ESTUDO DE EXPRESSÕES
COM AS PALAVRAS “CABEÇA”  E  “BOCA”

Letícia Miranda Medeiros (UERJ)
Lígia Moraes de Matos(UERJ)

INTRODUÇÃO
 A idéia deste trabalho surgiu de muitas observações em nosso cotidiano, uma variedade de expressões que eram criadas a partir de um objeto ou uma coisa. Percebemos que algumas dessas expressões já existiam bastante tempo, e eram facilmente encontradas em  nossa Literatura.
 Resolvemos, então, investigar a pluralidade de significados das palavras “cabeça” e  “boca”  dentro das expressões mais usadas pelo povo brasileiro.
 Sabemos que este assunto que abordaremos não se conclui, dada a sua vasta riqueza de possibilidades de outros estudos, mas é o início para que futuras e mais ricas pesquisas sejam feitas.
 Aos interessados, este primeiro degrau!

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
A corrente lingüística Palavras e Coisas foi criada pelo indo-europeísta Rudolf Meringer e por Hugo Schudardt. Consiste no estudo das palavras com base em seu real significado e sentido (que muitas vezes se encontra na história do vocábulo e não em sua etimologia) e também no minucioso estudo das coisas: sua história, proveniência e evolução.
 Concordamos com Schuchardt quando este considerava Coisas e Palavras, Sachen und Wörter, pois para ele a coisa se antecipava a ela, a palavra dependia disto para existir.
 A finalidade desta corrente é de elevar o aspecto semântico como aspecto principal na vida da linguagem através do estudo das coisas.
 Podemos ver praticamente em todos os problemas etimológicos que significado e COISA se correspondem, mas é preciso que se compreenda que  COISA tem um sentido muito mais amplo.
 Segundo SCHUCHARDT,  “...a coisa se refere tanto a acontecimentos e estados como a objetos, ao sensível como ao insensível, ao real como do irreal.”
 A SACHEN para Schuchardt existe inclusive por si só, é completa, independe do Wörter para sobreviver, por outro lado, a palavra precisa da coisa, não vive sem ela. Por isso, ao contrário de Meringer, ele prefere a denominação Sachen und Wörter. Os dois termos não são conceitos independentes, uma vez que existe uma íntima relação entre si. O estudo das coisas deve completar de forma mútua o estudo das palavras.

AS EXPRESSÕES COM AS PALAVRAS “CABEÇA”  E  “BOCA”
 Antes de iniciar a parte culminante que é a análise das expressões faz-se necessário entender a semântica, já que se trata da palavra contextualizada e seus significados.
 Segundo Luiz Antônio Sacconi, “a semântica é o estudo da significação que, por sua vez, pode apresentar um aspecto denotativo e um aspecto conotativo ”.
 Levando em conta que uma palavra pode apresentar, dependendo do contexto, propriedades denotativas e conotativas, analisaremos, logo adiante, algumas das muitas expressões com as palavras “cabeça” do latim vulgar Capítia (class. Cápitem) cujo sentido figurado de acordo com o Dicionário Escolar Latino Português, de Ernesto Faria, significa: parte superior, extremidade (de um objeto), ponta; fonte, origem, ponto de partida; pessoa principal, chefe; o essencial, a parte principal (falando de coisas); capital (de cidade).
 E a palavra “boca” do latim Bucca que de acordo com o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, do Aurélio Buarque tem o sentido, além do principal, de entrada, princípio. Logo, estas palavras  “cabeça” e “boca”  quando contextualizadas, podem perder ou não, seus valores significativos básicos.
 Recorremos ao Dicionário de Símbolos e notamos que muitas expressões seguem a linha de alguns significados lá encontrados, como cabeça: “que geralmente simboliza o ardor do princípio ativo, que é uma manifestação de matéria; devido a sua forma esférica,  a cabeça humana é comparável segundo Platão a um universo.”
E em relação a “boca” o dicionário de Símbolos traz o seguinte significado:
 abertura por onde passam o sopro, a palavra e o alimento, a boca é o símbolo da força criadora e, muito particularmente, da insuflação da alma. Órgão da palavra (verbum, logos) e do sopro (spiritus), ela simboliza também um grau elevado de consciência, uma capacidade organizadora, através da razão. Esse aspecto positivo, porém, como todo símbolo tem um reverso. A força capaz de construir, de animar (i.e., da alma ou vida), de ordenar, de elevar, é igualmente capaz de destruir, de matar, de confundir, de rebaixar: a boca derruba tão depressa quanto edifica seu castelos de palavras.
 Tal como temos dito, este trabalho tem por objetivo tratar de expressões utilizadas cotidianamente tanto na língua falada quanto na escrita. Essas expressões são várias, porém estamos nos dedicando àquelas em que aparecem os termos “cabeça” e “boca”.
No trecho: “Não repare nas minhas tolices. Estou hoje sem cabeça” encontramos a  expressão estar sem cabeça. Não significa, é claro que uma pessoa está sem a parte superior que fica acima do pescoço, e sim, que está sem vigor para fazer qualquer coisa. O cérebro fica na cabeça, portanto, estar sem cabeça quer dizer não se achar em condições de pensar, raciocinar.
 Em “Hoje em dia não se guarda mais na cabeça”. Guardar equivaleria a armazenar. É notório que não é possível guardar, armazenar coisas, objetos dentro da cabeça. Guardar na cabeça, neste caso, tem o sentido de guardar de cabeça; conservar na memória, não objetos e sim informações.
 No trecho “...lhe garanto que melhora, que levanta a cabeça”. Levantar a cabeça aqui não tem sentido real, do movimento da cabeça para cima, significando sim melhorar de situação. Restabelecer-se; recuperar-se moralmente; conseguir independência financeira, política, profissional etc.
Tendo dito isso podemos entrar em expressões como cabeça fora do lugar que assim como tantas outras necessitam estar contextualizadas, o que aliás já foi dito neste trabalho. Tomemos o trecho: “um padre  tão bom, ficar de repente assim, com a cabeça fora do lugar...”, cabeça fora do lugar poderia ser interpretada ao pé-da-letra como pessoa ou objeto sem a cabeça propriamente dita, no entanto, dentro de determinado contexto ela é entendida como: pessoa desorientada, amalucada, desequilibrada, sem tino.
Outra expressão muita usada no dia a dia pelo povo brasileiro é a que diz respeito a andar de cabeça  virada que quer dizer não que uma pessoa possua algum problema no pescoço como, por exemplo, torcicolo, mas sim, que esta pessoa está presa por paixão, obsessão, idéias extravagantes, ou vício incontrolado; pode-se dizer também de uma pessoa doidivanas.
Temos no nosso falar diário uma expressão muito usada que é botar na cabeça. Se fôssemos procurar o sentido sem contexto iríamos dizer que uma pessoa teve sua cabeça aberta por alguém ou abriu-a por si só, e que algo foi posto no seu interior. Contudo o Dicionário Brasileiro de Fraseologia pelo qual estamos nos norteando diz que botar na cabeça significa dizer: fazer o propósito; tomar uma decisão.
 Temos no presente momento do país o exemplo claro de alguém que está sempre perdendo a cabeça, o jogador de futebol do time da Fiorentina, Edmundo; ele se deixa arrebatar até a prática de atos impensados, não sabe controlar-se que é exatamente o que o Dicionário nos diz sobre a expressão perder a cabeça.
No trecho: “Subindo para cabeça da ladeira...” encontramos a expressão cabeça da ladeira, é óbvio que a ladeira não tem cabeça, mas por ser a cabeça o órgão que fica no local mais “alto” de nosso corpo, se faz uma analogia com o vértice da ladeira. Ao invés de chamar de vértice, resolveu-se nomear de cabeça, até mesmo por uma forma de chamar mais atenção do ouvinte ou leitor.
 No trecho: “Eu tenho uma cabeça muito dura e acho difícil aprender”, encontramos a expressão cabeça dura. Recorrendo ao Dicionário Aurélio, vemos que a palavra “dura” significa algo que não é tenro. O “duro” é algo que é difícil de ser penetrado. Com isso, fazendo uma analogia com a expressão acima, concluimos que ela significa uma pessoa que tem dificuldade de aprender, de assimilar conhecimentos.
 No trecho: “... matreiramente inventada pelo “cabeça-chata” encontramos a expressão cabeça-chata. Esta  expressão é um apodo aplicado pelo sulistas aos nordestinos, ou seja, um apelido, em geral, depreciativo alusivo à peculariedade física ou moral.
 A expressão tirar da cabeça , dependendo do contexto, poderá ser, por exemplo, tirar o chapéu da cabeça, mas na verdade, equivale  a fazer esquecer, dissuadir, fazer desistir; desistir do intento.
 No trecho: “Se as meninas já estariam naquela boca de trapo, estariam por certo na boca do mundo”, encontramos a expressão “boca de trapo”. É claro que a expressão acima não indica que seja uma boca de pano, de farrapo, mas sim que as meninas eram pessoas maledicentes. Recorrendo ao Dicionário de Fraseologia são pessoas que têm má língua, difamadoras, que gostam de criticar outrem.
 No trecho: “Aprendera da mundica, rameira de boca suja”, encontramos a expressão “boca suja”, é claro que não significa que a boca esteja literalmente suja. A palavra “suja”, segundo o dicionário Aurélio é algo com falta de limpeza; emporcalhado, indecente, sórdido. Fazendo uma analogia da palavra “suja” com a expressão acima chegamos a conclusão de que seja alguém que fale indecências, pornografias.
 No trecho: “Mas, quando foi lá pela boquinha da noite, a desgraça aconteceu”, encontramos a expressão  boquinha da noite, é óbvio que noite não possui boca. Neste caso “boca” equivale ao início da noite. Esta expressão portanto, quer dizer que a noite está começando.
 Na frase : “ ... Se algum dia te volto a apanhar com a boca na botija ...” (Tomás de Figueiredo, Nó Cego), encontramos a expressão com  a boca na botija. Segundo o dicionário Aurélio a palavra botija é um vaso cilíndrico, de boca estreita, gargalo curto e pequena asa. Porém, a expressão acima quer enfatizar alguém pegado no flagrante e não uma pessoa que esteja com a boca no objeto chamado botija.
 “Bater boca”  é uma expressão muita usada pelo povo brasileiro. Sabendo que a boca é a abertura por onde passam também as palavras , a expressão bater boca significa portanto ir contra as palavras, opiniões de outra pessoa. Portanto, de acordo com o Dicionário Brasileiro de Fraseologia,  significa discutir, teimar, trocar impropérios.
 A expressão botar a boca no mundo  tem um sentido figurado, conotativo muito forte. Não quer dizer que alguém irá colocar a boca (literalmente) no mundo inteiro. Podemos analisá-la como alguém que faz gritaria, produz alarido, propaga boato ou mentira, reclama. Portanto, da mesma forma, é usar as palavras para propagar uma mensagem.
 Já a expressão, que é muita usada pelo povo, andar de boca em boca significa ser difamado, falado, censurado, comentado; portanto esta expressão tem a conotação de divulgar palavras, mensagens.

CONCLUSÃO
 Tendo em vista que este trabalho pretendia um maior esclarecimento dos significados de expressões com as palavras cabeça e boca , consideramos tê-lo feito de maneira que um leigo ou um estudioso da área possa compreender com facilidade as diferenças existentes entre uma palavra descontextualizada e a mesma inserida em um determinado contexto.
 Tivemos como base de consulta o Dicionário Brasileiro de Fraseologia (ainda não concluído) cujas expressões foram utilizadas no presente trabalho; podemos, então, dar maior flexibilidade aos termos, a partir do momento em que este Dicionário nos deu uma larga abrangência com relação aos usos e aos significados com as quais desejávamos trabalhar.
 Apesar de termos baseado este trabalho a partir do já mencionado Dicionário, fizemos questão de expor com palavras nossas as explicações sobre termos citados e ainda as diferenciações semânticas imprescindíveis para uma perfeita compreensão das expressões analisadas.
 Sendo assim, esperamos ter alcançado o principal objetivo deste trabalho o de dar maior clareza a expressões que habitualmente confundem tanto a leitores comuns quanto a estudiosos da Língua.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHEVALIER, Jean  &  GHEERLIRANT, Alain. Dicionário de Símbolos.11.º edição; São Paulo: José Olympio, 1977.
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FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar Latino Português. 6.º edição; Rio de Janeiro: FAE, 1991.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1.º edição; Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
FOCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas (Uma arqueologia das Ciências Humanas). São Paulo: Martins Fontes.
MIAZZI, Maria Luísa Fernandez. Introdução à Linguística Românica. São Paulo: Cutrix, 1972.
SACONI, Luiz Antônio. Nossa Gramática: teoria e prática.  8.ª edição. São   Paulo: Atual, 1986.
VIDOS, Benedek Elemer. Manual de Lingüística Românica. (tradução: José Pereira da Silva, com revisão técnica de Evanildo Bechara). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.