O PARALELISMO COMO RECURSO ESTILÍSTICO
DAS CANTIGAS DE MARTIM CODAX.

Darcilia Simões (UERJ)

1. O PARALELISMO NA LÍRICA MEDIEVAL
Trata-se de princípio rítmico de organização de textos poéticos, que se encontra na poesia popular dos mais re-motos países. O paralelismo define-se pela reiteração em estrofes  sucessivas, quer de sentidos, quer de construções sintáticas. É característico dos velhos cantares de amigo galego-portugueses, onde se requinta com o uso do leixa-pren (repetição, no início de uma estrofe, do último verso, ou apenas de algumas palavras, da estrofe anterior); penetrou nas cantigas de amor e de maldizer; ainda persistiu em Gil Vicente e na tradição popular galego-portuguesa, até nossos dias.
Para alguns estudiosos, a linguagem do trovadorismo galego-português seria formal e mantenedora da tradição Representando, portanto, uma norma em certos pontos atrasada relativamente à língua da época, natural seria que conti-vesse alguns arcaísmos, mais visíveis nas cantigas paralelísticas. Tudo isto é perfeitamente compreensível se observado do ângulo da necessidade técnica que revestia a linguagem poética medieval . As marcas mais fortes seriam:
? aspecto formal comum, rígido e repetido
? vocabulário reduzido e fixo
? construções idênticas
? temática semelhante e reiterada
Assim, conclui-se que o ideal literário era cifrado no perfeito domínio da técnica comum:  o poeta seria tanto melhor quanto maior virtude canônica revelasse no uso dos processos, conteúdos e formas correntes. Ou seja, as varia-ções sobre um mesmo tema seriam maiores que a criação intelectual.
Daquele conjunto de normas, tomamos o paralelismo como recurso da mais alta expressividade quando a marca é a repetição.
O paralelismo tem grande importância para a compreensão estética da nossa lírica medieval. Segundo alguns estudiosos (cf. Eugenio Asensio) o paralelismo era imperativo sobre as pausas, ritmo, rima, etc. O paralelismo compõe um jogo de simetrias que põe a descoberto os pólos mais expressivos da arte: a repetição e a variação, sendo que a repe-tição mantém a hegemonia enquanto recurso estruturador.
Um esquema típico é o seguinte:
? estrofes de dois versos seguidos de refrão, o 2º verso da 1ª estrofe repete-se como 1º, da 3ª, o 2º verso da 2ª repete-se como 1º da 4ª, e assim por diante.
Casos há em que esse esquema não é observado com rigor — casos de paralelismo imperfeito — assinalados por Costa Pimpão na sua História da Literatura Portuguesa — Idade Média — 2ª ed., 1959, p 153-154.
O paralelismo é uma marca decisiva da ligação original da poesia ao canto e à dança. Dois coros cantariam as estrofes alternadamente; o refrão seria cantado pelos dois coros simultaneamente, ou por um solista.
O paralelismo, no dizer de O. M. Garcia , é um recurso de construção por meio do que é garantida a coerência das idéias que se pretende expor. É, portanto, um processo estrutural que visa à clareza dos enunciados.
O paralelismo gramatical (ou sintático) é o mais relevante dentre os paralelismos, porque, quando não obser-vado, pode gerar ruído na comunicação, quebrando o trânsito  da mensagem entre emissor e receptor, denunciando construção defeituosa.
Na poesia, o paralelismo sintático é um recurso formal muito explorado, já que pode contribuir no ritmo, na rima, na construção dos significados, na diagramação das idéias, enfim, na formulação icônica  do texto.
O estudo do paralelismo é pertinente à sintaxe estrutural , onde são examinadas as várias maneiras de compor e armar a frase, desviando-a, sob o influxo de certos fatores psicológicos, dos seus tipos normais ou lógicos, quer na con-cordância ou na regência, quer na construção ou na expressão dos seus elementos, por isso se presta também a caracteri-zar estilos.
O autor que escolhemos — MARTIM CODAX — para demonstrar a expressividade do paralelismo na poesia medieval está incluso entre os que produziram as barcarolas ou marinhas. Tratam-se estas de cantigas de amigo que versam sobre assuntos referentes ao ar ou ao rio. Afora um certo número em que a moça vai apenas banhar-se ao rio, ou da margem vê o barco deslizar pelas águas, nas barcarolas ela geralmente se lamenta do amado, ou, durante a sua ausên-cia, pede às ondas notícias dele, ou ainda, ansiosa, vai esperar os navios para tornar a vê-lo.

2. QUEM É MARTIM CODAX
Jogral ou segrel galego, possivelmente ativo em meados ou terceiro quartel do século XIII, cujas cantigas, num total de sete, foram conservadas pelos apógrafos italianos (CBN  1278-1284; CV  884-890) e por precioso rolo mem-branáceo da época, o chamado Pergaminho Vindel, que,  a par do texto poético, traz notação da melodia que o acompa-nhava, caso único na lírica profana galego-portuguesa. Nenhum poeta dos cancioneiros tem despertado maior interesse dos especialistas, principalmente depois da descoberta do PV , em 1914.
Tem-se notícia de mais de cinqüenta edições de sua obra (embora nem todas tão bem cuidadas).
Martim Codax é um poeta na expressão mais pura do termo, e, por isso, não se ateve às regras rígidas do pa-ralelismo. Desenvolve uma temática restrita que se desenrola num cenário que não trascende das ondas da ria e do adro da igrejinha de Vigo, mas conseguiu impregnar suas palavras, reiteradas melodicamente, de intensa emoção lírica, de certo encantamento primitivo, derivado em parte do tônus exclamativo-indagativo com que a niña-virgo, enamorada e saudosa, se dirige às ondas, a Deus e a si própria em busca de novas do amigo, que inexplicavelmente tarda, sabendo-se sem ela ao pé.

3. ESTUDO DE  QUATRO  CANTIGAS DE MARTIM CODAX (SÉCULO XIII)

CANTIGA 1

Mia irmã fremosa, treides comigo
a la igreja de Vigo, u é o mar salido:
e miraremo-las ondas.

Mia irmã fremosa, treides de grado
a la igreja de Vigo, u é o mar levado:
e miraremos-las ondas.

A la igreja de Vigo, u é o mar salido,
e verrá i, madre, o meu amigo:
e miraremo-las ondas.

A la igreja de Vigo, u é o mar levado,
e verrá i, madre, o meu amado:
e miraremo-las ondas.
 

CANTIGA 2
Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo?
E ay Deus, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,
se vistes meu amado?
E ay Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,
o por que eu sospiro?
E ay Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amado,
por que ey gran coidado?
E ay Deus, se verrá cedo!
 

As Cantigas 1 e 2 são do tipo em que a moça canta às águas a espera do amado e clama pela sua volta, pedindo o auxílio do mar ou do rio.
Nas Cantigas 1 e 2, vê-se uma estruturação simples, onde cada par de estrofes mantém forma semelhante com pequenas variações semanticamente apoiadas; é o chamado paralelismo semântico.
Observem-se as combinações:

CANTIGA 1
Mia irmã fremosa, treides comigo a la igreja de Vigo, u é o mar salido: e verrá i, madre, o meu amigo:
Mia irmã fremosa, treides de grado a la igreja de Vigo, u é o mar levado: e verrá i, madre, o meu amado:
noção de modo  afastamento  bem-querer
CANTIGA 2
Ondas do mar
 de Vigo, se vistes meu amigo? o por que eu
 sospiro?
Ondas do mar
 levado se vistes meu amado? por que ey
 gran coida-do?
noção de afastamento  bem-querer  espera

Como é possível objetivar pelo gráfico, o esquema estrutural é simples, e a repetição se faz previsível nas Canti-gas 1 e 2.
No terceiro par, o termo sospiro promove a mudança do modelo rímico — sustentado até aí em -IGO (Vi-go/amigo) — trazendo o padrão imperfeito de rima para a cantiga.

CANTIGA 3
Ai Deus, se sab’ora meu amigo
Com’eu senlheira  estou en Vigo
e vou namorada.

Ai Deus, se sab’ora meu amado
Com’eu en Vigo senlheira manho
e vou namorada.

Com’eu senlheira estou en Vigo
e nulhas  guardas non el comigo
e vou namorada.

Com’eu en Vigo senlheira manho
e nulhas guardas migo non trago
e vou namorada.

E nulhas guardas non el comigo
ergas meus olhos que choran migo
e vou namorada

E nulhas guardas migo non trago
ergas meus olhos que choran ambos
e vou namorada

A Cantiga 3 já apresenta algumas novidades:
? no nível semântico, vemos uma moça que lamenta o amor ausente e declara sua solidão, sem explicitar qual-quer pedido de ajuda;
? no nível estrutural, tem-se a simetria (ou cruzamento) que gera imagens em espelho. Esta construção sugere os efeitos paradoxais do amor e da espera.
Leia-se o quadro:

espera-se  o amor para não  sofrer
 
sofre-se o amor por esperar

Assim, usa o autor as expressões senlheira (=sozinha) en Vigo (localização geográfica) como as pedras do jogo das inversões:
Estrofe 1 linha 2 senlheira en Vigo
Estrofe 2 linha 2 en Vigo senlheira
Estrofe 3 linha 1 senlheira en Vigo
Estrofe 4 linha 1 en Vigo senlheira

Também o sintagma E nulhas guardas  (= e nada ficou) é usado  naquele molde estrutural, reforçando assim a idéia de isolamento e solidão.
Apesar das modificações detectadas na Cantiga 3, percebe-se que a previsibilidade formal é uma marca da força do paralelismo, uma vez que, seja em repetições emparelhadas seja em repetições cruzadas, o que rege a produção é a repetição.
Ainda nesta Cantiga vemos outros cruzamentos especiais:
Estrofe 3 linha 2 e nulhas guardas non el comigo
Estrofe 4 linha 2 e nulhas guardas migo non trago
Estrofe 5 linha 1 e nulhas guardas non el comigo
Estrofe 6 linha 1 e nulhas guardas migo non trago

Observe-se que a expressão e nulhas guardas se repete nos quatro versos (um de cada estrofe) com uma varia-ção apenas do segundo membro.
Ainda se vê outra repetição nova nas duas últimas estrofes:
Estrofe 5 linha 2 ergas meus olhos que choran migo
Estrofe 6 linha 2 ergas meus olhos que choran ambos

Consideramos padrões diferenciados de repetição nesta cantiga pela presença da simetria centrada em três tipos de paralelismo:
? Padrão 1— paralelismo sintático: nas primeiras quatro estrofes: senlheira / en Vigo ? simetria de sintagma nominal
? Padrão 2 — paralelismo semântico: da estrofe 4 à 6: e nulhas guardas + x ? repetição oracional com sime-tria semântica: non el comigo & migo non trago;
? Padrão 3 — paralelismo sintático-semântico: das estrofes 5 e 6: ergas meus olhos que choran + x  ? repeti-ção racional seguida de simetria de sintagma oracional. Neste caso, combinam-se os dois modelos utilizados nos padrões 1 e 2.
Diagramaticamente considerados, os padrões empregados demonstram a formulação do raciocínio ali expresso: tese 1 + tese 2 + conclusão.
 
 
 

CANTIGA 4
Eno sagrado, en Vigo,
bailava corpo velido :
amor ei!

En Vigo, (e) no sagrado,
bailava corpo delgado :
amor ei!

Bailava corpo delgado,
que nunca ouver’amado :
amor ei!

Que nunca ouver’amigo,
ergas no sagrad’, en Vigo:
amor ei!

Que nunca ouver’amado,
ergue’en Vigo, no sagrado:
amor ei!

Quanto à Cantiga 4, vê-se manifesto um modelo mais complexo de cruzamentos paralelísticos, a saber:
Padrão 1
Estrofe 1 linha 1 Eno sagrado, en Vigo
Estrofe 2 linha 1 En Vigo, (e) no sagrado,
Estrofe 4 linha 2 no sagrado, en Vigo
Estrofe 5 linha 2 en Vigo no sagrado,

Padrão 2a:
Estrofe 1 linha 2 bailava corpo velido
Estrofe 2 linha 2 bailava corpo delgado
Estrofe 3 linha 1 bailava corpo delgado

Padrão 2b:
Estrofe 3 linha 2 que nunca ouver’ amado
Estrofe 4 linha 1 que nunca ouver’ amigo
Estrofe 5 linha 1 que nunca ouver’ amado

Padrão 3
Estrofe 4 linha 2 ergas no sagrad’,  en Vigo:
Estrofe 5 linha 2 ergue’en Vigo,  no sagrado

Padrão 1: nas estrofes 1 e 2 & 4 e 5 — En(o) sagrado & en Vigo ? repetição e cruzamento de sintagmas nominais adverbiais, formando o paralelismo sintático

Padrão 2:
? 2a) nas estrofes 1 a 3 — Bailava corpo + x ? repetição de sintagma oracional seguida de cruzamento de sintagmas nominais adjetivos, gerando o paralelismo semântico. Ali também se verifica a repetição emparelhada nas estrofes 2 e 3, onde o verso 2 da estrofe 2 é o verso 1 da estrofe 3.
? 2b) nas estrofes 3 a 5 — Que nunca ouver’+ x ? repetição de sintagma oracional seguida de cruzamento de sintag-mas nominais substantivos.

Padrão 3: nas estrofes 4 e 5 — ergas no sagrad’, en Vigo:  & ergue’en Vigo, no sagrado: ? onde se manifestam o pa-ralelismo verbal ergas/ergue; o paralelismo simétrico no sagrado & en Vigo.
Os cantares d’amigo apresentam um quadro paisagístico com quase todos os seus elementos: a costumada espe-ra do amigo no porto depois de sua longa ausência; a presença da mãe e da irmã como confidentes do drama sentimental da donzela; a igreja como ponto de referência dos fatos mais importantes da vida amorosa das populações burguesas da época; e a participação da natureza: as ondas, o mar encapelado, cuja função é meramente utilitária. A feição paralelísti-ca, rudimentar, justifica a repetição das pequeninas imagens que dão contorno poético a um conteúdo circunstancial.
Nas Cantigas apreciadas, o que se vê é uma evolução na utilização dos recursos que definiam a criação poética da época, transformando-os numa astuciosa variedade de combinações que, aliando forma e conteúdo, desenhavam qua-dros ímpares de situações comuns e repetidamente vividas pelo lirismo medieval.
Portanto, cremos que eleger textos de Martim Codax para demonstrar a riqueza do paralelismo enquanto recur-so poético pode resultar até no desejo de experimentar os modelos e, arregaçando as mangas, dar asas à imaginação e entrar a produzir cantigas contemporâneas que possam dizer do amor, da espera e da solidão que cada vez sempre ca-racterizam a alma humana.
É possível verificarem-se, na Música Popular Brasileira, construções inspiradas nos modelos das cantigas  medi-evais. Compositores como Chico Buarque , Caetano Veloso  e Elomar Figueira de Melo  souberam demonstrar que, a despeito das mudanças sócio-culturais, o homem continua apaixonado, romântico e, quando é possível, conversa com deuses, forças da natureza, rios, mares e ventos para pedir ajuda ou, simplesmente, para cantar seu amor.
Também podem revelar em suas obras a produtividade da repetição enquanto sinal de mestria poética. Para ava-liar tal recurso, basta examinar as letras de Construção, de Chico Buarque, ou Quereres, de Caetano Veloso, para que seja constatada a riqueza da reutilização de formas lingüísticas na estruturação de ritmos e rimas ou na expressão de mundividências muito especiais.
Vale a pena conferir.