FILO O QUÊ?

reflexões acerca do ensino da Filologia Românica

Fátima Grandin Armond (UERJ)

 

Não se surpreenda, caro leitor, se, ao comentar com algum conhecido sua participação num Congresso de Filologia, escutar a frase que nos serviu de título. Infelizmente, tornam-se cada vez mais raras as pessoas que já ouviram falar de nossa disciplina e, mesmo no meio acadêmico, poucas são as que lhe conhecem os objetivos.

Gladstone Chaves de Melo separa as ciências em dois grupos, o das ciências privilegiadas e o das ciências vítimas; aquelas recebendo do público em geral o respeito que lhes é obviamente devido, e estas, relegadas a um segundo plano, sendo objeto de especulação de quem não lhes conhece objetos e métodos. Assim acontece com a Filologia: numa época em que tudo é muito rápido, em que a atenção às coisas do espírito é tida como objeto de visionários ou desocupados, uma ciência que se interessa pelo cultivo da tradição não merece o interesse do grande público.

Um aluno do curso de Letras da UERJ, engajado num projeto de pesquisa sob a orientação da Profª Marina Machado Rodrigues, da mesma universidade e da Academia Brasileira de Filologia, relatou-nos sua decepção quando, ao apresentar seu trabalho no VII Seminário de Iniciação Científica da Universidade de Ouro Preto, ouviu dos avaliadores que estes “não conseguiam ver a validade do projeto”. E em que consistia a pesquisa? Na reprodução de textos em português do Manuscrito da Real Academia da História de Madrid:

Diferentemente dos outros códices da época, o referido manuscrito possui uma quantidade significativa de textos com autoria expressa e guarda a possibilidade de inéditos.

Muitos textos reproduzidos pela tradição impressa e trabalhados academicamente nos dias de hoje possuem equívocos autorais e textuais por não se dirigirem os pesquisadores, durante o estabelecimento crítico dos textos, às fontes manuscritas, apenas reproduzindo os mesmos erros registrados pela primeira tradição impressa - como é o caso específico de Camões. (BARROS, Luis F. Moraes de. Projeto de Pesquisa)

Os organizadores do evento não viram funcionalidade em se voltar a manuscritos!

Ocorre ainda que, mesmo entre os companheiros da área de Letras, observamos um certo descaso para com a ciência que, no Brasil, teve em seu estado-maior - para falarmos com Gladstone Chaves de Melo - Augusto Magne, Said Ali e Sousa da Silveira. Essa atitude é certamente um reflexo da influência da Lingüística americana em nossas plagas a partir da década de 60, quando o descritivismo passou a imperar e os estudos históricos foram relegados a segundo plano.

Em Estudos filológicos, de 1939, Antenor Nascentes já se queixava de que, em relação ao ensino da Filologia, muito pouco era feito e à custa “de muito esforço e esforço individual”. Os filólogos eram autodidatas, não havia bibliotecas especializadas nem apoio às publicações nacionais e revistas e livros eram dificilmente importados da Europa. Quase nada mudou.

E o ensino da Filologia Românica?

Em comunicação feita durante o 1º Simpósio Nacional de Filologia Românica, organizado por Celso Cunha, na Faculdade Nacional de Filosofia (1958), Aires da Mata Machado Filho já naquela época reconhecia como era difícil o conhecimento, por parte do romanista, da totalidade das línguas românicas e de suas manifestações literárias. Mas, se por um lado havia a necessidade de especialização, não se poderia perder de vista o caráter especificador da Filologia Românica, que transferia para a universidade brasileira um certo “ideal panromânico e europeu” que lhe é próprio.

Sugeria então o ilustre professor mineiro, para que nossa disciplina não se tornasse mera cópia de outras, objetivando um melhor aproveitamento dos dois anos letivos que lhe estavam destinados ao final do currículo de Letras, que fosse criada a cadeira de Lingüística Geral, que o estudo autônomo da Dialetologia fosse estabelecido e que o curso de Letras fosse ampliado de 4 para 5 ou até 6 anos. No encerramento dos debates, Ernesto Faria defendia a criação da cátedra de Lingüística Geral nas universidades.

A professora Cristina Alves de Brito (BRITO, 1996), em recente estudo publicado na revista Philologus, mostra a atual realidade da Filologia Românica, cuja história em nosso país tem sido influenciada pelas mudanças resultantes das necessidades e das novas descobertas no campo da pesquisa das línguas. O ensino da disciplina nos cursos de Letras enfrenta problemas quanto à forma que deve assumir a Filologia e quanto à realização de trabalhos práticos, entre outras dificuldades com que se depara. Citando Gladstone Chaves de Melo, a autora lembra que “não se improvisa um filólogo, ele deve ser formado” e menciona nomes importantes do meio acadêmico que crêem que a pesquisa filológica por parte dos alunos não deve ser limitada à sala de aula e/ou ao direcionamento do professor.

Nas diferentes universidades brasileiras, a Filologia Românica tem-se mantido sob o título de Filologia, mas também recebe equivocadamente outros nomes, como Lingüística Românica, Lingüística Histórica do Português, Gramática Histórica ou História da Língua Portuguesa, ou tem seus conteúdos ministrados dentro dos cursos de Língua Portuguesa. Na graduação, predomina o aspecto teórico, reflexo do pouco tempo destinado aos cursos, problema que já em 1958 preocupava Matta Machado. Na pós-graduação a situação é mais séria, pois ou o curso não é oferecido por não haver nem mesmo professor que possa assumir a tarefa ou, se oferecido, as informações são apenas teóricas e superficiais, repetindo o que se faz na graduação.

Como podemos observar, a universidade brasileira não estimula a formação de filólogos, desinteresse antigo que poderia levar à extinção da disciplina Filologia - e por extensão da Filologia Românica - em nosso país, a exemplo do que já acontece em outras nações da América Latina (Argentina e Chile, por exemplo).

Também não podemos esquecer que, além de pesquisadores, formamos professores de língua portuguesa e de línguas do grupo românico que, embora em sua prática pedagógica adotem a sincronia por ser, segundo Herculano de Carvalho, “o que melhor se adapta à própria perspectiva do sujeito falante e às finalidades que este procura atingir, através da atividade lingüística”, volta e meia estes terão de buscar recursos nos fundamentos históricos aprendidos nas aulas de Filologia Românica. “Se a historicidade é uma dimensão intrínseca e consubstancial às línguas naturais, é óbvio que o estudo científico de qualquer língua não pode deixar de incorporar a dimensão de sua história”, diz-nos Clarinda de Azevedo Maia. (MAIA,1996-1997).

Como resolver tantos impasses? Os problemas apontados por Nascentes persistem - se é que não podemos dizer que se aprofundaram, visto que a nossa geração se formou nesse quadro deficitário e que os grandes nomes da Filologia Brasileira ou não estão mais entre nós ou já estão afastados das bancas escolares (no país-que-vai-pra-frente, experiência parece ser um incômodo).

Deixamos aos participantes deste evento e de outros que certamente virão, haja vista a luta do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos e da Academia Brasileira de Filologia, entre outras entidades, o ensejo de encontrar respostas para nossa inquietação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRITO, Cristina Alves de. "O ensino da Filologia: reflexões". Rio de Janeiro: Revista Philologus, 6, 1996.

MAIA, Clarinda de Azevedo. “A disciplina História da Língua Portuguesa”. Revista Portuguesa da Filologia, v. XXI. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1996-1997.