CARACTERÍSTICAS GRÁFICAS DE UM TEXTO PORTUGUÊS SETECENTISTA

Sílvio de Almeida Toledo Neto (USP)

 Este trabalho tem por objetivo examinar um aspecto da grafia do português setecentista: os latinismos e helenismos gráficos. Mais especificamente, pretende-se verificar se há critério de uso dos grupos consonânticos latinos, consoantes duplicadas e grupos consonânticos gregos que ocorrem em parte da primeira edição de Anchora medicinal para conservar a vida com saude, de Francisco da Fonseca Henriquez, obra publicada em 1721, a partir de uma base comum que determine o emprego destas grafias, considerando para tanto a freqüência de ocorrências de grafias etimológicas que refletem a do étimo do vocábulo e os casos em que a grafia etimológica utilizada não se origina do étimo próximo ou remoto do vocábulo .
 O consenso entre estudiosos, de que a ortografia da Língua Portuguesa foi um caos até o estabelecimento das normas que passaram a vigorar a partir de reformas ocorridas no século XX deveria ser substituído pela idéia mais apropriada de falta de norma considerada padrão para todos (Cagliari 1996:2) , a qual pode ser corroborada por identificação de um possível critério de uso das grafias etimológicas, aplicado inicialmente apenas ao corpus, mas que estudos posteriores poderão confirmar ou não como sendo de uso mais amplo.
 Como se sabe, formas eruditas e semi-eruditas baseadas no latim penetraram no português desde suas origens, o que se torna particularmente intenso no século XV com a prosa didática e histórica, e no século XVI, em conseqüência das tendências gerais do Renascimento humanista. Muitas vezes o latinismo consistia em adotar grafia etimológica para tornar à forma escrita dos vocábulos latinos (Teyssier 1990:68-9).
 Tendências etimológicas também são evidentes nas primeiras gramáticas e ortografias, pois aplicam à ortografia o que fazem ao descrever a língua portuguesa: aproximam-na, o quanto possível do ideal de perfeição e pureza - a língua latina. Observa-se, portanto, que o sistema ortográfico do português apresentará uma progressiva complexidade pela não só introdução de latinismos mas também de helenismos gráficos. (Gonçalves 1992:41-2). Essa tendência à preponderância da componente histórica da ortografia, que se evidencia tanto pelo uso de grafia etimológica quanto pseudo-etimológica, revigora-se no final do século XVI, principalmente com Duarte Nunes do Leão e sua Orthographia da lingoa portuguesa (1576), continuando  nos séculos XVII e XVIII, quando atinge o seu auge, em 1739, com a Orthographia ou arte de escrever, e pronunciar com acerto a lingua portugueza, de João de Moraes Madureyra Feijó.
 Além do que, com o interesse progressivo dos estudos gramaticais e lexicográficos pela etimologia, e a constatação de serem muitos vocábulos portugueses originários do grego, os quais os romanos costumavam diferenciar com o uso de grupos consonânticos, muitos escritores eruditos e tipógrafos começam a escrever o português retomando essa prática antiga dos romanos (Cagliari 1989:19). Entre os textos metaortográficos setecentistas, a forte componente etimológica explica a recuperação dos grupos consonânticos latinos <CT>, <GM>, <GN>, <MN>, <MPT>, as consoantes duplicadas, o emprego dos grupos gregos <CH>, <PH>, <TH> e <RH>, o uso de <Y>, por vezes pseudo-etimológico e a atribuição de valores diversos ao <H> (Gonçalves 1991:264-5).
 No entanto, muitos ignoravam as formas originais dos vocábulos, o que levou ao aparecimento de formas muito estranhas de grafá-los, ficando com uma aparência de  gregos, quando não se ligavam a essa língua, mas tinham outra origem. Esse certo preciosismo invadiu o resto. O que se apresentava na ortografia como forma "exótica" passou a ser generalizada de maneira indevida (Cagliari 1989:19).
 Considerado o quadro histórico acima exposto, tendo em vista o uso etimologicamente correto e o emprego indevidamente generalizado de grafias etimológicas, o que, à primeira vista, pode revelar liberdade ou falta de critério ortográfico durante o século XVIII, propõe-se que um levantamento das ocorrências de latinismos e helenismos gráficos em corpus setecentista poderá fornecer subsídios para fundamentar a verificação da existência ou não de uma regularidade de critério ou critérios que determinem o uso dessas grafias.
 O corpus  que constitui a fonte deste estudo é parte da primeira edição de Anchora medicinal para conservar a vida com saude, preservado na Biblioteca Nacional de Lisboa. Trata-se da sexta obra publicada por Francisco da Fonseca Henriquez. A primeira foi a Pleuricologia, a segunda, o Tratado do uzo do Azougue nos cazos prohibidos, impressa depois juntamente com a terceira, intitulada Medicina Lusitana. A quarta foi um Tomo de observaçoens Latinas, a quinta, as ilustrações à prática de Duarte Madeira, com o título de Madeyra Illustrado, a que ajuntou uma dissertação dos humores naturais do corpo humano. Segundo o autor, Anchora medicinal, embora de volume pequeno, excede as outras no assunto e na matéria, porque aquelas foram escritas para os doentes e esta, para os sãos. O livro trata das seis coisas não naturais com cujo uso correto e boa administração se conserva a saúde, pelo que se intitula Anchora medicinal, porque assim como as embarcaçoens que navegaõ os mares, com as anchoras se seguraõ nas procellosas furias de Neptuno: assim o bayxel da vida humana, que muytas vezes fluctua na tempestade dos males, com este Livro se pòde prezervar delles, observando a sua doutrina no tempo da saude, para não vir a experimentar as tormentas, & assaltos das enfermidades .
 A obra divide-se em cinco seções. A seção 1 trata do ar ambiente, a seção 2, dos alimentos em comum, a seção 3, dos alimentos em particular, a seção 4, da água, do vinho e de outras bebidas alimentares e medicamentosas e a seção 5, do sono e da vigília, do movimento e descanso, dos excretos e retentos, e das paixões da alma.
 A portada da obra é a seguinte: ANCHORA / MEDICINAL / PARA CONSERVAR / a vida com saude. / ESCRITA PELO DOUTOR / FRANCISCO DA FONSECA / HENRIQUEZ, / Natural de Mirandella, Medico do / Serenissimo REY de Portugal / D. JOAÕ V. / IMPRESSA POR ORDEM, / & despeza do Excellentissimo Senhor Mar- / quez de Cascaes, Conde de / Monsanto; &c. / (+) / LISBOA OCCIDENTAL. / na Officina da Musica. / _____ / An. de M.DCC.XXI. / Com todas as licenças necessarias.
 Quanto à organização interna, o livro tem 570 páginas, sem contar as folhas de guarda.
 A paginação, que é feita em números arábicos, inicia-se na 32.a página, em cabeça da folha, ao lado direito, com o número arábico 1, estendendo-se a numeração até 537; ocorre sempre a indicação numérica no lado direito nas páginas à direita (numeração ímpar) e no lado esquerdo nas páginas à esquerda (numeração par).
 A distribuição do texto pelo livro é a seguinte: [1] portada, [3-9] dedicatória, [11-16] prólogo, [17-22] índice, [23-29] licenças, [31-32] antelóquio, 1-537 texto, 1[1-2] erratas.
 As ilustrações do livro incluem os ornatos das capitulares de início de seção, compostos de elementos fitomórficos e zoomórficos que parecem estar relacionados ao conteúdo da obra em que figuram. Além disso, encontram-se vinhetas diversas encabeçando ou fechando partes do texto.
 Quanto às características tipográficas, o texto é redigido em caracteres romanos redondos e itálicos, em uma coluna, sendo usadas capitulares em início de seção e capitais em início de capítulo.
 Ao pé de todas as páginas encontra-se o reclamo, uma linha mais curta depois da última linha de texto, ao lado direito, que repete o começo do texto da página seguinte. Pode-se observar a assinatura dos cadernos centralizado ao pé da página, em letras maíusculas seguidas de numeração romana (por exemplo, A, Aij, Aiij, Aiiij, B, Bij, Biij, Biiij, etc.).
 A amostra analisada é recolhida do primeiro capítulo de cada uma das cinco seções de Anchora medicinal, de que se levantaram todas as ocorrências dos grupos consonânticos latinos <CT>, <GN>, <CÇ>, <PÇ> e <PT>, consoantes duplas <LL>, <MM>, <FF>, <TT>, <PP>, <CC> e <NN>, e grupos gregos <CH>, <TH> e <PH>. O total geral obtido perfaz 264 ocorrências.
 Dividiu-se a amostra em três grupos (grupos consonânticos latinos, consoantes duplas e grupos gregos) dispostos em tabelas categóricas, seguindo a ordem alfabética nas colunas e o número de vocábulos em que ocorrem as grafias para ordenar as colunas. Indica-se a seguir de cada vocábulo a seção da obra, em itálico, e a respectiva linha da ocorrência, em caracteres redondos. Discerne-se então em quais casos as grafias têm base etimológica e em quais não têm. Apresenta-se uma síntese dos resultados com o total de ocorrências e freqüências de grafias etimológicas e pseudo-etimológicas encontradas no corpus. Com base nos resultados obtidos, emite-se hipótese sobre a existência ou não de critérios de uso dos latinismos e helenismos gráficos do corpus e quais teriam sido estes critérios.

Tabela n.o1 - Ocorrências de grupos latinos <CT>, <GN>, <CÇ>, <PÇ> e <PT> encontrados nos capítulos I das seções I a V de Anchora medicinal
<CT> <GN> <CÇ> <PÇ> <PT>
consectarios (II.1 -152) benigno (III.1 - 206) acção (IV.I - 23) corrupçaõ (IV.I - 292) incorrupta (IV.I - 151)
correctivo (III.1 - 11) estagnando (III.1 - 172) affecçoens (V.I - 11) - -
defectuosa (III.1 - 27)  estagnantes (IV.I - 220) infecçoens (IV.I - 240) - -
dictame (II.1 - 265) ignavas (V.I - 88)  obstrucçoens (III.1 - 69, 73, 148, IV.I - 105, 184, 233, 253, 297) - -
ductos (II.1 - 41, IV.I - 21, 147, V.I - 110) ignorou (V.I - 74)   - -
 

Tabela n.o1 (continuação) - Ocorrências de grupos latinos <CT>, <GN>, <CÇ>, <PÇ> e <PT> encontrados nos capítulos I das seções I a V de Anchora medicinal
<CT> <GN> <CÇ> <PÇ> <PT>
exactamente (II.1 - 36, 119) insigne (IV.I - 134)  - - -
infecta (IV.I - 248)  insignem??te (III.1 - 204) - - -
lacteas (II.1 - 100) malignas (IV.I - 293) - - -
rectamente (II.1 - 285) - - - -

 Na Tabela n.o1, apresentam-se as 34 ocorrências de vocábulos em que há grupos consonânticos que constituem vestígios da grafia latina. As 13 ocorrências que apresentam o grupo <CT> (38,2%)  obedecem a critério etimológico, pois recupera-se graficamente o <C> em vocábulos eruditos que o apresentam em seus étimos latinos. O mesmo ocorre com referência às 8 ocorrências (23,5%) de <GN>, uma vez que este grupo gráfico latino não se manteve na evolução regular da língua portuguesa. Também é latinismo gráfico o grupo <CÇ>  nas suas 11 ocorrências (32,3%), em vista da restauração de <C>, o mesmo ocorrendo com a grafia <P> do grupo <PÇ> que surge na ocorrência de um vocábulo (2,9%). Por fim, o grupo <PT> reflete a grafia latina do vocábulo em uma ocorrência de um vocábulo (2,9%).

Tabela n.o 2 - Ocorrências de consoantes duplicadas <LL>, <MM>, <FF>, <TT> e <PP> encontrados nos capítulos I das seções I a V de Anchora medicinal
<LL> <MM> <FF> <TT> <PP>
aquella (III.1 - 150, IV.I - 64) accommodarem (II.1 - 223) affecçoens (V.I - 11) admittem (II.1 - 172) appetece (II.1 - 188, 197)
aquellas (I.1 - 23) commodos (V.I - 80) affirmou (I.1 - 107) attendendo (II.1 - 381) appetecem (II.1 - 211)
aquelle (II.1 - 230, 373, III.1 - 45)  commum (II.1 - 3, 263, III.1 - 7) affirmou (IV.I - 311) attender (II.1 - 351) appetite (IV.I - 22)

Tabela n.o 2 (continuação) - Ocorrências de consoantes duplicadas <LL>, <MM>, <FF>, <TT> e <PP> encontrados nos capítulos I das seções I a V de Anchora medicinal
<LL> <MM> <FF> <TT> <PP>
aquelles (II.1 - 136, 197, 218, 254, 289, III.1 - 11, V.I - 95) commummente (III.1 - 119) differença (II.1 - 241, III.1 - 43) attendesse (I.1 - 85) approvação (II.1 - 311)
aquillo (II.1 - 24, V.I - 19) communicaõ (I.1 - 19) differenças (IV.I - 72, 257) attenua (I.1 - 56) Hippocrates (IV.I - 114, 312, V.I - 65)
argillosa (IV.I – 93, 260) communiquem (IV.I - 223) differentes (I.1 - 97, II.1 - 278, 387) attenùa (III.1 - 60 , 146) opprimem (IV.I - 327)
colliquar (II.1 - 61) commuta (II.1 - 255) difficil (IV.I - 155) attenuar (II.1 - 83) opprimindo-as (V.I - 99)
collirios (IV.I - 167) commutalas (II.1 - 66) difficuldade (II.1 - 142, III.1 - 72) attenùe (III.1 - 78) suppomos (II.1 - 47)
Columella (I.1 - 81) commutando-os (II.1 - 157) effeyto ( II.1 - 59) atteste (IV.I - 133) suppressoens (IV.I - 322)
daquelle (I.1 - 135) commutaõ (II.1 - 69, 137, 165) efficacia (II.1 - 343) attrahe (I.1 - 47) -
daquelles (I.1 - 141, II.1 - 222, 249, 270, 273) cõmum (II.1 - 135, 211) offenda (III.1 - 141) attraidos (IV.I - 117) -
dellas (IV.I - 77, 252) cõmunicavaõ (I.1 - 23) offende ( II.1 - 392, III.1 - 89, IV.I - 35, 232) attribue (IV.I - 175) -
delle (II.1 - 283, III.1 - 80) cõmunique (IV.I - 193) offendem (II.1 - 335, IV.I - 324) attribuio (I.1 - 128) -
delles (II.1 - 135, 248, 256, III.1 - 183, 191, IV.I - 63, 247, V.I - 30, 107) cõmuta (II.1 - 76) offendem-se (II.1 - 167) - -
ella (III.1 - 209, IV.I - 86) cõmutam (II.1 - 174) offender (II.1 - 43, 299, III.1 - 204, V.I - 126) - -
ellas (III.1 - 172, IV.I - 207) cõmutaõ (II.1 - 150) offenderá (III.1 - 206) - -
elle (I.1 - 34, 38, II.1 - 26, 29, 115, 196, 245, 396, III.1 - 28, 53) Epigramma (III.1 - 101) offensa (II.1 - 274) - -
elles (II.1 - 86, 120, 171, 174, 224, 272, 320, 325, 335) immedicaveys (I.1 - 79) suffocação (III.1 - 175) - -
estillicidios (V.I - 119) immoderado (V.I - 91) - - -
fallamos (II.1 - 230, III.1 - 17) immundos (IV.I - 199, 318) - - -
Tabela n.o 2 (continuação) - Ocorrências de consoantes duplicadas <LL>, <MM>, <FF>, <TT> e <PP> encontrados nos capítulos I das seções I a V de Anchora medicinal
<LL> <MM> <FF> <TT> <PP>
fallarèmos (IV.I - 77) incommodos (I.1 - 70, IV.I - 235, 299) - - -
farello (III.1 - 42) inflammaçoens (IV.I - 165) - - -
farellos (III.1 - 45, 46, 52) symmetria (I.1 - 39) - - -
gallinha (II.1 - 178) - - - -
illustra (I.1 - 59) - - - -
illustrado (II.1 - 125) - - - -
molle (III.1 - 81) - - - -
naquelle (IV.I - 332) - - - -
nella (II.1 - 116, IV.I - 55, IV.I - 71, 80, 136, 140, 147, 150, 166) - - - -
nellas (IV.I - 182, 320, V.I - 127) - - - -
nelle (I.1 - 42, III.1 - 71, 286) - - - -
pelle (V.I - 133) - - - -
pellucida (IV.I - 42) - - - -
procellosa (IV.I - 143) - - - -

Tabela n.o 3 - Ocorrências de consoantes duplicadas <CC> e <NN> encontrados nos capítulos I das seções I a V de Anchora medicinal
<CC> <NN>
accidente (II.1 - 379) annos (III.1 - 99)
accommodarem ( II.1 - 223) innumeraves (IV.I - 299)
occupa (I.1 - 13) innumeraveys (II.1 - 357)
occurso ( II.1 - 92) perenne (II.1 - 21)
succede (V.I - 25, 124) -
succedido (III.1 - 176) -
succo (II.1 -92, IV.I - 29) -
vacca ( II.1 - 178) -

 Nas Tabelas n.os 2 e 3, apresentam-se as 194 ocorrências de consoantes duplicadas, usadas a partir de analogia com o latim. O dígrafo <LL> apresenta um total de 93 ocorrências (47,9%), sendo que, em 2 vocábulos (3 ocorrências ou 1,5%), as grafias não são etimológicas: fallamos e fallarèmos, flexões de falar, que deriva do latim ?????????. Nas 31 ocorrências de <MM> (16%), algumas vezes representado pela variante gráfica <~M> em posição medial, todas as ocorrências encontram base na grafia latina, assim como as 30 ocorrências de <FF> (16%). Assim também, registram-se ocorrências das grafias <TT> (14 ocorrências ou 7,2%), <PP> (12 ocorrências ou 6,2%), <CC> (10 ocorrências ou 5,1%) e <NN> (4 ocorrências ou 2,0%) em formas portuguesas cujo étimo latino também as apresenta. Com referência às consoantes duplicadas, Gonçalves (1992:86-7) afirma que, assim como os grupos consonânticos latinos, são um emblema da latinidade, fator de nobilitação da língua portuguesa, e salienta o fato de representarem uma espécie de sobre-informação óptica, uma vez que só prestam informação no campo visual e que fazem, conseqüentemente, apelo a dados que se situam apenas na órbita do jogo de correspondências fonográficas.

 Tabela n.o 4 - Ocorrências de grupos consonânticos gregos <CH>, <TH> e <PH> encontrados nos capítulos I das seções I a V de Anchora medicinal
<CH> <TH> <PH>
chylificaçaõ (II.1 - 28, 107) antipathia (II.1 - 162) Philosophos (I.1 - 6, 21)
chylo (II.1 - 41, 77, 88, 95, 98) Mithridates (II.1 - 336) lympha (I.1 - 75)
cholera (II.1 - 104, IV.I - 27)  Authores (II.1 - 358, IV.I - 112) Phasis (I.1 - 134)
estomachaes (II.1 - 161) Thomás (II.1 - 376) Philosopho (III.1 - 96)
Colchos (I.1 - 134) Athenienses (I.1 - 129) hydrophobos (IV.I - 335)
melãcholicos (III.1 - 112) Ethiopes (I.1 - 140) -
Eschola (III.1 - 116)  author (III.1 - 151) -
chylelticos (III.1 - 149)  authoridade (IV.I - 119)  -
Archeu (IV.I - 28) authoridades (IV.I - 128)  -
hypochondrios (IV.I - 46, 185)  - -

Tabela n.o 4 (continuação)- Ocorrências de grupos consonânticos gregos <CH>, <TH> e <PH> encontrados nos capítulos I das seções I a V de Anchora medicinal
<CH> <TH> <PH>
cacheticos (IV.I - 253) - -
cachetica (V.I - 84) - -
chronicos (V.I - 102) - -

 Na Tabela n.o4, apresentam-se as 36 ocorrências de grupos consonânticos gregos encontrados no corpus. Sobre os grupos consonânticos oriundos do grego, diz Gonçalves (1992:87) que são uma herança que os latinos receberam já desde o século II a. C. e que, por sua vez, transmitiram ao português. De <CH>, são 20 ocorrências (55,5%) em que é grafia latina reproduzida fielmente no português, e indica que o étimo remoto do vocábulo, no grego, grafa-se com <*>. No caso das 10 ocorrências de <TH> (27,7%), no entanto, 5 são etimológicas (remetem, no latim e, portanto no português, ao grafema <*> do grego) e 5 não o são. As ocorrências pseudo-etimológicas de <TH> encontram-se nas formas singular e plural de author e authoridade, vocábulos derivados respectivamente do latim auctor, -??ris e auct??r?tas. Quanto a <PH> (que substitui no latim e no português ao <*> grego), todas as 6 ocorrências (16,6%) obedecem à etimologia greco-latina dos vocábulos.
 Os grupos gregos acima apresentados inserem-se no contexto cultural do século XVIII, em que houve valorização da erudição greco-latina e desejo de luxo e extravagância ortográfica, sintoma de valores intelectuais e culturais da época (Gonçalves 1992: 87).  Conforme o levantamento de ocorrências de vocábulos nas quatro tabelas antecedentes, sintetizam-se os resultados numéricos na tabela seguinte:
 

Tabela n.o 5 - Total de ocorrências e freqüências de grafias etimológicas e pseudo-etimológicas encontradas nos capítulos I das seções I a V de Anchora medicinal
categorias de grafias grafias etimológicas grafias pseudo-etimológicas totais parciais
 n.o / % n.o / % n.o / %
grupos latinos 34 / 100% - 34 / 100%
consoantes duplicadas 191 / 98,4% 3 / 1,5% 194 / 100%
grupos gregos 31 / 86,1% 5 / 13,8% 36 / 100%
total geral 256 / 96,9% 8 / 3,0% 264 / 100%

 Com base nos resultados fornecidos pela Tabela n.o5, pode-se verificar a predominância da tendência etimológica frente à pseudo-etimológica no que concerne ao emprego dos latinismos e helenismos gráficos no corpus. Em 96,9% dos casos observados, o critério é etimológico. Nos outros 3,0%, o étimo não justifica o uso das grafias etimológicas greco-latinas.
 Ora, a recorrência de um mesmo critério em tão elevada freqüência faz pensar numa norma de uso de grafias etimológicas somente quando haja fundamento etimológico para tanto, enquanto que os demais casos, provenientes de falsas regressões ortográficas, supõem a existência de uma segunda norma, usada em casos específicos. Segundo os resultados obtidos, portanto, é possível concluir com a hipótese de que no corpus parte-se com maior freqüência de critério etimológico para o emprego dos latinismos e helenismos gráficos, havendo em alguns casos critério pseudo-etimológico, o que comprova antes a coerência que a ausência de regras. A identificação da alta freqüência de ocorrências de latinismos e helenismos gráficos com base etimológica a par de algumas ocorrências  com base pseudo-etimológica demonstra a vigência no corpus de normas padrão localizadas, informação que corrobora a conclusão de Marquilhas (1991:8), quando diz que em Portugal no século XVIII  não se pode falar na existência de ortografia única, mas apenas de várias ortotipografias paralelas ou divergentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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