METAMORFOSES TEXTUAIS

Wellington de Almeida Santos (UFRJ)

O presente trabalho formula-se como exercício crítico da vontade autoral, através do exame comparativo de duas obras literárias.
Realizamos um estudo de confronto entre diferentes versões dos se-guintes textos:
a - Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos: primeira e quarta edi-ções (1938 e 1953, respectivamente), citadas, neste trabalho, como A e B, seguidas da paginação correspondente, quando houver transcrição de tre-chos;
b -“Teleco, o coelhinho”, de Murilo Rubião, conforme aparece em O dragão e outros contos (1965) e em O pirotécnico Zacarias (8a. ed., 1981).
As primeira e quarta edições de Vidas secas, de Graciliano Ramos, apresentam diferenças textuais pouco relevantes entre si.
As modificações introduzidas na quarta edição tiveram por objetivo aperfeiçoar o discurso narrativo, sob o aspecto estilístico. O autor reelabo-rou o texto para alcançar o máximo de expressividade, com o mínimo de re-cursos lingüísticos.
A essência do conteúdo narrativo permaneceu inalterada, demons-trando que o perfeccionismo estético-literário foi o objetivo maior de Gra-ciliano Ramos. A maioria das correções ou alterações foi ocasionada pela necessidade de conferir harmonia ao estilo.
O confronto entre as edições A e B, mesmo sem comentários de maior fôlego, evidencia o nível das transformações textuais.
Basicamente, as alterações são de dois tipos:

1 - seleção vocabular:
“o odor forte do chiqueiro” (A, 134);
“o fartum do chiqueiro”(B, 108).
O termo “fartum” sugere melhor que “odor forte” a ambientação naturalista em que vivem os personagens.
“Uma porção de látegos” (A, 153);
“muitos látegos” (B, 123).
O emprego do pronome indefinido “muitos” indica a opção do autor pela expressão mais breve, em perfeita harmonia com a secura da paisagem física e o carácter lacônico da comunicação entre os personagens.
De solução semelhante é a supressão de palavra em “chegara com o talão de recibos” (A,, 143), resultando em “chegara com o recibo” (B, 115).
Outras vezes, ocorre a mudança para uniformizar o uso de um termo. É o que acontece , em geral, com a substituição de uma palavra de signifi-cação genérica por outra de sentido mais restrito, fenômeno recorrente na revisão. Exemplo:
“Mas o sujeito da prefeitura” (A, 143) em que o termo “sujeito” é trocado por “cobrador”: “Mas o cobrador da prefeitura” (B, 115).
Confirmando a hipótese de instabilidade estilística na opção inicial por “sujeito”, verifica-se que, pouco adiante, os dois textos usam o mesmo termo, “cobrador” (A, 144 e B, 116, respectivamente).

2 - Plano morfo-sintático:
O caso mais comum é a troca da forma contracta preposição mais artigo, pela forma desenvolvida, com a separação das partículas. Exemplo:
“lombo dum cavalo” (A, 148);
“lombo de um cavalo” (B, 119).
No sintagma “um bruto”, usado freqüentemente em A para indicar o grau de semelhança entre o comportamento de Fabiano e o dos animais, su-primiu-se o artigo indefinido. Preferiu-se, em B, o adjetivo “bruto”, para in-dicar que a animalidade observada no personagem era adquirida, accessória, de origem cultural, e não própria de sua condição humana, natural, no senti-do biológico da palavra. Exemplo:
“Ele era um bruto, sim senhor” (A, 141).
“Ele era bruto, sim senhor” (B, 114).
Aliás, esta sugestão já está presente em A, quando o narrador, após usar várias vezes a expressão “um bruto”, no mesmo capítulo, encerra a se-qüência grafando “bruto”, sem o artigo.
Bastante comum também é a troca de substantivos determinados por substantivos indeterminados. Neste caso, suprime-se o artigo definido, como se observa em “arranjar a carta” (A, 141), com modificação para “ar-ranjar carta” (B, 114).
Outra modificação regular é o uso do plural onde era singular: “ter recursos” (A, 147/148) e “ter recurso” (B, 119).
Mais raramente, ocorrem correções gramaticais de tipo gráfico ou flexional:
a - correção de grafia - na primeira edição, serviu-se da forma “aiol” (A, 153), termo regional não autorizado pelo dicionário, mudado para “aió”, termo dicionarizado que significa “bolsa de caça feita de fibras de caroá” (B, 123), na quarta edição;
b - flexão de gênero - embora equivocadamente, trocou o gênero da palavra “quipá”, que significa “vegetação nordestina, espécie de cardo ras-teiro” (A, 153). Na primeira edição, está determinada, com acerto, pelo arti-go masculino. Na quarta edição, determinou-a no feminino.
Em síntese, as duas versões de Vidas secas apresentam modificações irrelevantes, no plano literário. As alterações são mais pertinentes no as-pecto lingüístico, propriamente dito.
Ao contrário do que acontece em Graciliano Ramos, a revisão de textos em Murilo Rubião altera substancialmente o discurso narrativo.
Obcecado pelo perfeccionismo expressional, Murilo Rubião prati-camente escreve outro texto, tal o número e a profundidade das alterações que introduz no tecido narrativo.
Para ilustrar o processo muriliano, é suficiente confrontar duas ver-sões do conto “Teleco, o coelhinho”, tal como aparecem em Os dragões e outros contos (1965) e em O pirotécnico Zacarias (8ª ed., 1981), por ser, entre inúmeros outros textos do autor mineiro, aquele que, possivelmente, sofreu transformações mais numerosas e mais radicais. Desenvolvido em cerca de seis páginas e meia, “Teleco, o coelhinho” (8ª., 1981) apresenta mais de sessenta correções, de vária ordem e natureza.
Para facilitar a transcrição de trechos, serão usadas as siglas DOC (edição de 1965) e PZ (edição de 1981), seguidas dos números das páginas correspondentes.
Via de regra, as transformações textuais abrangem cinco tipos.

1 - Supressão - retirada de trechos, expressões ou palavras que tor-nam o discurso explícito demais, em situações onde a ambigüidade seria de-sejável. Neste caso, a intervenção do narrador é posta em evidência e seu comentário pode ser considerado impertinente ou, caso mais comum, re-dundante. É o que acontece no trecho a seguir, completamente suprimido em PZ:
“Mas eu, cujo temperamento não era dos melhores, tudo aceitava, aparentando uma humildade que jamais possuía” (DOC, 26).
As informações nele presentes são dispensáveis por serem referentes a características do protagonista, já sugeridas em oportunidades anteriores, com relativa freqüência.
Em outras ocasiões, a supressão é apenas parcial:
“Não esperou pela resposta e prosseguiu:” (DOC, 22);
“Não esperou pela resposta:” (PZ, 22).

2 - Acréscimo - tipo de alteração rara no texto:
“- Sou o Teleco - afirmou” (DOC, 29);
“- Sou o Teleco, seu amigo - afirmou” (PZ, 26).

3 - Inversão - a mudança de ordem na seqüência do discurso frasal valoriza a expressividade lingüística ou privilegia o elemento colocado em primeiro lugar. A ênfase posta na mudança indica que há uma hierarquia de valores a ser observada e não simplesmente uma sucessão aleatória de in-formações. Comparem-se:
“Foi nesse momento que reparei nos seus olhos. Olhos tristes e man-sos” (DOC, 21).
“Foi nesse momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes” (PZ, 22).
Por vezes, a inversão é acompanhada pela substituição formal de um dos sintagmas, para acompanhar o impacto causado pela nova ordem. No exemplo abaixo, optou-se por apresentar a conseqüência antes da causa, es-pécie de auge emocional em sua extrema dramatização:
“Alterado pela cólera, explodi” (DOC, 25).
“Explodi, encolerizado” (PZ, 24).
A forma “encolerizado”, alem de ser semanticamente mais eficaz, no contexto narrativo, tem a vantagem da contundência, pela abreviação.
Ou este outro exemplo, mais convencional, em termos de simples in-versão, sem alterar qualquer elemento:
“As lágrimas desceram-lhe pelo rosto(...)” (DOC, 25).
“Desceram-lhe as lágrimas pelo rosto (...)” (PZ, 24).

4 - Substituição - troca de palavras, frases ou expresões ou, até, a reelaboração integral de uma passagem.
A substituição “corrige” aspectos semânticos, às vezes bastante sutis, de informação estética.  É o tipo de alteração mais freqüente, no texto. Exemplos:
“Assustava-os mais para nos divertir que por ódio ou vingança” (DOC, 22).
“Assustava-os mais para nos divertir que por maldade” (PZ, 22).
Ou, ainda:
“Acordei-o com um safanão:” (DOC, 25).
“Acordei-o, puxando-o pelos braços:” (PZ, 24).
A palavra “safanão” tanto pode significar “bofetada” quanto “pu-xão”.  O autor, com a substituição, indicou claramente que o personagem-narrador, apesar de tenso, ainda conseguia controlar seus impulsos agressi-vos.
Na seqüência da cena, não é mais possível ao personagem-narrador disfarçar sua raiva quanto ao comportamento de Teleco. Aí, então, a expres-são atenuada ou eufemística é incompatível com a agressividade das situa-ções ou o carácter dos personagens. A mudança evidencia esse aspecto da narrativa, como no seguinte passo:
“Por outro lado a sua figura tosca não provocava nenhuma simpatia” (DOC, 26).
“Também a sua figura tosca me repugnava” (PZ, 25).

5 - Atualização da linguagem - às vezes, o trecho é flagrantemente datado, pela utilização de palavras ou expressões de circulação momentânea ou epocal, não só as de cunho popular, mas, inclusive, os termos eruditos, característicos, via de regra, de ranço literário, pelo rebuscamento estilísti-co. Na segunda versão aqui estudada, o texto está mais enxuto e mais in-temporal. Exemplo:
“Abriu os olhos, assustado, mas, ao reconhecer-me, estendeu um sor-riso melífluo:” (DOC, 25).
“Abriu os olhos, assustado, mas, ao reconhecer-me, sorriu:” (PZ, 24).
Concluindo, podemos afirmar que as transformações textuais verifi-cadas na quarta edição de Vidas secas (1953), de Graciliano Ramos, e na edição da Ática (1981), de “Teleco, o coelhinho”, de Murilo Rubião, alcan-çam diferentes fins, quando comparadas entre si.
No texto de Graciliano Ramos, as mudanças tiveram por objetivo, basicamente, a atualização estilística do discurso narrativo, não comprome-tendo drasticamente a matéria narrada.
Ao contrário, em Murilo Rubião, constata-se que, além da busca de aperfeiçoamento estilístico (meta idêntica à de Graciliano Ramos), houve uma autêntica metamorfose do conteúdo narrativo. O confronto das duas versões de “Teleco, o coelhinho” evidencia que se trata, na verdade, de dois textos inteiramente diferentes. O texto mais recente tornou-se mais “literá-rio”, por alcançar maior densidade narrativa, graças ao alto grau de ambi-güidade artística nele existente.
O próprio autor, em entrevista, esclareceu que o ato de escrever e reler o escrito torna-se uma constante agonia para o escritor torturado pela busca de perfeição artística:
Sempre aceitei a literatura como uma maldição. Poucos momentos de real satisfação ela me deu. Somente quando estou criando uma história sinto prazer. Depois é essa tremenda luta com a palavra, é revirar o texto, elaborar e reelaborar, ir para frente, voltar. Rasgar.
 
 
 
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.  Novo dicionário de língua por-tuguesa.  2. ed. rev. e aum. 12. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
RAMOS, Graciliano.  Vidas secas.  Rio de Janeiro: J. Olympio, 1938.
RUBIÃO, Murilo.  Teleco, o coelhinho.  In:---.Os dragões e outros contos.  Belo Horizonte: Movimento-Perspectiva, 1965.
RUBIÃO, Murilo..  Teleco, o coelhinho.  In:---.  O pirotécnico Zacarias.  8. ed.  São Paulo: Ática, 1981.