, mas outras formas de linguagem, tomada a palavra em sentido lato.