UMA HISTÓRIA BÉLICA (E BELA): IMPASSES NA DOUTRINA NEOGRAMÁTICA

Carlos Alexandre V. Gonçalves (UFRJ)

0. Preliminares
Inspirado pelas idéias de Scherer (1868 apud Culler, 1975) sobre a atuação de princípios fixos na mudança sonora, surge, no cenário histórico da Ciência da Linguagem, o Movimento Neogramático. Consolidando uma teoria posteriormente adotada como método de investigação das Lingüísticas Comparativista e Histórica, os membros da Escola de Leipzig formularam a Tese Neogramática (doravante TN) sobre evolução fonética, segundo qual toda mudança sonora, na medida em que ocorre mecanicamente, realiza-se de acordo com leis que não reconhecem exceções.
Revisitando o Movimento Neogramático, o presente artigo pretende descrever a trajetória dos impasses por que passou a doutrina na História da Lingüística. Mais especificamente, procuro apresentar e discutir os princípios básicos da TN ? (a) o da regularidade e (b) o da analogia ?, buscando mostrar as várias críticas feitas ao movimento: (a) as de Saussure, (b) as de Schuchardt e, por fim, (c) as da Geografia Lingüística (especialmente as de Ascoli).
Como a TN resistiu ao tempo, à história e às críticas, procuro centrar minha atenção numa polêmica, iniciada por Labov (1981), atualmente em curso na Sociolingüística Variacionista: a mudança sonora é foneticamente gradual e lexicalmente abrupta ou foneticamente abrupta e lexicalmente gradual? Dessa maneira, objetivo discutir com mais vagar o que se convencionou chamar de “a controvérsia neogramática” (cf., entre outros, Wang, 1969; Cheng & Chen, 1971; e Oliveira, 1992), apresentando o que se pode denominar de “mais forte rival” do modelo neogramático: a Teoria da Difusão Lexical (cf. Wang, 1990).
O principal propósito do texto é o de, a partir da análise de fenômenos de variação e câmbio lingüísticos na língua portuguesa no Brasil (cf. Mattos Lima, 1992; Gonçalves, 1993; e Mollica, 1996), mostrar em que aspectos as doutrinas neogramática e léxico-difusionista entram em choque. Com isso, pretendo concluir que os modelos na verdade se complementam, haja vista que podem igualmente dar conta dos dados.

1. Escola neogramática: movimento lingüístico ou partido político?
A necessidade de trazer para os estudos lingüísticos uma regularidade absoluta na aceitação de correspondências de palavras de diferentes línguas foi o ponto de partida para a criação do Manifesto Neogramático, proposto por um grupo de lingüistas da Escola de Leipzig, nas últimas décadas do século XIX. Inaugurando uma teoria posteriormente adotada (com emendas e rasuras) como método de investigação da Lingüísticas Comparatista e Histórica, os Yunggrammatiker formularam a Hipótese Neogramática sobre mudanças sonoras, amparada no conceito de leis fonéticas, que defenderam como base fundamental de seu projeto lingüístico-partidário.
Os neogramáticos advogavam que as leis fonéticas eram operadas sem exceção, isto é, dentro de certos limites geográficos, uma mudança de um som para outro, em determinada língua, atingiria uniformemente todo o léxico que contivesse esse mesmo som, em iguais condições fonéticas. Por isso, diziam que as mudanças eram foneticamente graduais e lexicalmente abruptas. Já no prólogo de seu Manifesto, Osthoff & Brugmann (1969)  hasteavam a bandeira de sua escola às práticas lingüístico-históricas vigentes. Nas bases de seu Movimento ? o Yunggrammatische Richtung  ? afirmam (cf. p. 07) que toda mudança sonora, na medida em que ocorre mecanicamente, realiza-se de acordo com leis que não admitem exceções. Isto é, a direção da mudança é sempre a mesma para todos os membros da comunidade lingüística.
O movimento dos neogramáticos, um tanto folhetinesco, protesta, no cenário lingüístico da época, contra os métodos de reconstrução em vigor, mostrando que desde o aparecimento da obra de Scherer a fisionomia da Lingüística Comparatista alterou-se consideravelmente. Uma nova metodologia de pesquisa foi então instituída e ? como verdadeiro partido político ? está recebendo novas adesões. Essa nova metodologia difere consideravelmente da executada pelos comparativistas do primeiro quartel do século (cf. Osthoff & Brugmann, op. cit.: 12). Mais adiante, concluem: a velha lingüística abordou seu objeto sem haver inicialmente estabelecido como a fala humana realmente vive e se desenvolve (cf. p. 13).

2. Em campo, o New e o Old
Ainda no prólogo de seu Manifesto, os “jovens” gramáticos combatem a “velha” Lingüística Comparatista, pois, ao afirmarem que o mecanismo da fala tem aspectos mentais e físicos (p. 15) e que chegar a um entendimento claro de sua atividade é, portanto, meta da Lingüistica (p. 16), atuam no sentido de reclamar às teorias vigentes a operação de fatores psicológicos na mudança sonora. A “velha” Lingüística, segundo os neogramáticos, restringiu-se ao aspecto físico da fala, esquecendo-se de que fatores psicológicos têm atuado (e atuam) em inúmeras mudanças e inovações fonológicas (cf. Tarallo, 1990: 48).
Numa época em que a Lingüística estava preocupada em descobrir parentescos entre línguas e dialetos, os “novos” gramáticos travam verdadeira “guerra” contra os “velhos” modelos comparatistas, pois, como mostra Tarallo (1990: 45), a língua do papel pode comprometer seriamente os resultados da análise projetada. Dessa maneira, os membros da Escola de Leipzig combatem a metodologia de pesquisa baseada nos documentos escritos, advogando que estágios mais recentes das novas línguas são de importância bem maior à metodologia da Lingüística Comparatista (cf. Osthoff & Brugmann, op. cit.: 12). Com isso, os neogramáticos concebem os estudos científicos da linguagem como de natureza exclusivamente histórica, restringindo-se, pois, à criação de uma teoria geral acerca da mudança.

3. Regularidades levadas às últimas conseqüências: analogia e empréstimo
A chave da doutrina neogramática, como mencionei acima, está nas leis fonéticas, que operam, segundo propõem, cegamente. Por essa razão, concebem a evolução fonética como resultante da atuação mecânica de forças físicas e psíquicas. O radicalismo da TN pressupõe ação imediata das leis fonéticas nas formas da língua. Com isso, todos os itens léxicos que contêm o som em mudança são afetados simultânea e uniformemente.
Para explicar os casos de não-atuação da mudança, os neogramáticos admitiam que as leis fonéticas, como as físicas, só reconheciam exceções quando não eram anulados por outra lei ou por fatores que exercessem ação reguladora/normativizadora no sistema. Dessa maneira, os casos desviantes passam a ser explicados por analogia ou por empréstimo. Não fossem esses mecanismos, os fenômenos de mudança seriam totalmente regulares.
Emprestando dos gregos o conceito de analogia, os neogramáticos utilizaram esse expediente para dar conta das anomalias (ou resíduos) causadas pelas mudanças sonoras. Para eles, a analogia atua como uma espécie de “regularidade proporcional”, nas palavras de Osthoff & Brugmann (1969), tornando “normais” paradigmas tidos por “anormais”. Escudo protetor das críticas dirigidas à TN, a analogia funciona como condicionamento estrutural (fonológico, na preferência dos neogramáticos) que opera no sentido de inibir ou de subverter o efeito das mudanças sonoras.
Outro recurso adotado como normativizador das irregularidades de determinadas mudanças foi o empréstimo. Para os Yunggrammatiker, vocábulos tomados de empréstimo de outras línguas não sofrem ação da mudança, preservando, pois, a forma antiga. Portanto, para os adeptos da TN, como, entre outros, Herman Paul e Walkernagel, os empréstimos são capazes de interferir no desenvolvimento natural dos sons da fala, contrariando a esmagadora força das leis fonéticas.
Nas próximas seções, pretendo discutir se a existência de empréstimos realmente atua como agente refreador de fenômenos fonológicos investigados no português do Brasil. Vale salientar que o princípio da regularidade neogramática, amparado nos conceitos de analogia e de empréstimo, vincula-se essencialmente à fonologia e, quando muito, à gramática (morfologia, sintaxe e semântica), deixando o componente social para segundo plano. Em resumo, o ideário neogramático pode ser esquematizado da seguinte maneira:

  /A/   /B/
       regularmente (com condicionamentos fonéticos)

analogia e/ou
empréstimo

  /A/

Figura (01): O ideário neogrmático sobre mudança sonora.

4. O lugar da TN
Apesar das muitas oposições documentadas na literatura, os neogramáticos souberam espalhar sua doutrina e, naquela época, mostra Mattoso Camara Jr. (1975: 76), podemos até falar de uma abordagem neogramática em Lingüística como uma corrente dominante entre os lingüistas. Os neogramáticos tiveram o mérito de aliar uma perspectiva histórico-científica da linguagem aos resultados do método histórico-comparatista então vigente. Seus princípios inauguraram, dessa maneira, uma nova visão aos estudos indo-europeístas, pois aplicaram seus achados a muitos ramos dessa proto-língua, (a) encadeando os fatos históricos numa ordem natural e (b) confirmando ou infirmando determinadas correspondências entre idiomas aparentados.
O próprio Saussure (1959: 55) reconheceu os méritos da Escola de Leipzig, pois afirma que foi só por volta de 1870 que os lingüistas começaram a lançar os fundamentos de um estudo adequado da linguagem. Mais adiante (cf. p. 56), admite que com os neogramáticos resultados do estudo comparativo foram postos em seqüência histórica. Além disso, os “jovens” estudiosos da linguagem foram os primeiros a criar procedimentos rígidos e científicos à restruturação lingüística. A TN trouxe, com todos os méritos, princípios mais rigorosos e menos impressionísticos ao fazer lingüístico, fincando bases mais sólidas para a posterior consolidação da Lingüística como ciência.

5. Impasses na TN
O Movimento Neogramático teve, desde sempre, caráter polêmico. O radicalismo com que encaravam os fatos lingüísticos, principalmente no que concerne às mudanças sonoras, foi bastante rebatido na História da Lingüística. Nesta seção, procuro observar algumas repercussões que causou a TN.
A Teoria da Leis Fonéticas (doravante TLF), em especial, e os achados neogramáticos, no geral, tiveram em Schuchardt (1885, apud Culler, 1975) um de seus mais fortes oponentes. Para esse lingüista austríaco, as mudanças não podem ser reduzidas a leis que imperem sobre a mente dos falantes, devendo ser analisadas em profunda relação com o pensamento dos indivíduos. Schuchardt encara as mudanças sonoras como resultantes de diversos processos analógicos, através dos quais são feitas associações fonéticas momentânea e arbitrariamente. Desse modo, combate a TN advogando, mostra Mattoso Camara Jr. (1975: 81), o fato de o som mudar em mais de uma direção, de acordo com as analogias momentâneas criadas na mente dos falantes.
Schuchardt atentou, portanto, para outros aspectos envolvidos no processo de mudança. Seu grande ‘salto’ na História da Lingüística está na formulação do conceito de mistura. Para ele, a linguagem é resultado de um processo de mistura: há mistura de formas de um falante a outro dentro de uma mesma língua e mistura de línguas diferentes (cf. Mattoso Camara Jr., op. cit.: 82). Dessa maneira, concebia toda língua como essencialmente “misturada”, oferecendo posteriores bases para estudos de línguas em contato e de falares crioulos, ainda em voga na Lingüística contemporânea (cf., p. ex., o recente trabalho de Couto, 1995).
Uma nova polêmica à TN se dá com os trabalhos do lingüista italiano Graziadia Ascoli. Inicialmente partidário da Doutrina Neogramática, Ascoli preconizava a necessidade de as mudanças serem explicadas através da mistura de populações, em decorrência de conquistas. Inaugurando a Teoria do Substrato nas últimas décadas do século passado, Ascoli postulou a tese de que as mudanças sonoras seriam operadas em virtude de falantes de territórios dominados adquirirem nova pronúncia, em virtude de assimilarem a língua dos conquistadores. Assim, esse pesquisador sustentou a idéia de que os resíduos, ou seja, as exceções à mudança, são explicados através dos substratos.
Com Ascoli e com a Geografia Lingüística, são atestados evidentes casos de não-atuação da mudança, que não podem ser explicados unicamente por analogia e/ou por empréstimo. A Dialectologia, então em preparo, forneceu fortes subsídios para mostrar que as mudanças sonoras efetivamente reconhecem exceções.
No Brasil, forte argumento contra a TN, no que concerne à irregularidade da mudança, nos oferece o Atlas Lingüístico de Minas Gerais (1968) para o fenômeno da vocalização da palatal /?/ em casos como ‘palha’/‘paia’ e ‘velho’/‘veio’, entre outros. Observe-se, no mapa a seguir, que a capital tende a manter a palatal /?/, resistindo à mudança, ao passo que as cidades do interior são mais difusoras a essa inovação.
 

/y/
/y/
/?/
/y/
/y/
 
 

Figura (02): Atlas Lingüístico de MG: vocalização de /?/
 

Como se vê, os principais oponentes à Doutrina Neogramática reclamaram, principalmente, da ausência de preocupação para com o dado social. Por detrás dessas críticas, está o argumento de que, tanto no nível individual quanto no coletivo, há heterogeneidade e é principalmente nela, dentro dela, que devemos buscar estrutura, sistema e funcionamento (cf. Tarallo, 1990: 57). Na verdade, os neogramáticos não atentaram para o fato de que a linguagem é sobretudo um fenômeno social e, por isso, agentes sócio-geográfico-culturais são sempre fatores de diversidade lingüística.
Ainda nos primeiros anos deste século, outra crítica ficou registrada à TN. Contemporâneo dos neogramáticos, Saussure certamente se demonstrava membro da Escola de Leipzig, mas combatia a rigidez com que os Yunggrammatiker tratavam os fatos lingüísticos. Como ressaltei mais acima, Osthoff & Brugmann (1969), idealizadores do Manifesto, concebiam os estudos lingüísticos como exclusivamente históricos, restringindo a Lingüística à formulação de uma teoria geral sobre a mudança. Saussure, mostra Culler (1975: 59), desconfiava das idéias de continuidade histórica e via que o estudo da evolução de formas poderia levar ao equívoco e ao descaso da função lingüística. Afirma (cf. p. 59), ainda, que a perspectiva diacrônica evita que se formulem questões que levem a uma descrição sincrônica pertinente.
Saussure combatia principalmente o historicismo dos neogramáticos, isto é, a afirmação do diacrônico em detrimento do sincrônico. Por outro lado, criticava o radicalismo da Escola de Leipzig no que concerne ao ato de restringir o escopo dos estudos lingüísticos. Para o mestre genebrino (cf. p. 76), a Lingüística é muito mais do que uma teoria da mudança.

6. Difusão Lexical versus Tese Neogramática: uma lingüística, outra lingüística ou ambas?
De todos os debates por que passou a TN, o mais recente e mais acirrado foi (e ainda é) o que coloca, de um lado, neogramáticos e, de outro, léxico-difusionistas. Quando, em 1969, William Wang publicava seu texto Competing changes as a cause of residue, que mais tarde tornou-se clássico na História da Lingüística, estava colocando em choque o ideário neogramático com uma teoria conhecida na literatura por Difusão Lexical (doravante DL).
Como já destaquei acima, a tônica do pensamento neogramático se baseava fundamentalmente no princípio da regularidade e na analogia, centrando o foco da mudança sonora no campo da fonética e da fonologia. Em suma, para os neogramáticos as mudanças são operadas sem exceção e condicionadas unicamente por fatores de natureza sonora.
Diferentemente, a DL, que tem como expoentes Cheng & Wang (1977), Phillips (1984) e Shen (1992), entre outros, tenta dar conta das irregularidades, predizendo que as mudanças sonoras não são foneticamente graduais e lexicalmente abruptas, mas exatamente o contrário. Para os difusionistas, as mudanças são foneticamente abruptas e gradualmente implementadas no léxico das línguas. Dessa maneira, os difusionistas deslocam o foco da mudança da unidade sonora para a unidade morfo-lexical.
A tese difusionista é fortemente reforçada por três argumentos, fundamentalmente: (a) inúmeras exceções a determinadas mudanças fonéticas não podem ser explicadas unicamente por analogia e/ou por empréstimo; (b) muitos processos fonológicos não são explicados somente por condicionamentos sonoros, mas por uma gama variada de fatores, incluindo os de natureza discursivo-pragmática e sócio-geográfico-social; e (c) nem todos os vocábulos que contêm o som em mudança são afetados simultaneamente e da mesma maneira. Longe de se aplicar a todas as palavras ao mesmo tempo, as mudanças fônicas reconhecem limites temporais, quer por razões sócio-culturais, quer por razões pragmáticas, sendo, pois, contínuas. A Figura (03) a seguir sintetiza o “duelo” entre TN e DL.

DL  TN
 
[x] -> [y]  [x] -> [y]
fatores geográfico-tem-porais X fatores fonológicos
unicamente
 

foneticamente abrupta  foneticamente gradual
lexicalmente gradual  lexicalmente abrupta
Figura (03): Síntese do impasse TN versus DL.
 

7. Evidências da DL
Nesta seção, apresento quatro trabalhos sobre fenômenos variáveis que oferecem evidências da atuação da DL no português do Brasil. Todas as pesquisas trabalharam com a Amostra Censo de Variação Lingüística (cf. Naro, 1986), acervo de fala informal e semi-espontânea constituído de 64 informantes, de ambos os sexos e moradores de diversas regiões administrativas da cidade do Rio de Janeiro.
Falando ou falano português?
Em trabalho sobre a supressão da dental /d/ em contexto -ndo, exemplificado pelo subtítulo acima, Mollica & Mattos (1992) verificam que alguns itens lexicais não sofrem ação da mudança, afirmando o princípio da DL. As exceções encontradas não puderam ser explicadas por analogia ou por empréstimo, mas por fatores de natureza morfo-lexical, como ‘categoria morfológica’. As autoras atestam que nomes próprios, como ‘Fernando’ e ‘Raimundo’, jamais são afetados, sendo as formas verbais de gerúndio as primeiramente atingidas pelo processo.
É certo de que há difusão
Investigando os fenômenos do queísmo (queda da preposição ‘de’ no contexto ‘de que’), como em ‘ter certeza de que’/‘ter certeza que’, e do dequeísmo (inserção de ‘de’ no contexto ‘que’), como em ‘acredito que’/‘acredito de que’, Mollica (1996) verifica que o modelo da Difusão Lexical dá conta da variação sintática. Chama atenção para o fator ‘formalidade do vocábulo’, que faz com que determinados itens lexicais menos formais, como ‘achar’ e ‘pedir’, sejam atingidos em proporções sem dúvida alguma menores que os mais formais.
O -r em dois tempos: no início era o verbo
Matos Lima (1991) analisa a supressão do -r pós-vocálico em posição de travamento silábico, em dados como ‘cantar’/‘cantá’. Reafirma o princípio da DL, trabalhando a variável ‘tempo’, pois mostra que novos itens são afetados com o decorrer do tempo . Dessa forma, verifica que a mudança é paulatina e não abrupta, como pensavam os neogramáticos.
‘Cabar ou apreservar o /a/?
Os fenômenos de aférese e prótese do /a/, em dados como ‘güentar’ e ‘assujeitar’, respectivamente, foram objeto de estudo em Gonçalves (1993). Confirmando o princípio da DL, o autor postula o Princípio da Saliência Mórfica como principal agente refreador da mudança. Itens em que o /a/ apresenta valor mórfico, como prefixo de negação ou relacional (‘anormal’/‘anoitecer’), não sofrem ação do processo de aférese. Também chama atenção para o fator ‘freqüência lexical’, pois dados mais freqüentes são também os mais afetados pelos dois fenômenos, sendo os menos freqüentes mais resistentes à mudança.

8. Como conciliar esse impasse?
Reanalisando os dois modelos teóricos apresentados, Labov (1981: 269) chega à conclusão de que as condições nas quais cada ponto-de-vista repousa são válidas. O idealizador da Sociolingüística Variacionista defende a idéia de que há alguns casos de mudança explicáveis pelo modelo TN e outros pelo modelo DL, pois se questiona (cf. p. 293): se Wang e seus patrícios estão certos sobre Difusão Lexical e os neogramáticos ainda mais certos sobre a regularidade da mudança, como ambos podem estar certos?
A favor da TN, Labov (1981) mostra o caso da variação /a/ breve versus /a/ longo na Costa Atlântica. Esse fenômeno de mudança é condicionado por fatores unicamente de natureza fonológica (‘contexto fônico seguinte’ e ‘tonicidade’) e atinge o léxico de modo geral, sem discriminar categorias gramaticais, exatamente como postulam os neogramáticos.
Por outro lado, o próprio Labov (op. cit.) reconhece que nem todo fenômeno de mudança é neogramaticalmente explicável. Há casos em que as evidentes exceções, mostra Labov, não podem ser resolvidas no âmbito da ação conjunta analogia-empréstimo, pois há inúmeros outros mecanismos que podem interferir na propagação da mudança.
Como conciliar esse paradoxo? Labov (op. cit.: 293) afirma que um grupo diz que fonemas mudam, outro diz que palavras mudam. Essas formulações são slogans abstratos que perdem o contato com a realidade. Enfim, para Labov (op. cit.) as “duas lingüísticas” não são rivais: são mutuamente complementares na explicação da mudança.
Revisitando a controvérsia neogramática, Oliveira (1991) prediz que todos os casos de mudança fonética são lexicalmente implementados. Como enquadrar, nessa afirmativa, os casos que Labov (1981) exemplifica como de mudança neogramática? Oliveira (1991) argumenta sua assertiva dizendo que os exemplos que Labov (op. cit.) chama de “regulares” não dão mostras de que, em estágios anteriores, não tenham sofrido espalhamento pelo léxico (daí a importância da variável ‘tempo’ em trabalhos de orientação léxico-difusionista). De fato, como garantir que determinadas mudanças hoje regulares não tenham sido, num recorte histórico, lexicalmente implementadas? Por isso, Oliveira (1991 e 1992) afirma que não há casos de mudança neogramática. A hipótese neogramática passa a ser vista apenas como “efeito neogramático”, isto é, como resultado final do processo de mudança.

9. Palavras finais
A TN resistiu ao tempo e às críticas na História da Ciência da Linguagem. Hoje, mais de cento e vinte anos após a publicação do Prefácio a Investigações Morfológicas (cf. Osthoff & Brugmann, 1969), pode-se dizer que a orientação neogramática, apesar dos pontos falhos, encontra certo respaldo e respeito na Lingüística contemporânea. Seja ela entendida como verdadeira teoria sobre a mudança sonora ou apenas como efeito (produto ou resultado), a TN tem seu lugar, uma vez que de certo modo prevê o comportamento das mudanças que se operam no componente fonológico das línguas.

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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