E EM QUE TRECHO DO MAR À LUZ DE CÉU MALDITO ,  DE ARTHUR DE SALLES:  PROCESSOS CRIATIVOS

Rosa Borges Santos Carvalho (UFBA, UNEB)

1. DAS PALAVRAS INICIAIS

Ao contrário daquela noção tradicional de que o texto literário é o resultado de uma simples inspiração, tem-se observado, em linhas gerais, através da prática de estudo com  os manuscritos, que esse texto não nasce pronto, ele é conseqüência do trabalho do poeta que reflete sobre o seu processo de criação em momentos distintos, o da produção e o do texto literário, embora não se lhe possa negar existir “o entusiasmo poético”, isto é, um sentimento, uma idéia, um desígnio.
Toda obra resulta de um embate de forças entre o escritor e a escritura, pois o ato de escrever o poema é o resultado de uma maturação. Trata-se da busca do texto  melhor, quanto às escolhas lexicais, ao ritmo, à versificação, enfim, quanto ao labor estilístico. Arthur de Salles, numa carta ao amigo e também poeta, Durval de Moraes, ao fazer referência a alguns versos de um poema de sua autoria, escreve:
O  tedioso emendar que gela a veia”  no dizer do / nosso Álvares de Azevedo deve ser substituído  pelo/ constante polir que apura a obra cá no meu dizer. Eil-os os exigidos concertos. (...).

Faz-se notar aqui uma das características do processo de criação bastante comum a outros escritores,  a “do constante polir”, ou seja, o autor escreve, corrige, faz supressões, substituições, acrescentamentos , deslocamentos, realiza vários movimentos com a intenção de buscar uma forma ou expressão que melhor  traduza o seu estado de alma. Nesta etapa do trabalho com o texto literário, o poeta almeja o texto “perfeito”, mais elaborado, e, para tanto, exigem-se leituras, releituras e reformulação da linguagem.
 Desse modo, na tentativa de caracterizar, parcialmente,  o processo criativo de Arthur de Salles, se por condensação do texto, se por amálgama de versos, se por reformulação,  se por ampliação, tomou-se o soneto “E em que trecho do mar à luz de céu maldito”   , selecionado dentre os POEMAS DO MAR,  coletânea de versos idealizada pelo poeta,  porém jamais publicada na íntegra.

2. DA ANÁLISE DOS PROCESSOS CRIATIVOS DO POEMA  “E EM QUE TRECHO DO MAR À LUZ DE CÉU MALDITO”

O poema “E em que trecho do mar à luz de céu maldito” não traz título, às vezes, encabeça-lhe  a palavra SONETO. Apresenta-se em  quatro versões : uma autógrafa (0011) e três impressas (I, L, OP), a saber:
 
Versão 0011:
SALLES, Arthur de. [ (E) em que trecho de mar à luz de um céo maldito]. [s.l., s.d.].

Manuscrito autógrafo. Rascunho. Escrito em tinta preta. Papel almaço, medindo 328 mm X 219mm. A mancha escrita mede aproximadamente 206mm X 200mm. Margens superior e esquerda queimadas e rasgadas. Ângulos superior esquerdo e direito queimados e rasgados, rasurando a primeira palavra da L. 1, (E). Desenhos, com sinais arbitrários, entre a sexta e a sétima linhas. Sem título. 20 linhas.   Nas linhas 6, 7, 8, 9, 12 e 19 , o autor risca palavras e até mesmo o verso que tenta escrever.

Versão I:
SALLES, Arthur de. Soneto. O Imparcial, Salvador, 28 mai. 1922, col. 3

Quadro ao fim da página, ocupando quatro colunas: col. 1, foto do poeta; col. 2, Cair das folhas; col. 3, versos do poema Cair das folhas e o poema Soneto; col. 4, A jangada. Traz o título no alto, em maiúsculas, envolvido numa moldura, POEMAS DO MAR. Impressão em preto.  O soneto ocupa as linhas 5-20: L. 5, título, em maiúsculas, sublinhado com dois traços, SONETO; L. 6-13, 15-20, versos; L. 14, linha de pontos.

Versão L:
SALLES, Arthur de.[ E em que trecho do mar à luz de  céu maldito]. A Luva, Bahia,  ano 2,  nº.  43,  31 dez.1926.

O poema acha-se envolvido numa moldura. Adornos nas bordas superior e inferior, em torno do título da coluna e do nome do autor. 16 linhas: L. 1, traz, no ângulo superior esquerdo, destacando as iniciais maiúsculas, Dos Poemas do Mar ; L. 2-15, versos; L. 16, na margem inferior, avançando para a direita, o nome do poeta todo em maiúsculas, ARTHUR DE SALLES.
 

Versão OP:
SALES, Artur de. Soneto. IN: SECRETARIA de Educação e Cultura. Obra Poética de Artur de Sales. Salvador: Mensageiro da Fé, 1973.p. 274.

Impresso em preto. 14 versos, iniciados com maiúsculas, distribuídos em uma página, com 16 linhas: L. 1, o título, SONETO, alinhado à esquerda; L. 2- 9, 11-16,  versos; L. 10, linha de pontos.
 

Da comparação entre as versões, verificaram-se três momentos de criação, consubstanciados em três das versões do poema, uma autógrafa e duas impressas, excluindo-se a versão OP, por se tratar de cópia de I, feita a atualização ortográfica.
Dentre as versões encontradas, até a presente data, apenas uma, a autógrafa, documenta as dúvidas e hesitações do autor na hora de escrever seu texto. Notam-se, portanto, dois momentos genéticos, sobrepostos e interligados,  de intervenção autógrafa:  momento 1,  aquele do texto de base;  o momento 2,  marcado por substituições e supressões, saindo dele o momento 2a , que seria o resultado das correções feitas. Na verdade, tratam-se de correções feitas em um só fluxo de escrita, seguido de leituras marcadas por alterações, o que revela a busca de outras formas de expressão ou de reelaboração da linguagem. Quanto às correções, apresentam-se os seguintes tipos :

1. Supressão

1. (E) em que trecho de mar  <so> á luz de um céo maldito
 (V. 1)

2. < Em que praia rolam > (L. 6)

3. De que trecho de mar, < subiu, tremendo e >    (V. 6, L. 7)
4. Em < †>   (L. 8)
5. Entre a < †>  (L.9)
6. < Para os astros> (V.7, L. 12)

7.< Na primeira canção na alma >  (V. 14, L. 19)

2. Substituição por sobreposição

1. A procella enterrou o tenebroso co <p>/v\eiro (V.2)
2. <†>/P\ara os a(s)tros (V. 6, L.10)

3. Substituição por riscado e acrescentamento na margem direita

1. Mar verde. Ceo azul. Azas brancas <ruflando>
[? v (i)bram]    (V.10, L. 15)
 
4. Substituição por riscado e acrescentamento na entrelinha inferior /  supressão

1. De que trecho de mar, 1 < subiu,  tremendo e >  2 [ ?  <de cima (?) do † >]   (V. 6, L.7)

5. Passagem dubitada

1. E que  escolho traidor de asperrimo granito   ( V.4)

 Tomando-se as versões 0011 e L, verifica-se ser a primeira um rascunho que assim se define pelas características que apresenta: tentativa do autor de escrever alguns versos (V. 6, 7, 10, 14),  a  pontuação descuidada,  a velocidade da escrita, que pode ser detectada na grafia das palavras com um traçado bastante irregular, faltando determinadas letras, etc.; a segunda, a versão L, é o registro de uma fase genética não documentada, apenas aqui estabelecida como hipótese, (Ms?), pois o impresso L é o resultado de um texto recopiado, ou seja, de uma versão passada a limpo da versão 0011. As marcas que conduzem à intervenção do autor são, em sua maioria, relacionadas à pontuação (cf. V. 2, 3, 6, 12, 14), e outras, referentes ao acréscimo do artigo, da preposição em, à substituição do gerúndio pelo particípio, à pluralização de um sintagma nominal, enfim, são alterações de cunho estilístico. Comparem-se as lições, em destaque, do manuscrito 0011 (s.d.) com aquelas do impresso L (1926):

V. 1 de mar  / de um céo    do mar / do céo    (a)
V. 4  E que escolho     E em que escolho    (b)
V. 10 Azas brancas <ruflando> v(i)bram (?)
Azas brancas ruflantes     (c)
V. 11  Vela branca ruflando. Eis – que
Velas brancas ruflando. Eil-a que  (d)
V.14 <Na primeira canção na alma>
Em tristonha canção, na alma dos
Em tristonha canção, na deusa dos
mareantes  mareantes      mareantes?!..    (e)

Em (a), verifica-se, a partir das variantes de mar e do mar, uma generalização do sujeito, no primeiro caso, enquanto, no segundo, há uma delimitação do sujeito que é especificado pelo uso do artigo contracto à preposição de. Em (b),  o acréscimo da preposição em dá a idéia de lugar, tem valor circunstancial, o lugar onde teria a nave sido desfeita.  Em (c), ruflando,  forma verbal no gerúndio, que expressa o processo verbal em curso, foi substituído por ruflantes, particípio do verbo ruflar, que, neste contexto,  exerce a função de adjetivo, concordando, por isso, com asas, feminino, plural: “Azas brancas ruflantes”. Em (d), verifica-se uma correção quanto ao número: Vela branca por Velas brancas, talvez por uma questão de sonoridade, oferecendo melhor ritmo ao verso. Em (e), parece que a lição deusa, empregada no último verso, deve-se a uma má leitura de  alma, constante da versão manuscrita: “Em tristonha canção, na alma dos mareantes” e  não “na deusa dos mareantes”.
Da comparação entre as versões 0011 e L, pode notar-se que a principal conseqüência das correções feitas ao texto é a condensação do texto, que se verifica sobretudo pelas supressões e substituições constantes da primeira versão.  A primeira versão constava de 20 linhas, reduzindo-se a 14 linhas, correspondentes aos versos de L.

Estabelecendo-se o confronto entre as versões 0011 e I, observa-se que a parte corrigida pode ser retomada pelo autor em outros momentos da criação:  [E ] em que trecho de mar <so> à luz de um céo maldito (0011, V.1) / Em que trecho de mar, sob que céo maldito, (I, V.1); (...) naufrago primeiro?.. (0011, V. 3) / (... ) naufrago primeiro?!  (I, V. 3), resgata, parcialmente, a interrogativa. Em que praia (...) (0011, V. 6)  /  Em que plaga (...) (I, V.6), lição recusada no manuscrito, mas retomada, em parte,  pela versão I.
De L para I, nota-se uma fase genética importante,  que resulta de campanhas de correções significativas, porém não se tem o autógrafo que lhe servira de base, aqui estabelecido como uma hipótese, (Ms?), que teria sido a fonte da versão impressa I. Tomando-se as versões L e I, verificam-se ainda  outros processos importantes na criação poética que são a reformulação do texto, preservando-se a mesma idéia, e a amálgama de versos. Os versos 6, 7 e 8, da versão I, equivalem aos versos 12, 13 e 14, de L, fazendo-se os ajustes conforme o esquema métrico. O poeta retoma as segunda e quarta estrofes, e as reformula, fazendo as adaptações:

4ª estrofe de L (V. 12-14)
E nessa vastidão, onde, ao luar magoado,
A saudade afflorou como um lyrio orvalhado
Em tristonha canção na deusa dos mareantes?...
 

2ª estrofe de I (V. 6-8)
Em que plaga remota ao luar magoado e afflicto,
A saudade afflorou, como um lyrio bemdito,
Em tristonhas canções na alma do marinheiro?!...

Os versos finais, 12, 13 e 14, das versões I e L, apresentam equivalência de conteúdo, porém foram  reformulados.  Comparem-se estes versos:
 
 

Versão L (V. 12-14)
E  nessa vastidão, onde, ao luar magoado,
A saudade afflorou como um lyrio orvalhado
Em tristonha canção na deusa dos mareantes?...

Versão I (V. 12-14)
Lá fóra. Fulge o luar,  desabrocham as magoas:
Na asa da barcarolla a alma dos mareantes
Vae gemendo atravez desse infinito de aguas.

Notam-se ainda as seguintes alterações: a eliminação da conjunção E, nos versos 1 e 4, refutado talvez por tratar-se de uma traço mais popular da língua, característico da narração de fatos ou ainda por questão de ritmo: E em que trecho do mar á luz do ceo maldito (L, V. 1) / Em que trecho de mar, sob que céo maldito, (I, V.1)  E em que escolho traidor de asperrimo granito (L, V. 4) / Em que escolho traidor, de asperrimo granito, (I, V.4);  a substituição de uma forma menos culta, da língua espontânea,  por outra mais erudita (em outros documentos manuscritos o poeta deixa clara a utilização desse recurso em que o substituto é  mais erudito que o substituído): Desfeita a nave o bojo espedaçara inteiro... (L, V.5) / Incauta  nave o bojo espedaçara inteiro?!...  (I, V. 5) ; De que trecho de mar, subiu tremendo e afflicto, (L, V. 6) /  Em que plaga remota ao luar magoado e afflicto,   (I, V. 6). Desfeita é substituída por incauta  e trecho de mar por plaga.
A pontuação da versão  I é, sem dúvida, a mais expressiva. Comparem-se os versos:
E em que trecho  do mar á luz de ceo maldito  (L, V. 1)
Em que trecho de mar, sob que céo maldito,   (I, V. 1)
O primeiro baixel e o naufrago primeiro.    (L, V. 3)
O primeiro baixel e o naufrago primeiro ?! (I, V. 3)

E em que escolho traidor de asperrimo granito  (L, V. 4)
Em que escolho traidor, de asperrimo granito,  (I, V. 4)

Desfeita a nave o bojo espedaçara inteiro...   (L,V. 5)
Incauta a nave o bojo espedaçara inteiro?!... (I, V. 5)

3ª estrofe de L
Tarde de elysea graça. A campanha se apresta.
Mar verde. Céo azul. Azas brancas ruflantes.
Velas brancas ruflando. Eil-a que parte lesta.

3a estrofe de I
Tarde de elysia graça. A campanha se apresta,
Mar verde, céo azul, asas brancas ruflantes,
Velas brancas ruflando... Eil-a que parte lesta...

Do exposto, o estema que melhor representa as relações entre as versões, aqui analisadas,  é:

O
Ms 0011   (Ms?)

         (Ms?)           I (1922)

       L (1926)

De volta às palavras iniciais, ressalte-se outro momento importante no processo de criação, embora de forma breve, aquele da produção, ou seja, o autor busca informações sobre o que pretende desenvolver, faz anotações e leituras acerca da literatura existente sobre o assunto, seja ela literária ou informativa, entre outros recursos utilizados. Neste caso, em particular, no que diz respeito aos caminhos da criação percorridos pelo poeta na elaboração deste soneto, é possível mostrar como trabalha o Arthur de Salles na construção do texto poético, como define o seu estilo, como representa a nossa literatura, a partir de informações retiradas das cartas, dos discursos e anotações. No espólio do poeta depositado no Acervo do Setor de Filologia Românica da Universidade Federal da Bahia, encontra-se um texto em  prosa, no qual se faz remissão a Baudelaire, a Byron, e ainda desenvolve uma reflexão sobre o mar e suas diferentes facetas. No final deste texto, ele afirma terem aqueles pensamentos ali expressos inspirados os versos do soneto “Em que trecho de mar...”. O texto em prosa acha-se escrito em tinta preta, porém a observação, feita provavelmente em outro momento, vem em tinta azul. Confira:

(...)
3

Seu navio é um misero pedaço de madeira toscamente /  escavado, miserrímo indíbio da onda. Elle vae  /  apegado à costa, timido, covarde, estremecendo a um sola- / vanco mais forte. E vae. E como as vagas que tumultuam  / em roda, a vontade e o heroísmo vão lhe dando azas, / espalhando-lhe na alma a febre de domínio, as sanhas / da rebeldia e do orgulho e a força das esperanças / indepediveis (?). Depois  <o navio †> o barco muda / de forma, alarga o bojo, multiplica as velas  e ho- /  mem, (?) senhor do espaço, com as cem azas da coragem / ruflando nalma, vae vendo rebentarem / na proa a flor das ilhas, a brancura das costas / o mysterio dos continentes. Novos céos.(sic) novas gentes. / Como contar essas primeiras tentativas, essas primei- / ras aventuras(sic) esses primeiros contactos do homem / com o oceano. Em que mar alvoreceu a primei- / ra vela? Em que costa do mundo vieram bater / o corpo do primeiro nauta e os pedaços do primeiro / navio naufragado?. Estes pensamentos geraram /  este soneto.
 Em que trecho de mar   (acrescentado pelo poeta em tinta azul)
 

3 DAS PALAVRAS FINAIS

Da breve análise do poema “E em que trecho do mar á luz de céu maldito”, poder-se-ia concluir que, como se comporta todo o poeta, o Arthur de Salles busca um texto mais elaborado, propósito que se evidencia nas marcas deixadas em seu texto.  A partir dessas marcas, procurar-se-á fazer uma matriz estilística para caracterizar a construção do discurso poético salleseano. Neste momento, afirma-se apenas que os processos criativos encontrados foram os de condensação, reformulação e amálgama de versos, que as alterações mais freqüentes foram aquelas referentes às supressões e substituições, e que o poeta pesquisa sobre o tema que deseja desenvolver.