ALGUNS ASPECTOS DO DESENVOLVIMENTO
DA FUNÇÃ0 SIMBÓLICA  DA LINGUAGEM

Denise Maria Oliveira Zoghbi (UNEB, UFBA, UCSal)

O estudo apresenta algumas considerações a respeito do papel que a palavra desempenha dentro do processo de aquisição da linguagem, observando a natureza da relação linguagem-pensamento, no que diz respeito a compreensão e produção de conceitos, principalmente os abstratos.
A nossa imagem do mundo é criada a partir do desenvolvimento das formas simbólicas. Esta imagem é o produto da conversão do conteúdo perceptivo da realidade, da própria apreensão da realidade, em conteúdo simbólico.
Como sabemos, a função simbólica substitui os objetos reais por símbolos, signos, palavras e representações que evocam na sua ausência. Esta ausência é a situação onde existem “objetos ausentes” (Paulus, 1975), é o pensar ou relacionar-se com eles.
Paula Menyuk (1976) reconhece a capacidade que as crianças têm de detectar e armazenar características abstratas.  E para que elas consigam armazenar estes traços e depois usá-los para compreender e produzir enunciados, é necessário ter desenvolvido a capacidade perceptiva e de memorização. Só a partir do desenvolvimento perceptivo e da apreensão da realidade é que a criança amplia a sua capacidade de abstração, a sua capacidade de chamar os objetos ausentes em sua memória.
Esta armazenagem está relacionada com a função simbólica da linguagem, pois a aquisição da linguagem só é possível a partir da representação simbólica, a qual é posterior ao amadurecimento visual. Esta representação surge a partir da imagem visual criada pela percepção óptica, que é a unidade espacial “do símbolo” (Evans, 1979). Por outro lado, a criança aprende a linguagem uma vez que está familiarizada com o mundo, com os objetos, dependendo do desenvolvimento das zonas de associação do cérebro. (Evans, opus cit). Tanto a evolução da criança quanto sua visão de mundo interferem na aquisição e desenvolvimento da linguagem.
A afirmativa de R.H.Day confirma a interação entre a percepção e mundo quando diz: “percepção é conjunto de processos pelos quais o indivíduo mantém contato com o ambiente” (Day, 1974:3).
Ainda segundo este autor, através da percepção há a apreensão da realidade, e isto se concretiza como o primeiro passo para se atingir graus maiores de generalização.
O ser humano, principalmente a criança, tem uma capacidade perceptiva muito grande. A cada momento ele enfrenta uma situação nova, e às vezes oposta uma a outra já vivenciada. Isto favorece à posterior discriminação das experiências.
Resumindo, a criança parte da percepção da realidade concreta, e através das imagens elaboradas a partir do seu contato com o meio, ela é capaz de assimilar este conceito, para que num momento posterior descubra novas propriedades, e possa discriminar novas variáveis no seu mundo, conduzindo-se a um processo de aquisição de conceitos, agora semi-abstratos, e, posteriormente, abstratos.
Portanto, passar de um processo simbólico-perceptivo, chegar a uma concretização, e depois à abstração é um caminho lento, e que necessita de uma interação com o meio.
O caráter  cognitivo da linguagem é defendido por Jean Piaget (1978) quando ele propõe a função simbólica da linguagem, a qual inclui o jogo de imagens simbólicas, pois o pensamento é provido de simbologias e conceitos profundos. É impossível para uma criança entender uma expressão verbal enquanto não dominar o conceito subjacente. É  o que Slobin (1980) chama de precedência da compreensão sobre a produção.
Nota-se que as crianças procuram várias maneiras de discriminar aquilo que lhes chama mais atenção, aquilo que elas concebem como mais relevantes na descrição.
Tanto Vygotsky (1962) quanto Sapir e Whorf (in Schaff, 1967) defendem uma função primária da linguagem humana. A palavra, segundo eles, tem uma função: chamar a atenção para as coisas significativas que rodeiam o falante. A visão de mundo de cada um, a sua realidade próxima é que vai definir o seu objeto.
Chamando a atenção da criança para situações ou objetos significativos, pode-se identificar momentos da evolução do pensamento conceitual na criança.
Neste sentido, a representação, segundo Evans (1979), é o pré-requisito necessário para a aquisição da linguagem. Para ele, a percepção verbal estimula os mecanismos de elaboração de conceitos, que, por sua vez, são estimulados pela percepção visual.
De acordo com Cassirer (1957), a representação das várias formas de expressão da realidade é a conversão de um simples conteúdo de percepção e apreensão em conteúdo simbólico.
Como exemplo, no estudo, uma criança respondeu ao questionamento “O que significa  ‘negro’para você?”     “– Negro, significa preto morte”.
O caráter abstrato da linguagem humana, provavelmente surge no momento em que a criança desenvolve a sua capacidade perceptiva e apreensiva, auxiliada pelo desenvolvimento dos processos simbólicos, chamando a sua mente conceitos “ausentes”, e representando-os na realidade.
De acordo com Sapir (1966), as categorias abstratas do pensamento que aparecem a partir de modificações correspondentes na linguagem já existente, somente são chamadas à mente quando há necessidade.
Podemos dizer que a função atrativa da linguagem (chamar a atenção para elementos significativos) é o fator fundamental para que possamos entender melhor a natureza da relação linguagem-pensamento e,  consequentemente, a evolução cognitiva da criança e sua capacidade de generalização.
A função de atrair a atenção para os elementos significativos está também diretamente relacionada com a função simbólica da linguagem, tratada por Evans (opus cit) e Piaget (opus cit).
Desta forma, é certo afirmar que a função simbólica da linguagem é a responsável pela eficiência do processo de aquisição de conceitos concretos e abstratos.
Partindo da concepção de que a formação do símbolo na criança (Piaget, 1978) começa a ocorrer mesmo antes da criança falar uma única palavra, e que este pensamento conceitual desenvolver-se-á mais quando se inicia o processo de verbalização, podemos admitir que este processo será a ponte que ligará aqueles conceitos já internalizados na mente à impressão, à visão de mundo de cada criança.
Através do pensamento sapiriano, podemos afirmar a importância da função atrativa da linguagem, partindo da experiência de cada um, quando ele diz: “a linguagem de uma comunidade dada que fala e pensa nessa língua é o organizador de sua experiência e configura o seu “mundo” e sua “realidade social”graças a essa função.” Cada linguagem contém uma concepção particular sua.
Analisando a evolução do pensamento da criança, observa-se que ela percorre algumas etapas distintas até alcançar um grau de linguagem mais complexo: primeiramente, desenvolve a sua capacidade perceptiva e, num momento posterior, a sua capacidade discriminativa.
Este pensamento corrobora a posição de Staats (1973), quando ele descreve o princípio de abstração e suas etapas percorridas, ou seja, antes de alcançar um grau de maior abstração, a criança passa por três etapas determinadas: a perceptiva, a diferenciativa e a discriminativa. Após passar por essas etapas, a criança atinge um nível de complexidade maior, o qual Staats (opus cit) denomina de abstração ou generalização.
Um exemplo observado em algumas crianças :
               “Suave” representa “liberdade”
Sabendo-se que a criança elabora seus próprios conceitos a partir de sua visão de mundo, e que existem etapas evolutivas dentro de um processo de abstração, podemos afirmar que a criança tem uma clara tendência à generalização de idéias.
Um exemplo realizado pelas crianças:
                “Negro”       >         “preto morte”
                “Suave”       >         “liberdade”
          “avermelhado” > “rosa que parece irmão
                                                 mas não é”

Estudando-se o desenvolvimento cognitivo de crianças até 12 anos, observa-se que existe uma precedência de compreensão de conceitos sobre sua produção, como já foi dito anteriormente. Fato que vem corroborar a posição piagetiana (Piaget, 1986), que defende o ponto de vista da maturação cognitiva da criança como responsável pelo maior ou menor desempenho no processo de compreensão e produção de conceitos, posição esta também seguida por Slobin (1980) e Paula Menyuk (1976).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aquisição da linguagem é um processo lento que segue um nível crescente de complexidade. Não é um desenvolvimento simples, há um aperfeiçoamento, e um consequente aprofundamento mental.
Como vimos, a criança passa por etapas bem definidas até chegar a um nível maior de amadurecimento lingüístico. Através da prática, nas tentativas de erros e acertos, ela alcança o complexo, o abstrato.
A manifestação lingüística da abstração é uma espécie de aprendizagem discriminativa, que exige da criança  o desenvolvimento da função simbólica, e que faz com que ela retenha símbolos ou conceitos que poderão ser chamados a sua mente em sua ausência.
Outro aspecto que deve ser levado em consideração, é o fato de que cada pessoa define de uma maneira diferente uma palavra abstrata, dependendo do ponto de vista de cada uma, da realidade própria e do grau de conhecimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DAY, R.H.  Psicologia da percepção.  2.ed.  Trad.    pelo departamento de Psicologia Educacional, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
      Universidade de São Paulo.  Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.  (Coleção Psicologia Contemporânea).
EVANS, Elder Daniel.  El lenguaje del pre-escolar.  Buenos Aires: Marymar, 1979.
MENYUK, Paula.  Aquisição de desenvolvimento da linguagem.  Trad. Geraldina Porto Witter e Leonor Scliar Cabral.  São Paulo: Pioneira, 1975.
PAULUS, Jean.  A função simbólica e a linguagem.   Trad. Glória Maria Fialho Pondé.  São Paulo: EDUSP, 1975.
PIAGET, Jean.  A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho; imagem e representação.  3.ed.  Trad. Álvaro Cabral e Cristiano Monteiro Oiticica.  Rio de Janeiro: Zahar,1978.
PIAGET, Jean.  A linguagem e o pensamento. 4.ed.  Trad. Manuel Campos.  São Paulo: Martins Fontes, 1986. (Coleção Psicologia e Pedagogia).
SAPIR, Edward.  El lenguaje: introducción al estudio del habla.  3.ed.  Trad. Margit e Antonio Alatorre.  México: Fondo de Cultura Econômica, 1966.
SCHAFF, Adam.  Lenguaje y conocimiento.  Versión al español de Mirela Dofill.  México: Editorial Orijalbo S/A, 1967.
STAATS, Arthur W. & STAATS, Carolyn K. Comportamento humano complexo.  Trad. Carolina Martuscelli Bori.  São Paulo: EDU E EDUSP, 1973.
VYGOTSKY, L. S.  Thought and language.  New York: John Wiley & Sons, 1962.