FILOLOGIA E LINGÜÍSTICA ROMÂNICA (REFLEXÕES PRÉVIAS E UM RELATO DE CASO)

Emmanoel dos Santos (UFRJ)

Começando pelo tema mais amplo (Lingüística Geral e Filologia Românica) quero iniciar chamando a atenção para o relacionamento privilegiado que a Filologia Românica tem com a Lingüística Geral. É evidente que o destaque que os organizadores deste encontro dão à Lingüística Românica é apenas conseqüência de estar ela mais perto dos seus (e nossos) interesses profissionais, não sinalizando para a minimização de outros relacionamentos muito produtivos para a Lingüística Geral, como, por exemplo, os estabelecidos com base nos estudos do grego e seus dialetos, ou na sânscrito.
Sabemos porém, que o Latim ocupou mais território, foi mais longe, dialetou-se ao ponto de ver esses dialetos, já tão mudados, serem chamados de novas línguas e cruzarem os oceanos. Ofereceu, assim, o Latim, para as reflexões e conclusões da Lingüística Geral, uma enorme quantidade e variedade de material, um corpus produzido ao longo de mais de dois mil anos, e sem solução de continuidade. Já se vê, portanto, que, ao mencionar essa tão longa continuidade no tempo, está-se a falar de material escrito. Estou, então, no ponto aonde queria chegar, ou seja, naquele em que a intervenção da Filologia deve ser lembrada. Pois esse material escrito, em sua maior parte, não aparece na forma em que foi originado. Os originais se perderam e restaram as cópias e cópias de cópias. Mesmo depois da invenção da imprensa, continuaram as divergências, agora entre os autógrafos e os textos impressos. Ainda hoje, com moderníssimos processos de impressão e supressão de intermediários, quantas gralhas não vemos surgir em nossos trabalhos? Portanto, somente com base em textos confiáveis, garantidos por bom trabalho filológico, pôde e pode a Lingüística Geral avançar mais em suas reflexões e conclusões, principalmente quando a diacronia é crucial. No caso da Lingüística Românica era apenas suplementar o exercício de reconstituição histórica, pois os textos escritos estavam à disposição do estudioso. Em grande número as formas não eram hipotéticas, mas atestadas e era bom o trabalho filológico que garantia sua validade. Minha primeira intenção, portanto, é ressaltar a importância da Filologia como mediadora na interação entre a Lingüística Românica e a Lingüística Geral, pois de nada adiantaria a abundância e variedade de material se este não fosse confiável.
Estou usando rótulos para áreas de conhecimento (Lingüística Geral, por exemplo) sem apresentar uma conceituação prévia, a que eu estou assumindo. Como muitos outros assuntos de estudo sistemático, o objeto da Lingüística Geral pode ganhar diferentes dimensões, segundo diferentes pontos de vista, e em nenhum caso será um objeto estático. Embora eu, didaticamente, apresente a Lingüística Geral como um ramo da Lingüística, há motivação para considerá-las a mesma coisa. Mas em qualquer das diferentes visões, haverá uma área nuclear. Quando o objeto de estudo afastar-se dessa área nuclear, especialmente quando estabelece relações com outras disciplinas, esse ramo de estudo pede um novo rótulo. No caso de estudo interdisciplinar, um rótulo que lembre as disciplinas que estão em contato.
No caso de delimitar os campos para a Lingüística Românica e para a Filologia Românica creio haver base bem menor para a confusão de objetos. A Lingüística Românica é o grande campo; ela é a fornecedora do corpus para a realização de trabalhos diversos, incluindo os de Filologia Românica. Pode-se dizer a mesma coisa, com outras palavras, olhando do ponto de vista dos resultados: a Lingüística Românica enfeixa todos os trabalhos, de qualquer natureza, desde que lingüísticos, realizados nessa área.
Devemos recuar muito mais se quisermos marcar o início dos estudos lingüísticos, mas a postulação da Lingüística como ciência autônoma e com objeto bem definido (e distinto dos objetos das outras disciplinas afins) deve-se a Saussure, já neste século. Ele reduziu fortemente o objeto para bem individualizá-lo. Primeira redução: não seriam as manifestações lingüísticas o objeto da ciência que postulava, mas as convenções lingüísticas que permitiam essas manifestações na sociedade. (Observe-se, de passagem, que Filologia sempre estivera voltada para o exame de manifestações lingüísticas). Segunda redução: interessavam apenas as convenções depositadas no corpo social, desprezando o que fosse apenas individual, idiossincrático. Terceira redução: a descrição separaria rigorosamente os elementos que integravam o sistema em um dado momento daqueles elementos históricos que a eles deram origem.
Com a definição precisa de seu objeto e com o rigor científico observado em seu trabalho, a Lingüística ganhou o prestígio quer todos conhecemos e, melhor, ganhou segurança para, sem sofre qualquer crise de identidade, ampliar seu objeto, atingindo até áreas que Saussure, por estratégia de ocasião, cuidadosamente evitou. Por esse prestígio que a nova ciência ganhou já no seu início e que só fez crescer, o nome “Lingüística”, até por puro oportunismo, é usado em disciplinas ou simples atividades que nada têm a ver com o objeto central da Lingüística. Mas esse uso indevido de seu nome não leva a Lingüística a qualquer crise de identidade, justamente porque seu objeto central é bem definido.
O que dizer da Filologia? Disciplina muito mais antiga do que a Lingüística, nada mais natural que tenha sido olhada com diferentes visões e tenha visto, ao longo de muitos séculos, variar muito em alcance e até em natureza o seu objeto. Essa diversificação do objeto não é apenas histórica. Em uma visão universal sincrônica atual encontramos o mesmo quadro de variação.
Em termos de Brasil, começo por recordar o que ocorria no Departamento de Lingüística e Filologia da faculdade de Letras da UFRJ, quando assumi pela primeira vez a direção do Departamento. Na Pós-Graduação em Filologia havia apenas um doutor, alguns pós-graduandos já comprometidos com a área e vários alunos examinado a possibilidade de entrar nesse campo. Seus interesses eram muito variados, como variados eram seus conceitos de Filologia. Partindo da maior generalização, ouvi que “Filologia é qualquer estudo sobre língua”, o que coloca, por exemplo, a Lingüística dentro da Filologia. Havia os que seguiam uma linha tradicional, e menos abrangente, que considera Filologia qualquer estudo feito com base em textos escritos. (Modernos conceitos de texto, portanto, não o colocam, seguida essa linha, como objeto da Filologia). Alguns adotavam conceitos mais restritos, considerando Filologia como estudo histórico. Ou, segundo outros, como estudo histórico e/ou crítica textual. Ou isto tudo mais dialetologia, entendida principalmente como geografia lingüística. Ou Filologia seria simplesmente crítica textual, apenas. Mas não faltou quem visse Filologia como estudo de material antigo, uma visão que pouco melhorava aquela de alunos que olhavam de longe a Filologia, associando-a à lembrança de pó e teia de aranha.
Eu combatia essa associação de Filologia com velharias desagradáveis, com a apresentação de trabalhos de natureza filológica, realizados tanto sobre material antigo como sobre manifestações lingüísticas atuais. Eu utilizei e não me cansei de apresentar o trabalho de Mattoso Câmara sobre erros ortográficos em redações de escolares, selecionado por uma publicação alemã de Filologia em 1957 (Romanistisches Jahrbuch), e mais tarde, felizmente, apresentado na coleção “Dispersos”. Tratando-se de análise de erros ortográficos, considerados como tendências de mudanças lingüísticas, só poderia ser feita sobre textos escritos. Era um trabalho onde Filologia e Lingüística se encontravam, com cada uma mantendo bem marcado o seu terreno. Mas era evidente que, ao menos de fora para dentro, havia se instalado na Filologia uma crise de identidade.
Para ter uma idéia precisa do que estava acontecendo no Brasil, sugeri à mestranda Cristina Alves de Brito uma investigação, por questionários postados e entrevistas pessoais, sobre o que se fazia nas universidades com o rótulo de Filologia. Dessa pesquisa saiu sua dissertação de mestrado, que eu tive o prazer de orientar, mostrando as dificuldades para criar um verbete “Filologia”.
Eu tinha nas mãos um problema: um Programa de Pós-Graduação em Filologia com apenas um doutor e alunos dispersos por várias áreas com o rótulo geral de Filologia, mas muito distintas quanto ao objeto e à metodologia. Como resolver isso, havendo, insisto, somente um doutor em Filologia no programa? Como chefe de departamento, a política foi estimular a redução de linhas de pesquisa. Como professor de pós-graduação em Lingüística, marcar uma área de minha atuação, onde estudantes de Filologia pudessem operar sem descaracterização de seus interesses.
Ao acolher alunos de Filologia nosso intuito foi oferecer-lhes um campo de trabalho para eles novo e nada problemático, pois relativamente eqüidistante dos extremos entre os quais circulavam estudos sob o rótulo geral de Filologia. Trabalhando sobre o mesmo objeto material que atraía seus colegas de Lingüística, mas vendo nele objetos formais bem distintos, levando ao uso de metodologias igualmente bem distintas, os alunos de Filologia percebiam, na prática, sua própria identidade. Ganhariam, em conseqüência, base mais segura para uma decisão quanto ao tema de suas pesquisas para dissertações ou teses, e quanto à metodologia a ser empregada. E, juntos, alunos de Filologia e de Lingüística veriam mais de perto a complementaridade de seus trabalhos, na tarefa de dar conta de um objeto tão complexo como é a língua.
O Léxico, portanto, funcionou como um ponto de encontro. Do lado da Filologia era uma opção que aproveitava a formação anterior dos alunos e servia a seus interesses do momento. Eram estudantes que haviam sido intensamente expostos a uma tradição que realçava a importância da palavra e a tomava como base de seus trabalhos lingüísticos. Participavam de uma tradição tão reverente para com a palavra que a lexicografia chegava a Ter esperanças, como no caso dos irmãos Grimm, de que um dicionário pudesse ser lido como qualquer livro, despertando igual ou maior prazer de leitura. Ou seja, postulando que palavras fora do contexto constituíssem um tipo de literatura, ou, pelo menos, de quase-literatura.
Do lado da Lingüística era bem diferente o quadro. Desde o estabelecimento, bem mais recente, de sua identidade, a ciência desdobrou-se para dar conta das áreas de interesse central, e logo haveria de avançar por áreas periféricas, pedindo estudos interdisciplinares e contatos que, nos primeiros momentos, como sabemos, cuidadosa e rigorosamente procurara evitar. Tal desenvolvimento ocorreria, inevitavelmente, em velocidades desiguais. Isto explica a concentração de pesquisas em determinados setores, variando ao longo do tempo, com o conseqüente enfraquecimento (ou mesmo desaparecimento) do interesse por certos setores. Como outros e mais do que outros, o léxico é setor que tem sofrido as conseqüências dessas inconstâncias de interesses, e constantes polarizações. Mas, no momento, há fortes sinais de interesse. Observe-se, por exemplo, a crescente importância que os gerativistas vêm dando ao léxico, à medida que avançam na construção de seus modelos. As palavras de Eduardo Paiva Raposo expressam essa importância breve, forte e bem clara: Podemos dizer que o léxico é o dicionário da gramática: as regras desta manipulam os itens lexicais, fazendo um uso crucial da informação aí contida. O léxico é assim uma parte central de qualquer teoria gramatical.
Portanto, deveria ser óbvio esperar que todo lingüista fosse um conhecedor de dicionários, um estudioso que os tomasse como objeto, um lexicólogo, já que o léxico é uma parte central de qualquer teoria gramatical, o dicionário da gramática. Mas há quem exija mais. Harald Weinrich, por exemplo, cobra interesse não apenas pela lexicologia (o estudo científico do léxico), mas também pela lexicografia, porque assume ter a Lingüística obrigações em relação também a esta, pois o tipo de dicionário exigido pela nossa época é o dicionário lingüístico. Então Weinrich estuda o papel que a Lingüística deveria desempenhar em relação à elaboração de dicionários, já que é evidente que qualquer dicionário deve estar à altura da investigação lingüística. Em contrapartida, o inverso deve ser igualmente verdadeiro: a Lingüística não deve ficar atrás relativamente ao estado dos conhecimentos em lexicografia. E diz algo mais forte: Aliás, aproximar-nos-íamos. Ao máximo, da verdade, se considerássemos a lexicografia (e penso realmente na lexicografia, isto é, a arte de fazer dicionários, e não simplesmente na lexicologia, quer dizer, uma reflexão sobre essa arte), um setor da Lingüística,
Argumentos, portanto, não faltaram para o trabalho de convencimento. Passando a atuar tanto na graduação como na pós-graduação, primeiros e parciais sucessos me estimularam a marcar novos encontros na área lexical. Da produtividade desses encontros podem dar testemunho participantes deste Congresso e que obtiveram títulos de Mestre ou de Doutor em Filologia trabalhando comigo, um lingüista de formação, nessa área de trabalhos lexicais. Com a já feita abertura de um canal de fácil comunicação, confio que será continuamente produtivo um novo encontro de lingüistas e filólogos, agora em plano internacional, graças ao apoio que recebi do Professor Mário Vilela, da Universidade do Porto. A Professora Maria Lúcia Mexias Simon lá esteve, inaugurando neste ano esse plano de colaboração. No ano que vem espero que a Professora Cristina Alves de Brito dê continuidade ao programa. Com a palavra, portanto, a Professora Maria Lúcia, e, em futuro muito próximo, a Professora Cristina e mais tarde, tenho confiança, muitos mais.