DECISÕES EDITORIAIS
ACERCA DOS INÉDITOS DE UM  AUTOR

Rosa Borges Santos Carvalho (UFBA, UNEB) 

 Pretende-se, nesta comunicação, expor sobre o modo de como proceder no que concerne aos textos deixados inéditos pelo autor, sejam eles completos, inacabados ou rascunhos. Discute-se se estes inéditos devem ser divulgados e sob quais condições. Listam-se como tópicos relevantes para discussão a ética, leitura crítica ou diplomática, modo de reprodução do material, fac-símile ou composição tipográfica, responsabilidade editorial, conhecimento dos processos de criação do autor, o valor desse material não publicado.
Arthur de Salles, poeta do recôncavo baiano, parnasiano-simbolista, que viveu de março de 1879 a junho de 1952.  Arthur Gonçalves de Salles é o autor da letra do Hino ao Senhor do Bomfim. Possui trabalhos éditos, inéditos e dispersos, de temática variada, embora, em muitos de seus textos, note-se uma constante: o mar e seus motivos.

Fazer a edição crítica de um texto significa  buscar o texto representativo da última vontade do Autor e  limpá-lo das alterações nele introduzidas em sua tradição. Chegar ao ânimo autoral, no entanto, não é tarefa simples, mas, ao contrário, bastante complexa, quando se está diante de situações diversas, pois cada texto é um texto, com suas peculiaridades, que exigem uma atitude decisiva e coerente por parte do editor.

No estudo de textos de autores modernos deparamo-nos com problemas de toda a ordem, que vão desde questões éticas ao como proceder diante dos materiais que dispomos. A Crítica Textual Moderna vem se construindo. Aqui, o autógrafo dá a palavra definitiva. É preciso tomar o manuscrito em toda sua amplitude, considerá-lo numa perspectiva genética, buscar compreender o processo de construção de um autor. À Crítica Textual não cabe a somente a tarefa de restaurar a obra literária, mas apresentá-la ao público, leitor especializado ou comum, como um recorte fundamental na história de nossa Literatura, comentando essa obra sob diversas perspectivas, lingüística, literária e genética.

O poeta Arthur de Salles publicou um livro Poesias (1920) por iniciativa de seus amigos, depois foram publicados Sangue-Mau (1928), reeditado em 1948 juntamente com O Ramo da Fogueira, sob a epígrafe de Poemas Regionais e um Prefácio ao Macbeth, no clássico da Jackson, além de muitas publicações em jornais e revistas da época. Postumamente, foi publicada a Obra Poética (1973), encomendada pela Secretaria de Educação e Cultura da Bahia. Mais fizera, porém a sua modéstia o deixou esquecido, embora o poeta figure nos compêndios de Lietratura Brasileira. Há ainda muitos inéditos.

Postamo-nos diante do modo de como proceder com relação aos inéditos de um autor. São listas de personagens, rascunhos de obras que foram publicadas, anotações do material lido ou discursos a serem realizados, ou simplesmente anotações de suas reflexões, fragmentos, “borrões passados a limpo”, textos acabados, textos em estado amorfo, como define o próprio poeta. Enfim são várias as situações que caracterizam a maneira de escrever, de compor os versos, de um poeta.
Enquanto vivo, cabe ao poeta a responsabilidade de construir a sua fortuna cultural. Depois, se julgamos importante, cabe ao editor tal tarefa. Deparamo-nos com questão ética: podemos divulgar o que ficou inédito? Afinal, desconhecemos a razão que levou o autor a abandonar tais materiais ou por que guardou determinado manuscrito. Nestes casos é o próprio manuscrito que dita a atitude que deve ser tomada pelo editor que se propõe a editar a obra inédita de um autor. Em se tratando de um texto passado a limpo, com características de texto definitivo, publica-se criticamente o texto; se rascunho ou fragmentos, pretende-se fazer uma leitura diplomático-interpretativa; se em estado amorfo, a reprodução será em fac-símile.
É aqui que intervém a figura do investigador, o editor crítico, conhecedor dos processos de trabalho do escritor e das suas preocupações estéticas, por exemplo, o Salles sempre que passava a limpo um texto, escrevia o título em todos os fólios, as letras eram bem pousadas, assinava no término da obra, indicava o lugar e a data de composição da mesma, com raríssimas correções ao texto, quando existiam. Esse texto provavelmente pretava-se à publicação, a razão de não tê-lo sido deve-se ao desleixo do escritor quanto à publicação de suas obras.
Carlos Reis chama atenção para o fato de  que “o estudo e eventual edição de inéditos depois da morte do seu autor não pode dissociar-se disso que chamamos a sua imagem pública”. Questiona-se se a publicação dos inéditos não comprometeria a imagem que se tem do poeta. Em se tratando de um poeta pouco conhecido, parece-me importante publicar sua obra inédita e dispersa de qualidade literária para inserí-lo, desta forma, no panorama da nossa Literatura como uma figura que produziu belos versos simbolistas e dedicou-se, principalmente, ao parnasianismo. Desse modo, poder-se-ia emitir juízo de valores a respeito desta figura ilustre da Literatura Baiana. O comprometimento do editor delineia-se na responsabilidade de apresentar ao público uma material com garantias científicas. A autoridade que compete ao editor fica resumida à gama de conhecimentos que ele dispõe para apresentar, ler, transcrever e comentar, além de relacionar com a obra édita do escritor. Trata-se de fazer dos materiais editados instrumentos para melhor conhecimento do poeta em questão, principalmente quando neles se percebe a espontaneidade de um processo criativo em desenvolvimento, o que se pode notar em “À mercê das cismas”, que embora publicado, a versão manuscrita mostrava-se mais confiável, sendo ela o texto de base; ou então O Cão de Bordo que, entre as versões manuscrita e as publicadas pode-se perceber nitidamente o evoluir-se na construção do texto definitivo.
Quanto ao tipo de leitura, crítica ou diplomática, associa-se às características dos textos implicados no processo; o grau de legibilidade, o aspecto grafemático, o nível de elaboração literária, a extensão, enfim, são várias as situações em que se apresentam os manuscritos. Cabe-nos a decisão quanto ao modo de divulgação destes materiais: conforme as condiçòes dos manuscritos serão feitas a leitura crítica, para os textos completos, a leitura diplomático-interpretativa, para os fragmentos e rascunhos, àqueles legíveis, reproduzindo-os por meio da composiçào tipográfica; quanto aos rascunhos ou textos com dificuldades concernentes à legibilidade a oas aspectos grafemáticos, opta-se pela reprodução fac-similar.
Mesmo os fragmentos e rascunhos são importantes neste tipo de trabalho, pois orienta-nos no sentido de uma reflexão de índole científica. Auxilia o editor na hora de escolher determinadas lições ou versões representativas do ânimo autoral. Estamos procurando entender o Arthur de salles não pelo que ele publicou, mas pelo que é o AS poeta, como trabalha na construção do texto poético, como se define dentro de uma estética, como representa a nossa literatura, o seu estilo, revela-se um patrimônio de nossa cultura.
Quanto aos textos inacabados, tomemos como exemplo Os Boitatás. A escolha deste poema  vem justificar a difícil tarefa do editor em estabelecer o texto representativo do ânimo autoral quando se trata de um texto inacabado, deixado inédito pelo poeta, "... pois perante um processo textual não terminado, o texto acabado é um futuro que apenas ao autor teria sido possível atingir, se ele o tivesse querido ou podido ... ".
 A tradição do texto do poema está representada por três versões: o manuscrito autógrafo, 0217,  datado de 13 de maio de 1922, em papel timbrado do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, apenso ao discurso proferido por Arthur de Salles no mesmo dia e local; o datiloscrito, 0130-0133, com emendas autógrafas, sem data e, por fim, o manuscrito apógrafo, 0453 (1vo. 3ro.), datado de 18 de agosto de 1933, incompleto. Destas versões, somente foi expurgada a versão 0453, apógrafa, incompleta, portanto, sem autoridade. Como texto de base, tomou-se a versão datiloscrita, com emendas autógrafas, por mostrar-se mais recente,  embora não datada, em relação ao manuscrito autógrafo, de 1922. O texto do autógrafo não é muito diferente daquele do datiloscrito, o que explica serem as emendas autorais feitas ao datiloscrito correspondentes a uma campanha  posterior. Releve-se ainda como referencial a reforma ortográfica de 1943, isto é, de acordo com a ortografia da época, o datiloscrito seria anterior a 1943. Desta forma, pode afirmar-se ser o datiloscrito posterior a 1922 e anterior a 1943.
 O texto do datiloscrito representa uma fase de um processo genético que o Autor poderia continuar, buscando a forma pretendida, a fase definitiva, ou, talvez, abandonar definitivamente. Trata-se de um texto marcado por emendas feitas em duas campanhas: a tinta e a lápis.  A primeira  correção, a tinta,  é aquela em que se emendam os erros de datilografia,  de grafia,  concordância e de pontuação, portanto, seria o resultado de um primeiro contato com o texto datilografado que suscitava correções.  A  segunda, a lápis, o poeta  sublinha com linha interrompida ou traço cheio, risca, coloca, ao lado dos versos, interrogações, abre parêntese, colchete e, muitas vezes, não apresenta uma nova lição, propõe alguma palavras para substituírem àquelas assinaladas no texto, corrige também a pontuação e os erros óbvios não observados na primeira correção.
 Diante desta situação, questiona-se então qual seria, neste caso, a última vontade do Autor. O Prof. Dr. Luiz Fagundes Duarte, da Universidade Nova de Lisboa, em  seu artigo "Prática de edição: onde está o Autor?",  faz uma explanação sobre o comportamento do editor quando deverá estabelecer o texto crítico de obras não terminadas ou então deixadas inéditas pelo Autor, para as quais o editor tem de "tomar uma decisão por procuração".  Fala ainda em pluralidade de vontades do Autor.  Assim, diz ele, em se tratando de um borrão virtual, cujo destino final é impossível vislumbrar ou sequer conjecturar,

(...) poderei questionar o manuscrito, identificar as campanhas  de escrita e de correcção, e definir a última fase de intervenção do autor, que é aquilo que eu chamo o nível terminal daquele manuscrito - mas não forçosamente daquele texto, pois, repita-se, nunca saberemos se o texto nele presente teria continuação ou se viria, alguma vez, a conhecer a fase definitiva. Ou seja não podendo dispor de dados objectivos que me permitam identificar qual seria a derra deira vontade [grifo do autor] do autor, posso no entanto identificar uma pluralidade de vontades [grifo do autor], uma vez que qualquer correcção autógrafa entre a escrita de primeiro jacto e o nível terminal do manuscrito representa  sempre uma vontade que só deixa de o ser depois de substituída por uma nova vontade.

 Para determinar o nível terminal do manuscrito, apresentando ao leitor um texto legível, porém permitindo a observação do processo genético,  é preciso munir-se de alguns procedimentos:  “colacionar os testemunhos, dentro de cada um deles  identificar os momentos e as fase de transformação, analisar a teia de informações semióticas, históricas e textuais, comparar tudo isto, organizar os testemunhos cronologicamente, descrever todo o processo ....”
 Desse modo,  deve destacar-se, mais uma vez, a cautela que o editor deve ter nestes casos, ou seja, publicar os textos inacabados ou deixados inéditos pelo autor com estão, chamando a atenção do leitor para o fato de que aquilo que lerá é apenas o nível terminal apurado.
 Quanto às transformações, ou seja, as fases genéticas, tudo aquilo que foi questionado pelo poeta, riscado, alterado não poderá aqui ser exposto por ser demasiadamente longo para os propósitos de uma artigo. Por este motivo, para que não sejam negadas ao leitor as mencionadas fases genéticas, seguem alguns trechos do datiloscrito e passagens do texto crítico a que se chegou, acompanhado do aparato. No aparato crítico, apresentam-se as variantes autorais e textuais, além das observações crítico-filológicas do editor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Mais uma vez, em conformidade com os documentos  que se têm até a presente data,  esclarece-se o fato de que o texto crítico fixado não representa, a nosso ver, o ânimo autoral, mas o nível terminal de um texto que não foi concluído e para o qual não se pode determinar quais as razões que levaram o poeta a abandonar o texto. As passagens dubitadas sugerem que, provavelmente, o poeta ainda trabalharia naquele texto, buscando a forma que mais lhe agradasse. Mas, infelizmente, desconhece-se a existência de qualquer versão posterior àquela do datiloscrito.