FORMAS ANALÓGICAS NA CONJUGAÇÃO VERBAL DO RETO-ROMÂNICO

Mário Eduardo VIARO (USP)

0. Funções da analogia
A compreensão das etapas diacrônicas das línguas românicas a partir do fenômeno conhecido como analogia é de suma importância, pois, por meio dela, se explicam muitas mudanças que não seriam facilmente resolvidas pelas regras fonéticas. No entanto, às vezes ela é utilizada como expediente ad hoc para tudo aquilo que não se consegue explicar por meio das mudanças fonéticas regulares e esse uso indevido se deve ao fato de ela poder atuar sobre as palavras de várias maneiras. Em primeiro lugar, a analogia pode ter uma função regularizadora, como, por exemplo, no hiperbibasmo que sofre o latim erámus > cast. e port. éramos, por causa das outras pessoas, que têm o acento tônico sobre o radical. Em segundo lugar, observam-se casos de adaptação de palavras de aspecto mais raro para o paradigma predominante. Por exemplo: asterisco torna-se na fala popular “asterístico”, por influência do conjunto de palavras terminadas em -ístico, muito maior do que o em -isco. Finalmente, a palavra é totalmenre refeita, seg, como no caso do jogo francês marelle, que se torna marela, no port. do Brasil e daí, *amarela > amarelinha ou da planta importada com o nome quimbundo rimiriangombe (literalmente “língua de vaca”) , que se tornou mariangombe e, por fim, maria-gomes. Resumindo, a analogia transforma o assimétrico em simétrico ou incumbe-se de classificar o novo pelos paradigmas velhos.

1. Analogia nos verbos românicos
Nenhuma classe morfológica nas línguas românicas está imune da atuação da analogia, mas uma delas, os verbos, apresenta-se muito mais suscetível. Os verbos, por terem várias formas herdadas e acumularem morfemas, que se desgastam pelas regras fonéticas, estão mais predispostos a irregularidades no nível sincrônico. Assim, no latim, não há sinais de irregularidades em muitos paradigmas, como no caso do verbo dormio, todavia o mesmo verbo dormir no português, do ponto de vista sincrônico e estruturalista, teria de dois a três alomorfes, durm, dôrm com ô fechado e dórm com ó aberto. O português dispõe de várias regras fonéticas diacrônicas que explicam essas alternâncias vocálicas. Assim, a vogal ou semivogal -i pode atuar metafonicamente na vogal do radical ou palatalizar a consoante anterior. Ao lado de durmo encontra-se dormho, no português antigo, no qual h era mera indicação gráfica de palatalização (cf. nh, lh). A palatalização sobre a consoante ou a metafonia sobre a vogal do radical criaram formas duplas, como no verbo sentir, que tinha senço ao lado de sinto. Outros pares eram menço/ minto; meço/ mido; peço/ pido. A diferença, possivelmente dialetal, impôs-se irregularmente na norma culta, que preferiu a forma metafônica minto, mas a palatalizada meço. Em outras, ainda, houve reformulação analógica da primeira pessoa do singular: a forma regular bengo < lat. benedico perdeu terreno para benzo, importando o -z- das outras pessoas, o que não aconteceu com digo/ dizo. A analogia podia percorrer todo o paradigma, como o radical curr- , que aparece também nas terceiras pessoas de formas antigas: curre, currem, assim como time, fuge, destrui em vez dos modernos corre, teme, foge, destrói. Muitas vezes, por meio da analogia, formam-se grupos inexistentes numa etapa sincrônica anterior, assim, o -ç- de meço, peço influíram na vitória das formas ouço e faço, embora perço tenha sido substituída pela forma perco, de difícil explicação e arço, que passou para a forma regular ardo. No catalão o morfema -c para a primeira pessoa generalizou-se em muitos verbos no presente a partir de verbos como dic “digo”. Também no lugar da palatal do português e do -g- do castelhano há um -c no catalão: caio/ caigo/ caic; tenho/ tengo/ tinc; venho/ vengo/ vinc; valho/ valgo/ valc, o que reforçou essa desinência de primeira pessoa do singular em verbos cuja etimologia não a justificaria: aprenc “aprendo”, bec “eu bebo”, conec “eu conheço”, coc “cozinho”, crec “creio”, escric “escrevo”, estic “estou”, sóc “sou, moc “movo”, puc “posso”, ric “rio”, resolc “resolvo”, visc “vivo”. Paralelamente nessa mesma língua encontra-se o morfema-zero em: he “tenho”, sé “sei”, vull “quero”, o -o: cabo “caibo”, corro “corro”, creixo “cresço”, cuso “costuro”, fujo “fujo”, neixo “nasço”, ixo “saio”, obro “abro”, rebo “recebo”, reeïxo “consigo”, surto “saio”, venço “venço” e o final de radical -ig: vaig “vou”, faig “faço”, haig “tenho”, veig “vejo”.
Esse conflito entre formas herdadas e analógicas, parece bem resolvido no romeno. Nessa língua, o papel da analogia é fortíssimo. Algumas regras fonéticas são sempre respeitadas. Por motivos gráficos usam-se aqui as letras ã, š e ts no lugar dos caracteres convenientes. Assim, um -i desinencial pode alterar muito a fonética da consoante, d+i> /zi/; t+i > /tsi/; c+i>ci /tši/; g+i>gi /dz’i/ , sc+i>/šti/; sc+e>/šte/. Interessante observar o valor pancrônico dessas palatalizações, pois valem tanto diacronicamente: lat. dies > rom. zi, como sincronicamente, cred “eu creio”, mas crezi “tu crês” ou palid “pálido” e palizi “pálidos”. Outras regras estão relacionadas com a ditongação do radical. Assim um /o/ tônico seguido de e ou de ã torna-se /oa/, exemplo: dorm “eu durmo”, doarme “ele dorme”, sã doarmã “que ele durma”. Idem o /e/ seguido de ã, torna-se /ea/, mas não seguido de e: merg “eu vou”, merge “ele vai”, sã meargã “que ele vá”. Assim, o plural de ceascã “xícara” parece, à primeira vista, irregular: cešti, mas ambos se filiam a um único radical /cesc/, que sofre modificações distintas com o acréscimo de -ã e de -i. Diacronicamente vê-se lat. mensam > *measa > masã “mesa”, já o plural mensae > mese, sem alteração metafônica, embora /e/ também se ditongue em /ea/ quando seguido de /e/ em dialetos e no romeno antigo, como atesta algumas formas da língua padrão, como sex > šase e septem > šapte. Acrescente-se uma última regra fonética, a saber o > u quando há deslocamento acentual do radical para a desinência.
Tendo em mãos essas regras, é possível analisar o verbo “poder” no português e no romeno
Em português pósso, pódes, póde, podêmos, podêis, pódem (os acentos apenas marcam a tônica e a qualidade vocálica) continua as formas do latim vulgar póssum, pótes, *pótet, *potémus, *potétis, *pótent, que conviviam ao lado do clássico póssum, pótes, pótest, póssumus, potéstis, póssunt, derivado, como se sabe, de pot+sum. O infinitivo posse, no latim vulgar fora refeito, pela analogia, para *potére, donde italiano potere, logodurês podere, friulano podé, engadino pudair, francês antigo pooir, romeno putea. No romeno, o radical /pot/ muda para put, quando há o deslocamento acentual para a desinência no infinitivo puteá e nas formas arrizotônicas do presente e pot, que se torna poat, pots dependendo do contexto fônico: pót, pótsi, poáte, putém, putétsi, pót. Esse alomorfismo, porém, é totalmente previsível e regular em romeno, estando, portanto, em região limítrofe à da atuação analógica. Verifica-se, além disso, a atuação da analogia, ao igualarem-se  a terceira pessoa do plural à primeira do singular nos verbos da segunda, terceira e quarta conjugações romenas: pot “eu posso, eles podem”. Até mesmo o verbo a fi “ser, estar, haver” não está livre dessa regra analógica: sunt “eu sou, eles são”. Na primeira conjugação e em alguns verbos da quarta em -î, a terceira do singular e do plural são iguais e estas se opõem à primeira do singular: cânt “eu canto”, cântã “ele canta, eles cantam”, idem no presente do subjuntivo de todas as conjugações: sã pot “que eu possa”, sã poatã “que ele possa, que eles possam”. No romeno, as regras analógicas ainda atuam fortemente na formação dos tempos do perfeito a partir da raiz do particípio perfeito: mérs “ido”, mérsei “fui”, mérsesem “eu fora”; putút “podido”, putúi “pude”, putúsem “eu pudera”; fãcút “feito”, fãcúi “fiz”, fãcúsem “eu fizera”; bãút “bebido”, bãúi “bebi”, bãúsem “eu bebera”.
A vitalidade dessa tendência regularizadora da analogia é tal, que dialetalmente, cria-se em romeno a forma esc “eu sou, eles são”, numa tentativa de regularizar a forma sunt “eu sou”, ešti “tu és”, como vorbesc “eu falo”, vorbešti “tu falas”.
Em português, uma regra analógica herdada do latim ainda se entrevê na relação entre radicais do perfeito: fizeram, fizesse, fizer; souberam, soubesse, souber etc. Nesse caso, a analogia é garantida pela semelhança semântica entre esses tempos, que é demonstrável diacronicamente. No português falado do Brasil, no entanto, produziu-se também uma curiosa relação analógica, totalmente desligada da semântica e apenas voltada para a regularização. Trata-se da confusão que há, nos verbos da terceira conjugação, entre a primeira do singular do pretérito perfeito e com o infinitivo, que sistematicamente perde o fonema /r/ final: dormi - dormir, assisti - assistir. Tal paralelismo é rompido, na variante culta, pelo par vim - vir, mas a língua popular mostra em frases como eu não pude vim, que a forma vim se impôs sobre vir. Mesmo que se alegue que o infinitivo popular vim é um arcaismo e mantém a nasal do latim venir, assim como no português arcaico, não é possível negar que o paralelismo exista. Em alguns momentos, a analogia parece não estar do lado da maioria regular, mas de um pequeno grupo em crescimento, assim, o particípio curto pego em vez de pegado e, em Portugal, fixe em vez de fixado garantem a produtividade da classe de oposições entre particípios curtos e longos.
A analogia, como tudo em uma língua, tem raízes herdadas. Entretanto, ao reagrupar-se de maneira própria no sistema de cada língua, empresta-lhe características próprias, assim como as mudanças fonéticas que a norteiam.

3. Analogia no reto-românico
3.1. Segunda e terceira do singular e terceira do plural
Para o estudo das formas verbais do reto-românico, esse preâmbulo explicativo se mostra imprescindível. Valendo-se do mesmo verbo *potére, observa-se que as formas do sobresselvano são pós, pós, pó, pudéin, pudéis, pón, que correspondem em larga medida às formas do latim vulgar. O sobresselvano, como se pode perceber, tem a mesma mudança o > u do romeno no caso das arrizotônicas e em outros deslocamentos de acento (infinitivo pudér). Chama a atenção a forma da terceira do plural pon, na qual atuou alguma força analógica. A terceira do singular no sobresselvano só se diferencia do plural pela ausência deste -n que remonta ao -nt latino. Uma variante -an aparece quando o radical termina em consoante. Na verdade, em sobresselvano, a analogia entre as pessoas é maior, pois agrupa a segunda pessoa do singular, a terceira do singular e a terceira do plural, que se distinguem pelos seguintes morfemas: -s/ morfema-zero/ -(a)n. Com o verbo esser “ser”: eis “tu és”, ei “ele é”, ein “eles são”. Identicamente se percebe o mesmo jogo analógico com os verbos regulares e irregulares: haver “ter” se conjuga has, ha, han; para vegnir “vir”: vegns, vegn, vegnan; crer “crer”: creis, crei, crein; cuer “cozer”: cois, coi, coin; dir “dizer”, dis, di, din; far “fazer”: fas, fa, fan; fugir “fugir”: fuis, fui, fuin; ir “ir”: vas, va, van; saver “saber”: sas, sa, san; schar “deixar: lais, lai, lain; stuer “dever”: stos, sto, ston. Além do presente do indicativo, todos os outros tempos mostram a mesma tendência e pouquíssimos verbos não se adaptam perfeitamente a esse sistema analógico, como dar “dar”: das, dat, dattan; star “morar”: stas, stat, stattan e vuler “querer”: vul, vul, vulan. Nessas exceções observa-se, porém, que as terceiras pessoas continuam seguindo a regra de mútua dependência, como exposta acima. A situação com o subselvano é idêntica. À guisa de exemplo, citem-se o verbo ver “ter”: âs, â, ân; o verbo easser “ser”: es, e, en; ir “ir”: vas, va, van; puder “poder”: pos, po, pon. Também as exceções são iguais: dar “dar”: das, dat, datan; star “morar”: stas, stat, statan. Curiosamente o verbo ler “querer” se encaixa nesse subgrupo com um -t analógico nas terceiras pessoas: vol, vut, vutan e não se isola, como no sobresselvano, numa conjugação à parte. O sobremirano vai ainda mais longe: o mesmo verbo leir adquire a forma vot, vot, vottan, o que mostra que, nesse grupo românico, a segunda pessoa do singular sempre se vincula posteriormente, pela analogia, à forma da terceira do singular. São, por conseguinte, essas exceções que nos indicam de onde partiu a analogia: primeiramente entre as terceiras pessoas e, por último, para a segunda do singular.
Nas variantes do reto-românico conhecidas pelo nome genérico de engadino, a mesma regra entre as três pessoas é flagrada, quer em puter, quer em valáder, porém, as desinências adquirem o seguinte aspecto: -ast, -a, -an. Não se verifica a analogia em alguns verbos irregulares: o verbo avair se conjuga analogicamente no valáder: hast, ha, han, já no puter prevalecem as formas irregulares: hest, ho, haun. Essa interessante irregularidade não está, porém, isolando esse verbo, mas, pelo contrário, ele é apenas um de um paradigma analógico paralelo, de alternância vocálica tripla  e/ o / au, a que se afiliam também fer “fazer”: fest, fo, faun; der “dar”: dest, do, daun; ir “ir”: vest, vo, vaun;  savair  “saber”: sest, so, saun; ster  “morar”: stest, sto, staun, mas não pudair “poder”: poust, po, paun. Com o verbo esser “ser, estar” as formas herdadas aparecem tanto em valáder como em puter: est, ais, sunt (paralelamente a ais, encontra-se também eis  em valáder e es em puter).
A antiguidade dessa tendência analógica das três pessoas pode ser provada fora do território suíço, por exemplo, no ladino de Gherdëina, que tem as terceiras pessoas idênticas, mas não a segunda do singular: no verbo vester “ser” diz-se ies, ie, ie; avëi “ter”: es, à, à; unì “vir”, vënies, vën, vën; jì “ir”: ves, va, va; savëi “saber”: ses, sà, sà; pudëi “poder”: posses, po, po (ao lado da variante posses, possa, possa). Algo parecido ocorre no sobremirano. Apesar de a analogia estabelecida entre as desinências equivaler à do puter e do valáder, isto é, -(a)st, -(a), -(a)n, por exemplo, com pudeir “poder”: post, po, pon, encontra-se um estágio mais antigo nos verbos irregulares, em que a segunda do singular não participa da analogia entre as terceiras pessoas, assim, citem-se: esser “ser, estar”: ist, è, èn e o verbo aveir “ter”, ast, ò, on. Também esse último verbo participa de um paradigma de alternância a / ò, em que se agrupam quase todos os verbos citados acima para o puter: far “fazer”: fast, fo, fon; eir “ir”: vast, vo, von;  saveir “saber”: sast, so, son. Analisando essas variantes conclui-se que o puter não representa uma forma mais antiga, devido à sua rica alternância vocálica, mas que a distinção tripla saiu de uma dupla como no sobremirano e só posteriormente o > au seguido de nasal.

3.2. Segunda e terceira do plural
Em todas as línguas românicas, as formas arrizotônicas, a saber, a primeira e a segunda do plural formam um subconjunto analógico dentro do presente do indicativo, destacando-se, seja pela sua melhor conservação do radical, seja, ainda, por alterações devidas ao deslocamento acentual, seja por não aceitar o incremento. Casos de conservação se vêem com freqüência no ladino dolomítico, assim, o verbo savëi “saber” conjuga-se sé, ses, sà, savon, savëi, sà. Também no romeno há maior conservação, nessas pessoas, em alguns verbos irregulares, como luãm, luátsi, segunda e terceira do plural do verbo a luá “tomar”, mas não nas outras pessoas: iau “eu tomo”, iei “tu tomas”.
O deslocamento acentual tem efeito irregularizante acentuado nas línguas românicas, sobretudo no reto-românico. Em sobresselvano e em valáder, ocorre com freqüência a aférese, deixando dessa, assim, a raiz verbal bem pouco reconhecível. Por exemplo, o verbo aváir “ter” se conjuga em valáder: n’ha, hast, ha, vain, vais, han. Em sobresselvano convivem a forma integral havéin “nós temos” e a forma com aférese vein e na segunda do plural, usa-se havéis ou véis. O verbo laschar (ou schar) “deixar”, em sobresselvano se conjuga: láschel, lais, lai, schein, scheis, lain. Em valáder, o verbo gnir (do lat. venire), “vir”, se conjuga: vegn, vainst, vain, gnin, gnivat, vegnan. A mesma tendência se vê no friulano, cujo verbo vê “ter” se conjuga ài, às, à, vin, véis, jan no presente do indicativo e em muitos outros tempos, como o pretérito imperfeito: vèvi, vèves, etc.

3.3. Desinências reto-românicas de primeira e segunda pessoas do singular
Um outro exemplo de atuação da analogia na conjugação verbal do reto-românico é o -el, de origem obscura, que aparece como morfema de primeira pessoa do singular do sobresselvano, assim fímel “eu fumo”, díermel “eu durmo”, érel “eu era”, salidável “eu saudava”, mas não em muitos verbos irregulares nem no subjuntivo: parti “que eu parta”, gratuléschi “que eu felicite”, salidáss “se eu saudasse”. Em valáder, o morfema de segunda pessoa do singular -st, derivado ou diretamente do alemão ou de uma metanálise de -s com o t- do pronome tü, quando posposto, generalizou-se para todos os tempos: póust “tu podes”, gratuléschast “tu felicitas”, ést “tu és”, durmívast “tu dormias”. Igualmente em italiano -o se torna a primeira pessoa do singular em tempos cujo morfema latino era um -m, como: cantavo “eu cantava”, por exemplo.
No reto-românico, o radical da primeira pessoa figura como o mais autônomo, sofrendo menos atuações da analogia. De fato a primeira pessoa é quem dita, na variante dolomítica de Gherdëina, a forma da segunda do singular, diferenciando-se aquela pelo morfema-zero e esta pela desinência -s. Assim, o verbo dé “dar”se conjuga dé, des, dà, dajon, dajëis, dà; o verbo sté “morar”: ste, stes, stà, stajon, stajëis, stà e o já citado verbo pudëi: posse, posses, po, pudon, pudëis, po.

3.4 O sufixo incoativo latino-esc- como incremento
O chamado incremento é um componente da conjugação de várias línguas românicas, sem uma função definida sincronicamente, a não ser a do deslocamento acentual. O romeno possui dois, até hoje muito produtivos, o incremento -ez, de origem grega, para a primeira conjugação: a lucrá “trabalhar”: lucréz, lucrézi, lucreázã, lucrãm, lucrátsi, lucreázã, e o incremento -ésc (ou, em alguns casos, -ãsc) para a quarta: a socotí “contar”, socotésc “eu conto, eles contam”. Incluindo as pessoas arrizotônicas e aplicando as regras fonéticas, conjuga-se o verbo a vorbí “falar”, como vorbésc, vorbéšti, vorbéšte, vorbím, vorbítsi, vorbésc. Em sobresselvano o mesmo incremento -esc- aparece, nas mesmas circunstâncias, em muitos verbos, tanto da primeira como da quarta conjugações, como gratulár “felicitar”: gratuléschel, gratuléschas, gratuléscha, gratuléin, gratuléis, gratuléschan ou finir “terminar”: finéschel, finéschas, finéscha, finín, finís, finéschan. Da mesma forma, realiza-se como -eix- em catalão, -iss- em francês, -isc- em italiano, com produtividade diferente de língua para língua. O catalão usa, apenas na terceira conjugação (verbos em -ir) o incremento nas mesmas pessoas do romeno e do sobresselvano, como em servir “servir”, que é conjugado serveix, serveixes, serveix, servim, serviu, serveixen. O mesmo vale para o italiano: o presente do indicativo de finire “terminar” é finisco, finisci, finisce, finiamo, finite, finiscono. No francês, a função de deslocar a acentuação perde o sentido, uma vez que o acento tônico carece de função fonológica e assume uma posição fixa. Isso explicaria a inclusão do incremento também nas pessoas tradicionalmente arrizotônicas e sua infiltração não só no presente do subjuntivo e imperativo, como acontece com todas as outras línguas, mas também no imperfeito do indicativo e do subjuntivo. Assim, o mesmo finir no presente do indicativo seria: finis, finis, finit, finissons, finissez, finissent; no imperfeito do indicativo finissais, finissais, finissait, finissions, finissiez, finissaient. Em sardo, português e castelhano, o incoativo latino -isc- mantém parte de sua semântica antiga e não se transforma em incremento.

4. O Rumantsch Grischun
Recentemente, a organização suíça Lia Rumantscha, preocupada com a possível extinção das línguas reto-românicas, tem somado esforços no sentido de confeccionar uma variante supra-regional, artificial, voltada principalmente para a língua escrita, chamada Rumantsch Grischun, que já está praticamente pronta. Na confecção do Rumantsch Grischun, apenas uma parte desse panorama criado pela analogia foi levada em conta. Assim, a forma -el, da primeira pessoa do singular, característica do sobresselvano, foi substituída pelo morfema-zero, exceto em alguns casos, como em radicais terminados em -g, -z, -pr, -pl, -fl, assim: mángel “eu como”, engráziel “agradeço”, cúmprel “eu compro”. Nos outros tempos, -el simplesmente foi eliminado: purtáva “eu, ele trazia”.
Os verbos que recebem ou não o incremento -esch- não se circunscrevem em qualquer regra, como nas variantes.
Quanto às mudanças fonéticas provocadas pelo deslocamento do acento nas formas arrizotônicas, o Rumantsch Grischun se mostra mais sistematizado, se comparado com as complicadas e irregulares alternâncias vocálicas que aparecem nas variantes: pórta “ele leva”, purtáin “nós levamos”; mórda “ele morde”, murdáin “nós mordemos”; táidla “ele ouve”, tadláin “nós ouvimos”; clóma “ele chama”, clamáin “eles chamam”; láuda “ele louva”, ludáin “nós louvamos”etc. Igualmente as formas arrizotônicas inteiras foram preferidas às aferéticas: aváin “nós temos”, aváis “vós tendes”, com exceção do verbo vuláir “querer”, cuja primeira e segunda do plural são láin, láis ao lado de vuláin, vuláis e também no condicional léss está ao lado de vuléss. Há paralelismo entre segunda do singular, terceira do singular e terceira do plural. Respeita-se, portanto, o jogo analógico s / morfema-zero / n mencionado acima:  dis “tu dizes”, di “ele diz”, din “eles dizem” inclusive com exceções: dar “dar”: das, dat, dattan e star “morar”: stas, stat, stattan. Curiosamente, consuma-se a criação de um -s analógico para a segunda pessoa do singular do verbo vulair “querer”: vuls, vul, vulan, o que não ocorre em nenhuma das variantes suíças: sobresselvano vul, vul, vulan; subselvano vol, vut, vuttan; sobremirano vot, vot, vottan; valáder voust, voul, voulan; puter voust, voul, vöglian. No entanto, um-s pode ser encontrado na variante dolomítica de Gherdëina que conjuga o verbo ulëi “querer”assim: ue, ues, uel, ulon, ulëis, uel.
Uma vez que foi respeitada grande parte das tendências analógicas, o Rumantsch Grischun tem grandes chances de se impor como língua de utilização escrita, ao lado das variantes regionais suíças, ameaçadas de extinção a curto prazo. À guisa de uma conclusão, dir-se-á que agrupamentos analógicos caracterizam também grupos de línguas românicas e a análise do fenômeno da analogia pode ser um expediente útil para o reagrupamento e para a datação de fenômenos dentro do conjunto convencionalmente conhecido como Reto-românico. Conscientizar-se dessas derivas lingüísticas é essencial para a criação de um código supradialetal de comunicação. Parte do sucesso do Rumantsch Grischun, face a outras propostas, como a de adotar uma das variantes como língua-padrão, deve-se a um dos princípios utilizado na sua confecção, a saber, o de utilizar a tendência da maioria das formas dialetais. Dessa forma, as derivas características da língua são respeitadas e os traços muito marcados dos regionalismos são apagados. Trata-se, portanto, do mesmo processo que deu origem a muitas línguas nacionais, conhecido na literatura sociolingüística pelo nome de koiné.

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