MINUDÊNCIAS DO LÉXICO DA PRIMEIRA EDIÇÃO (1721) DE ANCHORA MEDICINAL PARA CONSERVAR A VIDA COM SAUDE”

Manoel Mourivaldo SANTIAGO ALMEIDA (UFMT/USP)

1. Introdução
O objetivo desta parte da comunicação é apresentar algumas particularidades, ou minudências, do léxico da primeira edição de Anchora medicinal para conservar a vida com saude”, publicada em 1721, cuja apresentação completa, luculentamente, já foi feita pelo colega Sílvio de Almeida Toledo Neto, no texto sobre os aspectos gráficos de Anchora medicinal.
A intenção aqui é suscitar exímios e curiosos exemplos encontrados ao longo do texto-base, com a pretensão de poder contribuir, no que se refere ao léxico, com os estudos sobre a língua portuguesa do século XVIII e assim constituir-se, quem sabe, em um daqueles trabalhos considerados imprescindíveis na elaboração do tão necessário dicionário histórico da Língua Portuguesa, transformando-se, conforme pode-se ler no prefácio de Cunha (1995),  em uma “contribuição microscópica”, no que se refere aos levantamentos de léxicos de fases históricas da língua escrita, de léxicos de estilos de época e de autores, de léxicos regionais e profissionais e de quantos possíveis, dentro do quanto se desdobre a capacidade criativa do ser humano.
Este levantamento lexical tem também outro objetivo particular. Por tratar-se de uma obra que esboça, dentre outros aspectos,  uma parva amostra da fala do final do século XVII e início do XVIII, torna-se em uma fonte de consulta que interessa ao projeto de pesquisa “Filologia Bandeirante” (Cf. Cohen et alii, 1997: 79-97), que busca mostrar traços da língua antiga preservados em localidades situadas nas trilhas das bandeiras paulistas de mesma época da obra: fins do século XVII e durante o século XVIII.
Apesar de ser evidente a existência de dois contextos bem distintos (a obra retrata o português europeu, escrito e “Filologia Bandeirante” buscará remanescentes de um português corrente no Brasil, na oralidade), que a princípio poderia invalidar o argumento, postula-se que para o que pretende o projeto “Bandeirante”, Anchora medicinal, principalmente por não ser obra literária, oferece parâmetros de sintaxe e de empregos lexicais para tal análise e previsível constatação que, hoje, no Brasil, tais sintagmas e léxicos estão presentes, ou acesos, na fala interiorana e ausentes, ou apagando-se, na urbana.

2. Critérios
Os critérios gerais seguidos para todas as etapas deste trabalho estão alicerçados nas lições colhidas em sala de aula, no primeiro semestre de 1996, quando Antônio Geraldo da Cunha ministrou o curso “Lexicografia Portuguesa” na USP. Mas, como o mesmo Cunha lembrava, dependendo da finalidade do trabalho lexicográfico, o próprio autor pode estabelecer suas normas, desde que estejam devidamente claras e coerentes. Neste trabalho, pela sua natureza, alguns desses paradigmas aprendidos e apreendidos durante o curso foram ligeiramente maculados, para o que peço permissão ao mestre.

2.1. Critérios para a seleção
2.1.1 O que determinou a seleção do vocábulo foi o fato de não estar registrado na 2ª edição revisada e aumentada do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa da Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986.
2.1.2 Num universo de 40.000 (quarenta mil) vocábulos, o que compreende setenta por cento do livro, dentre os mais de 200 (duzentos), que não estão registrados no Aurélio, foram selecionados, devido aos limites para este trabalho, apenas 40 (quarenta).
2.1.3 O que determinou a garimpagem foi o fato de tais vocábulos ou serem realmente raros, hipoteticamente caídos em desuso, pela falta de ocorrência em qualquer variação lingüística, ou, conforme alguns atlas lingüísticos brasileiros e a já concluída investigação preliminar do projeto “Filologia Bandeirante” na Baixada Cuiabana, região mato-grossense, serem correntes na fala do brasileiro, principalmente, com idade acima dos 50 anos, sem nenhum ou com pouquíssimo grau de escolaridade, que nasceu e ainda vive em localidades afastadas dos grandes centros urbanos, tendo assim todo um passado genealógico e cultural radicados no mesmo habitat, com pouco ou sem nenhum acesso aos meios de comunicação de massa e sem ou reduzida convivência e/ou interação com grupos sociais díspares do seu.
 
2.2. Características do registro
 2.2.1 Para se chegar à lista dos quarenta vocábulos, fez-se primeiramente um índice analítico, antecedido, necessariamente, de um de freqüência vocabular.
Há de se notar nas tabelas, à frente, que apesar do vocábulo ocorrer mais de uma vez, usou-se, como critério de abonação apenas uma das ocorrências, ou seja: transcrição da(s) frase(s) ou parte(s) dela(s) que documenta(m) o vocábulo registrado, com a mesma grafia do texto. Em virtude desse critério o presente levantamento vocabular se descaracteriza do que se denomina, via de regra, Índice Analítico, no qual todas as ocorrências são abonadas. Tal critério foi adotado em virtude da finalidade deste trabalho e também da não intenção de, exclusivamente, elaborar um índice analítico, contendo todos os vocábulos do texto-base.
 2.2.2 Todos os verbetes listados contêm os seguintes elementos: a) título do verbete com as seguintes alterações grafemáticas em relação à forma registrada no texto: substituição de y, semivogal, por i, como ocorre em peyor por peior, anulação da grafia de tendência etimológica, como as consoantes dobradas e/ou grupos de consonantes latinos e helênicos largamente recorrentes na época; b) categoria gramatical e, no caso dos substantivos, gênero; c) um dos últimos dicionários, que registra o vocábulo. Quais sejam, em ordem cronológica: Pe. Raphael Bluteau, 1712-1728, Antônio Morais Silva, 1813, Frei Domingos Vieira, 1871-1874, Laudelino Freire, 1922 e Francisco Júlio Caldas Aulete, 1948, todos contidos na bibliografia; d) acepção ou correspondente no português atual, sendo, ou o mesmo vocábulo com grafia atualizada, ou um sinônimo, ou o conceito perifrástico; e) número de ocorrência entre < > diples e indicação, respectivamente, de página e linha, com dois pontos entremeados, entre [ ] colchetes, da única ocorrência transcritas na última coluna e f) abonação (cf. com item acima).

2.3 Particularidades do registro no título do verbete
2.3.1 Os verbos foram registrados no infinitivo.
2.3.2 Os substantivos foram registrados com a indicação do gênero e no singular, enquanto os adjetivos, no masculino singular. Dessa maneira foram incluídas, no mesmo verbete, todas as suas ocorrências com diferentes flexões.

3. Tabelas
3.1 Os vocábulos selecionados foram separados e agrupados em tabelas distintas, dependendo do aspecto diferencial que apresenta em relação a seu correspondente no português atual. Em virtude disso ficaram assim distribuídos: I) vocábulos que sofreram apenas alterações fonológicas; II) vocábulos que sofreram apenas alteração semântica. Esta tabela é composta de mais uma coluna, indicando a acepção do vocábulo no texto-base;  III) vocábulos com alteração morfológica, ou de prefixo, ou de sufixo, sem mudança semântica; IV) vocábulos caídos em desuso, substituídos por um correspondente atual e V) vocábulos caídos em desuso, sem correspondente atual.

3.2. Abreviaturas e sinais convencionais
3.2.1 Abreviaturas:
Adj.
AMS
DV
LF
RB
s.f.
s.m.
S.reg.
v.  =
=
=
=
=
=
=
=
= Adjetivo
Antônio Moraes Silva (1813)
Domingos Vieira (1871-1874)
Laudelino Feire (1922)
Raphael Bluteau (1712-1728
Substantivo feminino)
Substantivo masculino
Sem registro
Verbo

3.2.2 Os sinais convencionais são resolvidos nas tabelas, onde estão empregados.
 
 

I. Apenas alterações fonológicas.
Verbete Dic. Acepção atual  <ocorrência> [página:linha] Abonação
Arruga s.f. AMS Ruga <1> [475:6] “Ou se fará hum leve exercicio, para que o alimento deça melhor ao fundo do estamago, que como tem suas arrugas, poderá o alimento deterse”
Emprasto s.m. LF Emplastro <7> [284:26] “Posta por emprasto nos estamagos fracos”
Estâmago s.m. LF Estômago <9> [285:7] “Para ajudar os cosimentos, confortando o estamago”
Fermoso adj. LF Formoso <2> [306:3] “O melão he hum dos mays fermosos frutos”
Froxo s.m DV Fluxo <7> [112:25] “Cura os froxos de sangue”
Lutoso adj. LF Lodoso <1> [183:12] “Em rios lutosos,  & immundos”
Peior adj. DV Pior <6> [183:27] “Os peyxes crustados, como he a lagosta, & as ostras, saõ os peyores”
Pírola s.f. LF Pílula <1> [294:20] “Tomando pelas manhãs alg?s dentes delle inteyros, como se foraõ pirolas.
Preverter v.  DV Perverter <1> [329:10] “hão de comer com moderação (...) que por muy fermentescivel, preverte a fermentação intestina da massa sanguinaria”
Selada s.f. AMS Salada <4> [70:4] “As ceas se devem fazer leves, (...), & assim saõ as que constão de peyxe, & selada.

II. Apenas alteração semântica.
Verbete Acepção da época Dic. Acepção atual <ocorrência> [página:linha] Abonação
Jantar v. s.m. Refeição do meio da tarde LF Refeição da noite. Obs.: Freire registra que jantar é a refeição entre o almoço e a ceia, sem mencionar a hora do jantar, mas diz que a refeição da noite é a ceia.  <4> [57:89] “Os cavalheros, a quem sempre amanhece mays tarde, almoçaõ pelas onze horas; jantaõ pelas duas da tarde; merendaõ quando a outra gente cea; & vem a cear pela meya noyte”

III. Alteração morfológica, ou de prefixo, ou de sufixo, sem mudança semântica.
Verbete Dic. Acepção atual <ocorrência> [página:linha] Abonação
Alimental adj. LF Alimentício <1> [73:2] “Humidade substantifica, & alimental, com que havião de nutrir”
Crustado adj. LF Crustáceo <1> [183:25] “Os peyxes crustados, como he a lagosta, & as ostras, saõ os peyores”
Deobstruir v. S.reg. Desobstruir <2> [313:9] “Se se cozem com vinagre, diz Avicena, que não opilão, & que deobstruem”
Discurso s.m.  LF Decurso> Durante <1> [398:20] “Beber toda a agoa no fim da mesa, nem o repartila no discurso della”
(Continuação de III)
Verbete Dic. Acepção atual  <ocorrência> [página:linha] Abonação
Formidável adj. LF Formidando <2> [370:1] “Introduz na massa do sangue hum vício salino, acre, & mordaz, de que procedem comichoens (...) & outros mays danos, que fazem formidavel o assucar”
Fregar v.  DV Esfregar <1> [297:11] “Fregando-os com ella pizada, ou com o seu sumo”
Incindente adj. S.reg. Incindível <3> [279:9] “Saõ aperitivos, attenuantes, & incindentes”
Obstruente adj. S.reg. Obstrutivo <1> [258:8] “Os grãos (...) saõ indigestos, dão alimento obstruente”
Paludano adj. LF Paludoso <2> [7:21] “Regioens paludanas, & bayxas”
Palustral adj.
 S.reg.
 Palustre
 <2> [388:17] “As agoas palustraes”
Panifício s.m. S.reg. Panificadora <2> [90:4] “O paõ (...) cresce muyto mays, assim como no panificio cresce a massa quãdo se fermenta”
Prepedir  v. DV Impedir <2> [407:8] “Nacem os reumatismos (...) e com o uzo da Agoa de neve, facilmente se pódem prepedir.
Transcolar v. LF Transcoar >
Filtrar <1> [391:16] As agoas de lagoas (...) não se transcolaõ bem pelos rins”
Ustivo adj. S.reg. Ustório <3> [315:9] “Nas febres ustivas, & ardentes, servem de regalo”
 

IV. Substituição por um correspondente atual.
Verbete Dic. Acepção atual <ocorrência> [página:linha] Abonação
Ajuda s.f. LF Clister <2> [272:24] “São boas as acelgas para do seu cosimento se fazerem ajudas irritantes”
Aprico adj. LF Soalheiro <2> [6:22] “O bom ar he (...)  puro, aprico, claro, tenue”
Cervicoso adj.   DV Pertinaz <1> [13:22] “Alguns males (...) se façaõ cervicosos, & rebeldes.
Impinguar v. LF Engordar <3> [73:7] “Humidade nutriente, com que impinguão, & e nutrem”
Incoctível adj. LF Indigesto <4> [188:10] “As carnes dos animaes velhos saõ (...) incoctiveys”
Ocurso s.m.  LF Presença <1> [398:26] “Póde succeder que se offenda cõ o occurso da agoa”
Pelúcido adj. LF Transparente <1> [395:4] “A agoa (...) há de ser de fonte pura, clara, limpa, pellucida.
Ponta s.f. LF Chifre <6> [102:20] “A cinza das pontas de vaca”
Rezerar /
Reserar v.
DV
Abrir <1> [315:9] “Tem virtude aperitiva, & diuretica, com que rezerão as obstrucçoens”
Uligem s.f. S.reg. Umidade <1> [7:2] “O bom ar he (...) livre de uligens, & vapores”
 

V. Sem correspondente atual.
Verbete Dic. Acepção atual <ocorrência> [página:linha] Abonação
Dureiro adj LF Que tem prisão de ventre. <1> [324:7] “Saõ único remedio dos hipochondriacos, & dureyros”
Furfuração s.f. LF Produção de caspa na cabeça. <1> [102:2] “Tira toda a caspa, & furfuração da cabeça”
Mulcebre adj.  RB Bluteau registra um latinismo: Mulcíber: um dos nomes do deus Vulcano, o fogo.  <1> [118:14] “Gera-se (...) hum sangue mulcebre, temperado, muy semelhante ao nosso”
Oporo adj.  S.reg. Latim Opori?nus: relativo a outono <1> [303:9] “A outro chamão oporos, & autumnaes; & saõ os que madurão em setembro”

4. Conclusão
 Como foi dito, em virtude da finalidade desta comunicação, houve necessidade de se fazer uma seleção entre os vocábulos não registrados no Aurélio, no entanto há que se destacar cinco vocábulos de expressiva ocorrência em  Anchora Medicinal que, apesar de estarem no Aurélio, não são freqüentes no português contemporâneo brasileiro, pelo menos na escrita e na oralidade urbana. Trata-se do verbo alimpar (catorze ocorrências) e dos substantivos embigo (quatro ocorrências), ourina (seis ocorrências), rezão (uma ocorrência) e bofe ( cinco ocorrências), ressaltando que as formas umbigo, urina, razão e pulmão, hoje, correntes, não aparecem uma única vez, sequer, no texto-base. Já a forma limpar, com duas ocorrências co-ocorre com alimpar, que, em virtude do seu número ocorrência (catorze), provavelmente era a mais comum à época.
 Estas cinco formas, ainda hoje, podem ser encontradas na fala do brasileiro interiorano com características socioculturais já mencionadas acima. De novo este fato argumenta em favor da atitude de se usar Anchora Medicinal como uma das fontes de consulta, e um dos paradigmas, na análise das gravações que serão feitas para o projeto “Filologia Bandeirante”, porque, das coletas já feitas na Baixada Cuiabana, vocábulos como alimpar, embigo e rezão, freqüentemente co-correm com sua forma, hoje, mais usual: limpar, umbigo e razão.
Por isto, termina-se este trabalho, observando, mais uma vez, que muitos vocábulos e, até, sintagmas, largamente recorrentes em Anchora, e que atualmente são considerados fora de uso, são freqüentes no português brasileiro, principalmente o do meio rural, sem descartar por completo o do meio urbano, confirmando-se o que hoje, em Portugal, pela fala de seus acadêmicos, é considerado mito: a conservação de traços de um português antigo no Brasil.

5. Bibliografia consultada e citada
AULETE, Francisco Júlio Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 3ª
edição, 1948.
BLUTEAU, Pe. Raphael. Vocabulário Português-Latino. 1712-1728.
COHEN,   Maria  A.  Amarante  de  Mendonça  et  alii.  Filologia  Bandeirante. In:
Filologia e Lingüística Portuguesa, n.º 1, S.Paulo, FFLCH/USP, 1997.
CUNHA,  Antônio Geraldo da. Índice analítico do vocabulário dos sonetos da 1ª edição
(1595) das Rhythmas de Camões. Rio de Janeiro, Lucena, 1995.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª
edição, 1986.
FREIRE, Laudelino. Grande e novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, 1922.
HENRIQUEZ, Dr. Francisco da Fonseca. Anchora Medicinal - para conservar a  vida  com saude. Lisboa Occidental, Officina da Musica, 1721.
HUBER, Joseph. Gramática do Português Antigo. Lisboa, Calouste Gulbenkian,
1933.
NUNES, Dr. José  Joaquim. Crestomatia Arcaica. 3ª edição, Lisboa, Clássica, 1943.
SILVA, Antônio Morais. Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª edição, 1813.
VIEIRA, Frei Domingos. Grande Dicionário Português  ou Tesouro da Língua
Portuguesa. 1871-1874.