O ENSINO DE REDAÇÃO, VELHAS ATITUDES E NOVAS PERSPECTIVAS

Norma Braga

Como aluna da Faculdade de Letras da UFRJ participei como bolsista de Iniciação Científica do Projeto “Aplicação Pedagógica da Gramática Textual”, tendo por orientadora Maria Aparecida Lino Pauliukonis. Este projeto, responsável por minha formação em Ensino de Redação, tem como diretriz teórica a linha francesa da Análise do Discurso.
 O principal objetivo do projeto é mudar a concepção ainda generalizada do ensino da língua portuguesa, fundamentado principalmente em regras aplicadas em frases soltas, distante de uma teoria e uma prática que possibilitem ao aluno dominar a leitura e a escrita de textos em sua própria língua.
 Acreditamos, com Guimarães Rosa, que “quem não faz do idioma um espelho de sua personalidade não vive”, ou seja, que o idioma é constitutivo da individualidade e da inserção social do aluno, e que é função da escola lançar os alicerces básicos para essa formação primordial.

O MANUAL DE REDAÇÃO

Tomei contato há pouco tempo com um manual de redação para cartas comerciais, de 1984, que está sendo revisto para utilização em uma faculdade particular, onde é ainda muito requisitado, mesmo em sua antiga forma. Alheio a inovações (aliás não tão recentes) da área, o manual apresenta incon-gruências e até preconceitos. Infelizmente, não pude retê-lo por mais tempo a fim de estudá-lo a fundo (encontra-se esgotado), mas o que apreendi mostrou-se suficiente para perceber que o livreto se perde entre antigas e novas concepções, fracas-sando quando se trata de aplicação didática. Vejamos:
 A estrutura do manual é simples. De forma geral, começa com listas de fórmulas fixas de abertura e fechamento (ex. “venho por meio desta” e “atenciosamente”), passa por algumas regras gramaticais e oferece, no final, outra lista, desta vez de palavras que não podem ser confundidas (como “retificar” e “ratificar”).
O manual entra bastante em contradição. Como propõe que redigir é algo simples, apresenta no primeiro capítulo um bom número de fórmulas fixas; porém, mais adiante, faz a observação de que, hoje, o perfil das cartas comerciais é menos rígido e mais objetivo, cada vez menos dependente de fórmulas, portanto. Para esta abertura maior, não coloca à disposição do aluno nenhum instrumental facilitador.
O mesmo ocorre quando se trata de explicitar regras gramaticais. A obra é pródiga em oferecer regras importantes como a utilização do hífen, mas, quando se trata do processo de escrita em si, não há nada que oriente ou estimule o aluno.
 Outras incongruências são dignas de nota: o manual entra em desacordo quando, na introdução, é dito que com o tempo todos podem aprender a escrever; porém, mais adiante, depois de um “sejamos francos”, há a afirmação categórica de que uns nasceram com o dom de escrever, outros não. Além disso, a obra possui um descompasso com seu tempo: em sua primeira versão, já se encontrava desatualizada, com uma lista de falsos cognatos contendo muitas palavras em desuso, e seus exemplos de cartas comerciais datavam de 1960!
 Em suma, pode-se depreender destas observações que o manual apresenta duas posturas irreconciliáveis: de um lado, vê a aprendizagem da escrita como um processo decorrente do conhecimento de regras, ou seja, baseia-se principalmente em fórmulas de abertura e fechamento, em regras gramaticais e nos falsos cognatos; de outro, dá viva ênfase no livre curso das idéias e na criatividade, mas não oferece solução didática para essa maior liberdade.
 O que chamou a atenção, fundamen-talmente, para nosso estudo foi a relação que pode ser feita entre o manual analisado e o ensino de português ainda hoje em vigor em nossas escolas. Como no livreto, detecta-se no ensino da língua materna uma “esquizofrenia”, que se traduz pela existência de dois campos que, como na doença, não se relacionam entre si: o do ensino de português propriamente dito e o ensino de redação. O primeiro se fundamenta principalmente na apresentação de regras, em que o aluno é um elemento exterior a qualquer vivência textual, ou seja, suas leituras e opiniões não são levadas em conta no processo. Isto resulta em um aprendizado descontextualizado, em que a língua se mostra distante do aluno. Muitos professores não se atualizam, perpetuando fórmulas obsoletas. (Diante desse quadro, não é difícil entender por que os alunos, principalmente os mais jovens, dizem: “Eu odeio português!”) O segundo é predominan-temente anárquico, quando ao aluno é oferecido pouco mais que uma folha em branco e o imperativo: “Escreva!”
 Interessou-nos saber que o manual em questão encontra grande respaldo em sua comunidade. O ensino da língua ainda é envolto em uma aura de normativismo. Um grande exemplo disto é o que em geral se pensa do profissional de Letras, que é sempre o detentor das “regras de ouro” do português, nunca o pesquisador da língua e de seus mecanismos. Creio que em grande parte nós somos responsáveis por modificar essa visão deturpada sobre nossa função social.
 

ANÁLISE DO DISCURSO

Patrick Charaudeau, em sua Grammaire du sens et de l’expression (1992), desenvolve uma teoria que abrange de forma satisfatória os tipos de textos, dispondo-os em três modos de organização do discurso: modos narrativo, descritivo e argumen-tativo.
 No ensino de redação do segundo grau, privilegia-se obviamente o modo argumentativo. Desse enfoque podem se depreender algumas diretrizes úteis para o ensino de redação:
.Entender o que é argumentar oferece uma compreensão global sobre a que está servindo um texto determinado.
.O estudo específico do texto argumentativo, com suas características determinadas, possibilita a apreensão de mecanismos lingüísticos especí-ficos, que oferecem uma base em que o aluno se apoiar, sem podar sua liberdade. Por exemplo, explanação e treino dos conectores de oposição e concessão, causa, finalidade etc.
.As noções de “brainstorming” e “plano” organizam as idéias e solidificam a estrutura do texto, como um esqueleto, antes de passar diretamente à redação, eliminando o “pânico da folha em branco”.
.A noção de “tese do texto” (idéia principal) facilita a argumentação, sendo utilizada didatica-mente como linha-mestra e objetivo da redação. Para o aluno, pode significar a valorização do texto por suas idéias, não só pelo rigor gramatical. (O professor que estimula o aluno a produzir uma idéia principal está interessada no que ele tem a dizer.)
.Listas de palavras só funcionam se houver sua inserção em um contexto: ter contato com exemplos é fundamental - exemplos atuais!
.A explanação de regras é periférica e serve para auxiliar o aluno durante o processo da escrita, e não como base.
 

UMA ÚLTIMA PALAVRA

Talvez não seja exagero sugerir que nós, professores de redação, aproveitássemos melhor a lição que a didática para línguas estrangeiras tem a nos oferecer, quando deixa de constranger o aluno com a primazia das regras e passa a “mergulhá-lo” no ambiente da língua, possibilitando-lhe o contato prazeroso com inúmeras e variadas produções textuais, a partir do qual ele é convidado a produzir, por sua vez, depois de devidamente estimulado. (Para escrever é preciso saber ler, e ler é muito mais que decodificar palavras.) As regras existem para explicitação da prática e são importantes, mas não são capazes, por si só, de efetuar no aluno o domínio da leitura e da escrita. Acreditamos que seja possível, portanto, desnormatizar mais o ensino do português - e, com isto, estaríamos de fato “devolvendo a língua a seu dono”.
 Assim, a linha de aplicação didática da Análise do Discurso prioriza a proficiência em leitura, interpretação e produção de textos sobre a ênfase geralmente adotada, que é a do aprendizado de regras gramaticais aplicadas em frases descon-textualizadas. Desenvolver uma teoria que consi-dere o texto como um todo pode ser uma solução para maior compreensão e maior domínio do idioma, na medida em que oferece ao aluno um aprendizado sólido do uso de ferramentas básicas para a produção de textos - um saber que não desaparecerá com o tempo.