CONFLUÊNCIAS NO ESTUDO DA MUDANÇA LINGÜÍSTICA

Carlos Alexandre V. Gonçalves (UFRJ)

0. Preliminares
Desde que Saussure (1912) advogou rígida dissociação metodológica entre as perspectivas descritiva e histórica de investigação, a Lingüística passou por uma espécie de “febre sincrônica”, tornando-se hegemonicamente descritiva. Depois de Saussure, que inaugurou o que se pode chamar de ‘Programa da Lingüística Sincrônica’, à diacronia ficou destinado o papel de “parente pobre” da Ciência da Linguagem.
No Brasil, conforme Mattos e Silva (1988) relata em retrospectiva, estudos histórico-filológicos na linha de Serafim da Silva Neto, Souza da Silveira e Mansur Guérios, entre outros, hegemônicos até a década de 60, tornaram-se rareados: passaram a ser predominantes pesquisas descritivas sobre o português contemporâneo e debates sobre aplicação de modelos teóricos (cf. Altmann, 1994 e Gonçalves, no prelo).
Não fugiu a essa “febre sincrônica” a Sociolingüística Quantitativa de inspiração laboviana, com base na qual diversos estudos sobre fenômenos de variação e/ou mudança foram desenvolvidos através de perspectivas estritamente sincrônicas. Mesmo para verificar se determinadas variantes lingüísticas apontavam ou não para mudança em curso, o modelo variacionista de análise lançou mão, em grande escala, do recurso Tempo Aparente, baseado no recorte transversal de uma amostra sincrônica segundo a faixa etária dos informantes (cf., entre outros, os trabalhos de  Labov (1972) e Trudgill (1974), por exemplo).
Em artigo de 1975, intitulado On the use of present to explain the past, Labov rediscute o recurso Tempo Aparente como ferramenta metodológica efetiva e eficaz no prognóstico de mudanças em progresso e promove um equacionamento entre o descritivo e o histórico, encarando-os como abordagens mutuamente complementares. Dessa maneira, Labov (1975) defende a idéia de que a mudança, se atestada via Tempo Aparente, deve ser corroborada através de um encaixamento histórico no Tempo Real.  Em outros termos, é por meio dessa estratégia metodológica ? que pressupõe utilização de amostras de epócas diferentes ? que se pode conferir com mais precisão o prognóstico quer de mudança em progresso quer de estabilidade.
As perguntas teóricas que se podem fazer, tomando por base esse tipo de abordagem (o Tempo Real) são as seguintes: (a) como recuperar o vernáculo de estágios mais longínquos de uma língua? e (b) qual o material de que o analista deve dispor? Se o acesso ao registro falado em períodos históricos remotos de uma língua torna-se obviamente inviável, resta ao pesquisador a árdua tarefa de lidar com a documentação escrita remanescente, definida por Labov (1982: 20) como a arte de fazer o melhor uso de maus dados, no sentido de que os fragmentos da documentação escrita são o resultado de acidentes históricos para além do controle do investigador.
Com base nas reflexões acima apresentadas, defendo, neste artigo, a idéia de que o estudo da variação e/ou mudança em diacronia (isto é, a pesquisa em Tempo Real) está estreitamente relacionado com determinados problemas e técnicas da Filologia. Nesse sentido, o trabalho do lingüista variacianista em diacronia tende a se confundir, muitas vezes, com o do filólogo. Assim, buscando promover encontro conciliatório entre essas duas disciplinas “co-irmãs” afastadas ultimamente, procuro mostrar que a Filologia pode auxiliar o sociolingüista histórico em duas dimensões, fundamentalmente: (a) na construção de corpora representativos para um estudo vertical da língua e (b) na definição do chamado “envelope da variação”, ou seja, no elencamento dos fatores condicionadores. Passo a descrever, nas seções a seguir, as vantagens de se aliar a metodologia do filólolo à prática do sociolingüista.
1. Constituição de corpora: o exemplo do banco de dados diacrônicos
Com relação à formação de corpora diacrônicos representativos, matéria-prima de toda e qualquer investigação sociolingüística, é indispensável o intercâmbio entre Lingüística e Filologia não só na seleção e no elencamento dos textos que irão compor os data base, como também na indicação cronológica das edições de cada texto sobre o qual os dados serão rastreados, já  que cada documento tem sua história e é necessário conhecê-la, como aponta Mattos e Silva (1991: 53), para poder avaliar e explicitar as características da documentação lingüística de cada testemunho sobre o qual se desenvolverá  a análise.
Tendo como finalidades específicas, nas palavras de Chaves de Melo (1981: 7), a fixação, a interpretação e o comentário dos textos, o trabalho do filólogo é indispensável à constituição de corpora escritos de estágios remotos de uma língua. Além da datação precisa de cada obra, o analista deve, também, (a) descobrir se os textos constituem verdadeiros apógrafos ou se são edições que passaram por copistas; (b) verificar, no caso de edições compiladas, se os copistas foram fiéis ou se inseriram modernismos nos textos, modificando lingüisticamente o documento; (c) concluir se são obras vernáculas ou traduções e, nesse último caso, verificar se houve interferência da língua original na tradução; (d) a partir do texto, conhecer a história, os usos e os costumes e, enfim, a cultura da época em que foi escrito; e, finalmente, (e) verificar se as obras são edições originalmente escritas na data de edição ou se, na verdade, são cópias de códices anteriores. Esses fatores, se não levados em consideração, podem interferir decisivamente na análise dos fenômenos estudados e, inclusive, enviesar e invalidar os resultados da pesquisa.
Os “cuidados filológicos” acima enumerados tendem a minimizar a distância entre o oral e o escrito, já que visam, em última instância, à recuperação dos padräes de língua falada desses períodos mais longínquos da língua. Sigo, portanto, na thilha de Labov (1982: 20), a fim de “fazer o melhor uso” possível dos “maus dados” fornecidos pela “língua do papel”.
Com o intuito de buscar documentos de fala mais naturais, tentando evitar o viés da língua escrita, o lingüista tem de adotar estratégias para rastrear seus “melhores” dados. Assim fizeram alguns pesquisadores ? “valentes aventureiros” da nau que conduz à travessia dos revoltos mares da diacronia (cf. Gonçalves, 1993). Rosa (1995), por exemplo, trabalhou apenas com manuscritos portugueses do séculos XV e XVI para analisar o fenômeno da pontuação. Decat (1989) optou pelo uso de cartas e diários dos séculos XVIII e XIX como data base para investigar construções de tópico. Na mesma linha, Mollica (1995) utilizou documentação literária dos séculos XIII e XIV para verificar se o (de)queísmo era latente na história do português.
Dessa maneira, para analisar um fenômeno variável seguindo perspectiva vertical de investigação, o trabalho do lingüista não pode se desvincular da prática filológica, já que ela oferece subsídios para, em primeira instância, constituir um banco de dados confiável, matéria-prima imprescindível a qualquer estudo variacionista.
Acreditando que essa união no nível diacrônico, mais que necessária, traz fortes saldos teóricos e metodológicos, constituí um banco de dados que visa a servir de acervo para um estudo comparativo da língua portuguesa, desde sua formação como idioma neolatino até o século XIX. Essa amostra, denominada de Banco de Dados Diacrônicos (doravante BDD), é, na verdade, refinamento de um primeiro levantamento bibliográfico estabelecido por Gonçalves & Botelho (1991) e por Gonçalves (1992).
O BDD está originalmente constituído de 48 obras, divididas eqüitativamente em seis estágios de tempo diferentes (do século XIII ao XIX, como no Quadro (01) a seguir), a fim de poder avaliar a trajetória de um fenômeno variável longitudinalmente no Tempo Real. Como toda amostra sociolingüística, o BDD foi também estratificado. Além da variável ‘tempo’, a estratificação levou em conta uma variável discursiva * o gênero *, muito embora outras variáveis também pudessem ser controladas, como, por exemplo, (a) ‘estilo da obra’, (b) ‘origem do autor’ (rural/urbana) e (c) público-alvo. Para cada período histórico controlado, distribuí as obras em função dos três gêneros discursivos maiores (Brecht, apud Aguiar e Silva, 1976): narrativo, dramático e lírico1. A seleção dos textos foi feita levando-se em conta também a maior possibilidade de variação. Assim, obedecidos os cuidados filológicos apontados, o elencamento dos textos foi feito de acordo com os seguintes critérios:
(a) optei por trabalhar, sempre que possível, com narrações: crônicas, romances, narrativas religiosas e alegóricas, ensaios, teatro e poemas históricos. Obras dessa natureza funcionam como relatos oralizados de fala, tornando-se, portanto, mais próximas do uso real da língua;
(b) preferi estabelecer os corpora recorrendo a textos com maior grau de oralidade, preferencialmente aqueles em que os autores dessem fala a personagens, buscando flagrar o vernáculo da época;
(c) selecionei obras com menor grau de formalidade e de temáticas mais populares que atingissem a um público mais geral;
(d) escolhi somente textos que tivessem as primeiras edições disponíveis, procurando evitar obras corrigidas por copistas. Quando isto não foi possível, optei pelas edições críticas que publicassem os códices mais antigos. No Quadro (01) a seguir, são arrolados os textos que compõem o BDD2.

S
e
c
1 2 -14 Crônica Geral de Espanha
 
 
 

L. Cintra Testamento de D. Affonso II
 
 

A. AJ. da costa Livros de linhagem
 
 
 
 

Anônimo A linguagem dos Foros de Castella
 
 

L. Cintra A Demanda do Santo Graal
 
 
 

A. Magne O Cancionei-ro da Ajuda
 
 

M. Braga Cantigas d'escár-nio e maldizer
 
 

R. Lapa Chrónica d'elmy valeroso Rey D. Affonso
 

F. Ledsm
Sc1 4
-
15 O livro de Esopo
 
 
 

J. L. Vascon-cellos Leal conselheiro
 
 

Dom Duarte Tomada de Ceuta
 
 
 

G. E. de Azurara O livro das aves
 
 
 

N. Rossi
(ed.) Boosco deleytoso
 
 
 
 

A. Magne Chrónica d'el Rey Ioham I
 
 

Fernão Lopes O livro de falcoaria
 
 
 

R. Lapa O livro dos officios
 
 
 

J. M. Piel
s
e
c
 

16 Auto das Lágrimas
 
 
 

D. Bernardes Livro das saudades de Menina e Moça
 
 

B. Ribeiro Peregri-naçon
 
 
 
 

F. M. Pinto Comédia Intitulada Os Estran-geiros
 
 

Sá Miranda O soldado prático
 
 
 

Diogo do Couto Década primeira da Ásia
 
 

João de Barros Auto da barca do inferno
 
 

Gil Vicente Comédia Eufrosi-na
 
 

J. de Vas-concellos
s
e
c

17 A arte de furtar
 
 
 

Anônimo O fidalgo aprendiz
 
 
 

F. M. Melo Arte de cavalaria de gineta e estardiota

A. G. Andrade Histórias de Futuro
 
 

Pe. Antônio Vieira A vida de F. Bartolomeu dos Mártires

F. L. Souza Histórias Proveytozas
 
 
 

G. Trancozo Auto do Livra-mento
 
 

Anônimo Obras Poéticas
 
 

G. de Mattos
s
e
c

1
8 Teatro Novo
 
 

Correia Garção A monja e o rouxinol
 
 

M. Figueiredo Guerras do alecrim e mangerona
 
 

A. J. Silva Licore
 
 
 
 

D. R. Quita O secretário portuguez
 
 

F. J. Freire O Hyssope
 
 
 

A. Cruz Silva Resposta Apolo-gética
 

Pe. L. Kaulen A vida de Esopo ou Ezopaida
 

A. J. da Silva
s
e
c

1
9 Os Maias
 
 
 

Eça de Queirós O condenado
 
 

C. C. Branco O juiz de paz na roça
 
 

M. Penna A capital federal
 
 

A. de Azevedo Fallar a verdade e mentir
 
 

A. Garret Duas filhas
 
 
 
 

A. P. Cunha Cahiuo o ministé-rio
 
 

F. Júnior O Cortiço
 
 

Aluísio Azevedo
Quadro (01): As Obras que compõem o Banco Diacrônico de Dados
A princípio, o BDD seria constituído de sete diferentes estágios de tempo, pois pretendia estabelecer um corpus para cada século. Como a documentação disponível é relativamente pequena no chamado Português Arcaico (Vasconcellos, 1959), optei po dividir as obras desse período histórico3 em dois corpora distintos. Essa divisão corresponde, grosso modo, às propostas de periodização da língua portuguesa estabelecidas por Silva Neto (1950), por Vázques Cuesta & Mendes da Luz (1971) e por Cintra (1959).
Embora utilizem denominações diferentes para a subperiodização do Português Arcaico, os três autores acima referendados procedem à mesma delimitação temporal: o primeiro período estende-se do século XIII às primeiras décadas do século XV (1214-1420, aproximadamente) e o segundo, vai daí até as primeiras décadas do século XVI (1421-1536/1540). Essa divisão, além de necessária por não haver documentos disponíveis para os três séculos que compõem o Português Arcaico, permite comparar possíveis diferenças no afetamento de determinado processo de variação e/ou mudança nesses dois estados, oferecendo subsídios inclusive para confirmar/infirmar a subperiodização. Mais uma vez, observa-se que conhecimentos histórico-filológicos se fazem necessários ao sociolingüista diacrônico.
Ainda com relação ao BDD, selecionei, nos dois primeiros estados de tempo, tanto fontes chamadas primárias (os próprios manuscritos existentes) quanto fontes secundárias, de acordo com a taxionomia de Mattos e Silva (1989). Na verdade, essa documentação, como aponta Mattos e Silva (1991: 29), é o espólio de que dispõe o pesquisador, já que ele tem de submeter sua análise à documentação remanescente. Para os demais séculos, escalonei somente fontes primárias.
Acredito, portanto, que, somadas as ferramentas metodológicas próprias a esses dois campos do saber (Filologia e Lingüística), haverá mais confiabilidade científica e melhores condições para a análise dos fenômenos lingüísticos a investigar e, conseqüentemente, maior saldo teórico e aumento do saber acumulado.
2. Definindo o envelope da variação
Além de oferecer condições ideais para a constituição de corpora representativos, a Filologia pode auxiliar o (socio)lingüista variacionista na busca de grupos de fatores, ou seja, na seleção de parâmetros de natureza por assim dizer “filológica” que também podem ser usados para definir o envelope da variação. Neste artigo, examino com mais vagar fatores “filológicos” que podem ser chamados de “internos” (parâmetros lexicais), de acordo com a taxonomia estabelecida por Gonçalves (1993 e 1994). Essa análise não descarta, entretanto, a possibilidade de serem controladas também variáveis filológicas “externas”, que, a meu ver, podem ser relevantes no controle de fenômenos de variação ou câmbio lingüístico. Entre outros parâmetros, podem ser analisados, por exemplo, (a) o público-alvo a que se destina o texto e (b) o perfil sociogeográfico dos autores. No caso específico de obras do gênero dramático, em que personagens do cotidiano têm fala, pode ser relevante o controle das variáveis extralingüísticas já clássicas no Variacionismo, como, entre outras, (i) sexo, (ii) origem, (iii) etnia, (iv) profissão e (v) classe social. O filólogo pode dar informações precisas acerca desses dados. Passo a expor, agora, os resultados das variáveis que reuni, em Gonçalves (ops. cits.), sob o rótulo genérico de ‘léxico-etimológicas’.
Examinando os processos de aférese e prótese da vogal [a] na história do português (os fenômenos aparecem exemplificados em (01) e (02) a seguir, respectivamente), propus três grupos de fatores condicionadores que potencialmente pudessem influir na inserção e/ou no cancelamento desse segmento inicial: (a) origem, (b) idade, (c) via de acesso do vocábulo na língua. Com isso, pude chegar a uma leitura digamos “filológica” dos fatores condicionadores detectados no encaixamento das mudanças. Confiram-se os exemplos:
(01) Se me Deos feze fremozo, darme  bomdade, se lhe ?prouver. (Demanda do Santo Graal, século XIII, p.375)
(02) E poderen melhor chorar os seus pecados/e te/ iren sas almas mais Assessegadas. (O Livro das Aves, século XIV, p. 217)
Visando a ampliar o leque de parâmetros adotados em Difusão Lexical, seguindo a trilha de Wang (1969) e Wang & Cheng (1977), entre outros, denominei os três parâmetros controlados de ‘léxico-etimológicos’. Tais variáveis podem ser descritas como lexicias na medida em que dizem respeito à “vida” das palavras, envolvendo, assim, aspectos de sua própria identidade como item lexical, já que revelam, em última instância, sua nacionalidade, sua idade e o veículo utilizado (se via erudita ou popular) na migração para a língua portuguesa.
Os itens foram subcategorizados em (a) latinos, (b) gregos, (c) de outras línguas e (d) de origem obscura, segundo a variável ‘origem do vocábulo’. Por outro lado, com relação ao parâmetro ‘idade do vocábulo’, os mesmos itens foram considerados (a) antigos (os já existentes na história da língua desde sua formação), (b) de meia-idade (os que entraram na língua entre os séculos XIV e XVI), (c) contemporâneos (os de entrada posterior ao século XVI) e (d) novíssimos (os de ingresso no século XIX). Por fim, com relação à ‘via de acesso do vocábulo’, subdividi os itens em (a) de origem erudita e (b) de origem popular. Considero de origem erudita o vocábulo que não viveu em tradição ininterrupta na língua, sendo utilizado, inicialmente, em círculos eruditos, mais precisamente na linguagem literária, especialmente na poética (cf. Lausberg, 1989). As palavras “populares”, diferentemente, percorreram todas as fases de desenvolvimento da língua, tendo, assim, tradição ininterrupta na história do idioma.
Dois dos parâmetros léxico-etimológicos propostos * ‘idade’ e ‘via de acesso’ * não foram suscetíveis de tratamento segundo a metodologia da interseção lexical , já que muitos itens de origem erudita e de idade não-antiga obviamente não figuram nas primeiras fases históricas da língua. Os resultados das variáveis léxico-etimológicas (ou “filológicas”) podem ser vislumbrados no Gráfico (I) a seguir:
 Gráfico (I): As variáveis ‘léxico-etimológicas’ e os processos de aférese e de prótese do [a] (Gonçalves, 1993: 131)

Pelo Gráfico (I), observa-se que os vocábulos latinos, os de origem popular e os mais novos na língua são os mais propulsores quer da variação em aférese, quer da variação em prótese. Nesse sentido, funcionam como “barreiras lexicais” os itens emprestados de outras línguas, os de entrada antiga no Português (os chamados ‘de meia-idade’ e ‘velhos’) e os de ingresso via erudita.
Com base nesses resultados, pude propor o chamado ‘Princípio de Imanência no Sistema’ (cf. Gonçalves, 1993), segundo o qual itens lexicais por assim dizer “nativos” tendem a constituir barreira lexical, resistindo, pois, ao impulso inovador. É como se a língua imprimisse neles uma espécie de invólucro, tornando-os resistentes e, de certo modo, infensos à ação da mudança.
Princípio de Imanência no Sistema (PIS): Além de a mudança fazer inspeção a características lexicais (como à classe a que o vocábulo pertence ou à freqüência do item na língua), também pode ser sensível a fatores de natureza histórico-etimológica, haja vista que categorizações como [+/- antigo], [+/- emprestado] e [+/- erudito] podem atuar decisivamente na propagação da mudança. Ao que tudo indica, os valores positivos de tais parâmetros funcionam como barreiras lexicais, tornando os itens assim categorizados resistentes à ação da mudança. Por outro lado, os valores negativos fazem com que os itens assim caracterizados sejam as vítimas mais indefesas do processo.
Todo esse trabalho lexico-etimológico só se torna viável graças aos legados de filólogos e de gramáticos históricos (gramáticas históricas, dicionários etimológicos e obras do gênero). Dessa maneira, indicações filológicas se tornam imprescindíveis num trabalho de tal envergadura. A Filologia pode, pois, complementar a análise sociolingüística, na medida em que permite auxiliar a prever condições lingüísticas possíveis para o espalhamento e para a difusão das mudanças lingüísticas.
Diferentemente de análises variacionistas em sincronias contemporâneas, é necessário que o sociolingüista diacrônico, além dos conhecimentos de teorias e metodologias próprias à pesquisa quantitativa, também tenha certo conhecimento de princípios metodológicos e técnicas da Filologia. Assim, conforme o próprio Labov (1975: 829) assinala, não é tarefa simples resolver problemas históricos por causa da fragmentação dos documentos remanescentes, mas mesmo assim, acrescenta, nós podemos fornecer algumas interpretações plausíveis através de princípios que tenham total suporte empírico e assim iluminar o passado através do presente assim com iluminamos o presente através do passado.
3. À guisa de conclusão
A hegemonia da pesquisa descritiva (ou “febre sincrônica”) parece estar chegando ao fim. A Sociolingüística e a Gramática Gerativa, por revelarem interesse na questão da mudança, talvez tenham sido responsáveis pela volta da diacronia à pauta dos estudos da linguagem. O crescente interesse pela diacronia no Brasil dos anos noventa parece ser reflexo do que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa dos anos oitenta (cf. Altmann, 1994). De fato, estudos de natureza histórica estão voltando à baila no cenário da Lingüística Brasileira, reatando, nas palavras de Faraco (1991: 6), o fio tão drasticamente rompido na década de 60. Iniciam essa retomada as contribuições de Tarallo (1991), Ilari (1992), Faraco (op. cit.), Roberts & Kato (1993) e Mattos e Silva (1988, 1991 e 1994), entre inúmeras outras.
No meu entender, o viés de pesquisa que está sendo agora resgatado irá trazer abordagens renovadas para os estudos históricos, iluminando o passado através do presente, como diria Labov (1975). O presente artigo se insere nessa linha de investigação e se propôs a oferecer pequena contribuição ao reflorescimento de pesquisas de tal porte no Brasil. Enfatizo, entretanto, que essa volta ao passado pode ser melhor retratada quando se aliam, na investigação de fenômenos de variação e/ou mudança em Tempo Real, ferramentas da Filologia a procedimentos e técnicas analíticas próprias da pesquisa em Sociolingüística Variacionista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR E SILVA, V. M. de (1976). Teoria da Literatura. Lisboa: Livraria Almedina.
ALTMANN, M. C. (1994). Trinta anos de Lingüística Brasileira e auto-afirmação profissional. D.E.L.T.A.. São Paulo: PUC/SP, 10 (2): 389-408.
CHAVES DE MELO, G. (1981). Iniciação à Filologia e à Lingüística portuguesa. Rio Janeiro: Ao livro Técnico.
CINTRA, L. F. L. (1959). Contribuição para o estudo do leonês e do galego-português do século XIII. Lisboa: Sá da Costa.
DECAT, M. B. N. (1989). Construções de tópico em português: uma abordagem diacrônica à luz do encaixamento no sistema pronominal. In: TARALLO, Fernando (org.). Fotografias Sociolingüísticas. São Paulo: Pontes, p.113-39.
FARACO, C. A. (1991). Lingüística Histórica. São Paulo: Ática.
GONÇALVES, C. A. V. (no prelo). Mattoso Camara e a evolução das teorias lingüísticas no Brasil. Inédito.
GONÇALVES, C. A. V. (1994). Novos parâmetros em Difusão Lexical: as variáveis léxico-etimológicas. Anais do III Congresso da Assel-Rio. Niterói: UFF/Assel-Rio, (1): 345-56.
GONÇALVES, C. A. V. (1993). Aférese e prótese: verso e reverso morfológico. Dissertação de Mestrado em Lingüística. Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 181 p. mimeo.
GONÇALVES, C. A. V. (1992). Aférese e prótese: Verso e reverso fonológico. Revista de Estudos da linguagem. Belo Horizonte, UFMG, p. 65-78.
GONÇALVES, C. A. V. & BOTELHO, F. O. (1991). Suportes metodológicos para um estudo de fenômenos variáveis em corpora diacrônicos: o caso (de)queísmo. Estudos Lingüísticos XXI. Jaú: Fundação Educacional Dr. Raul Bauab/GEL, (1): 311-7.
ILARI, R. (1992). Lingüística Românica. São Paulo: Ática.
LABOV, W. (1982). Building on empirical foundations. In: LEHMANN, W. & MALKIEL, Y. (eds.). Perspectives on historical linguistics. Amsterdam: J.B. Publishing Company, 17-92.
LABOV, W. (1975). On the use of present to explain the past. Proceedings of the Eleventh International Congress of Linguistics. Bologna-Florence, Societè Editrice il Mulino Bologna.
LABOV, W. (1972). Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pensylvania Press.
LAUSBERG, H. (1989). Lingüística românica. 2a. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
MATTOS e SILVA, R. V. (1994). O português arcaico: morfologia e sintaxe. São Paulo: Contexto.
MATTOS e SILVA, R. V. (1991). O português arcaico: fonologia. São Paulo/Bahia: Contexto/Editora da Universidade Federal da Bahia.
MATTOS e SILVA, R. V. (1988). Estruturas trecentistas. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
MOLLICA, M. C. M. (1995). De que falamos? Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/UFRJ.
ROBERTS, I. & KATO, M., orgs. (1993). O Português Brasileiro. Campinas: Pontes.
ROSA, M. C. (1995). A pontuação no Português Renascentista. Tese de Doutorado em Lingüística. Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, p. mimeo.
SILVA NETO, S. da (1950). História da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Livros de Portugal.
TARALLO, F. (1991). Tempos Lingüísticos; itinerário histórico da língua portuguesa. São Paulo: Ática.
TRUDGILL, P. (1974). Sociolinguistics: an introduction. Great Britain: Penguin books.
VANCONCELLOS, J. L. de (1959). Lições de filologia portuguesa. Rio de Janeiro: Livros de Portugal.
VÁZQUES CUESTA, P. & MENDES DA LUZ, M. A. (1971). Gramática da língua portuguesa. 3a. ed., Madrid: Gredos.
WANG, W. (1969). Competing  changes  as a cause of residue. Language, 45 (1): 9-25.
WANG, W. & CHENG, C. (1977). Implementation of phonological change: the shung-fen chinese case. Papers  from  the sixth Chicago Linguistics Conference. Chicago: University Press.