OS PROBLEMAS AUTORAIS E TEXTUAIS DA OBRA ATRIBUÍDA A GREGÓRIO DE MATOS
— ALGUNS EXEMPLOS

Francisco Topa (Universidade do Porto)

1. «Mais que um poeta, Gregório de Matos é uma polémica»  — escreveu António Dimas na abertura de um ensaio recente. Descontado o exagero que possa advir da sua formulação aforística, a frase resume bem o estado em que se encontram os estudos sobre o poeta baiano. A causa é unanimemente reconhecida: três anos depois da passagem do 3.º centenário da sua morte, 167 anos depois da publicação  dos primeiros oito poemas do vasto conjunto que lhe anda atribuído, continuamos a não dispor de uma edição crítica da obra de Gregório, o que favorece a disparidade de juízos de críticos e historiadores da literatura.
 Apesar disso, devemos reconhecer que as condições para uma leitura serena da obra gregoriana são hoje consideravelmente melhores do que eram há décadas atrás. De facto, surgiram nos últimos quinze anos, em áreas diversas, trabalhos que — não sendo talvez definitivos — lançaram bases muito sólidas para um estudo rigoroso do poeta e da sua obra: poderíamos citar, no campo da biografia, a obra de Fernando da Rocha Peres ; no domínio dos estudos literários, os ensaios de João Carlos Teixeira Gomes  e de João Adolfo Hansen ; no domínio da versificação, o trabalho de Rogério Chociay ; e, quanto ao vocabulário, as obras de Ruy Magalhães de Araújo . Por outro lado, e apesar da demora da reclamada edição crítica, dispomos de duas edições monumentais — a de Afrânio Peixoto  e a de James Amado  —, as quais, apesar dos defeitos evidentes que lhes têm sido apontados, evitaram, para usar uma expressão feliz de Haroldo de Campos, o sequestro do poeta e colocaram à disposição dos diversos públicos uma parte muito significativa da obra que lhe anda atribuída.
 
 2. Falta contudo dissipar em definitivo o manto de dúvidas que continua a cobrir a obra de Gregório de Matos. Uma das tarefas indispensáveis é, sem dúvida, a preparação da edição crítica, que, desde a década de ’60, tem suscitado diversos projectos colectivos, infelizmente não concretizados.
 Procurando dar um primeiro passo decisivo nessa matéria, apresentámos em 1995 à Faculdade de Letras da Universidade do Porto um projecto de doutoramento em literatura brasileira subordinado ao tema que serve de título a esta comunicação: «Os problemas autorais e textuais da obra atribuída a Gregório de Matos». Sob orientação do Prof. Doutor Arnaldo Saraiva, propusemo-nos basicamente atingir dois objectivos: elaborar um inventário global dos poemas atribuídos a Gregório; e, numa segunda fase, apresentar a edição crítica de uma parte significativa desse corpus poético.
 Para atingir o primeiro desses objectivos, tivemos de passar pela fase preliminar de qualquer tentativa de edição crítica: a recensio. Procedemos assim  ao levantamento sistemático dos vários tipos de fontes testemunhais que considerámos: as fontes manuscritas principais, isto é, os códices integralmente consagrados à recolha da obra atribuída ao poeta baiano e ainda as miscelâneas que lhe dedicam uma secção quantitativamente significativa; as fontes manuscritas secundárias, isto é, as miscelâneas em que surgem — em quantidades muito variadas — poemas atribuídos ou atribuíveis a Gregório; e as fontes impressas, que compreendem — para além das edições de Peixoto e Amado —, edições menores (como a de Vale Cabral), antologias modernas que partiram de fontes manuscritas diversas (como as de Darcy Damasceno e de Gilberto Mendonça Teles), florilégios e obras diversas da segunda metade do século XIX, uma série de publicações, geralmente colectivas, do período barroco, e ainda as edições de poetas contemporâneos de Gregório que com ele disputam a autoria de alguns textos. Esta primeira fase — que acabou por se revelar mais demorada do que esperávamos — permitiu-nos elaborar o inventário global dos poemas atribuídos a Gregório de Matos, através de uma monumental base de dados que compila cerca de três centenas e meia de fontes.
 Surpreendentemente nunca ensaiado, este trabalho constitui o ponto de partida indispensável para a fase seguinte, que, conforme deixámos dito, consistirá na apresentação da edição crítica de uma parcela significativa da obra do poeta baiano. De forma a garantir alguma unidade metodológica ao trabalho, optámos por um corpus coincidente com uma forma poética. Sem grande hesitação, acabámos por nos decidir pelos sonetos. Por um lado, porque se trata de um corpus quantitativamente significativo (o segundo maior, a seguir aos poemas em décimas). Por outro lado, porque é a parte da obra atribuída a Gregório que logrou uma maior circulação e aquela que, por consequência, coloca maiores problemas do ponto de vista autoral e textual.
 
 3. Feita esta introdução, ilustraremos agora o trabalho que temos vindo a desenvolver, discutindo os problemas autorais e textuais relativos a três sonetos atribuídos a Gregório de Matos, para os quais apresentaremos uma proposta de edição crítica. Antes disso, importa porém esclarecer, ainda que de forma muito breve, o nosso método de trabalho.
 A transmissão da obra poética atribuída a Gregório é particularmente complexa, impondo por isso determinadas condições ao processo de fixação crítica dos textos. Com efeito, a inexistência de documentos autógrafos ou suficientemente próximos do autor; o elevadíssimo número de fontes testemunhais envolvidas — maioritariamente manuscritas e ainda por cima quase sempre não datadas nem facilmente datáveis com a precisão exigível; o facto de nenhum códice conter a totalidade da obra e de nenhum ser integralmente cópia de outro; a impossibilidade de, na maior parte dos casos, e dada a ausência de erros comuns, estabelecer um stemma codicum rigoroso; todos estes factores tendem a fazer da edição de cada texto um problema individualizado, tanto mais que, quase sempre, cada um deles apresenta uma tradição diferente. Nestas condições, optámos por editar a versão que, caso a caso, nos pareceu a melhor: em termos gerais, por pertencer a um códice dos mais antigos e mais isentos de erros ou de atribuições erróneas; em termos particulares, por oferecer, em confronto com as restantes, uma lição idónea e coerente para o poema em causa. Na ausência de stemma, procurámos, ao nível da fixação do texto, seguir sempre a mesma lição, evitando assim a construção de um texto híbrido, resultante do contributo de testemunhos diversos. Mesmo assim, não nos furtámos à responsabilidade de corrigir erros materiais. Tais correcções são feitas a partir de uma cuidada análise das passagens em questão, ao nível da filologia, da retórica, da estilística, da arte poética, e com base nos preceitos da crítica textual, como o da lectio difficilior ou do usus scribendi do autor.
 Posto isto, passemos então ao primeiro caso que pretendemos discutir: o soneto iniciado pelo verso «Madre Abadessa, sancristãs, porteiras». Curiosamente, trata-se de um texto que em nenhuma fonte manuscrita vem atribuído a Gregório de Matos. Apesar disso, foi publicado em seu nome por Afrânio Peixoto.
 Tudo parece indicar que a fonte utilizada por Peixoto foi o manuscrito que se guarda no cofre 50.3.16 da BNRJ, designado por James Amado como «Códice de Évora». De acordo com o que se lê no f. 31r, trata-se de uma «Cópia feita em Évora pelo Dr. Lino de Assumpção em Maio de 1885». Por outro lado, como o próprio copista tem o cuidado de esclarecer, a transcrição foi feita a partir de três fontes manuscritas secundárias daquele que é hoje o Fundo Rivara da Biblioteca e Arquivo Distrital de Évora: os Ms. CXXX / 1-17, CV / 1-9 e CXIII / 1-30. Entre o material copiado, encontram-se — como o copista teve o cuidado de notar — dois poemas que no primeiro dos manuscritos referidos surgem como anónimos: o soneto «Quis hua hora o Seneca julgar» e a décima «S.or Antonio de Abreu» (ambos publicados por Peixoto em nome de Gregório, apesar da advertência). Além destes dois, há um terceiro poema que está anónimo na fonte, facto que Lino de Assunção não deve ter percebido: trata-se precisamente do soneto «Madre Abadesa sanchristã porteiras», que vem no f. 106v e põe termo a uma espécie de secção da miscelânea consagrada ao poeta baiano.
 Para além da edição de Peixoto, este equívoco teve outras consequências. Numa reportagem que a Folha de São Paulo dedicou, a 16 de Fevereiro de 1998 , ao trabalho que está a ser desenvolvido por José Pereira da Silva e Adriano Espínola, vem transcrito em edição diplomática esse soneto, juntamente com aquele que começa por «Quis hua hora o Seneca julgar», sendo ambos dados como inéditos. Sobre o facto, importa fazer várias observações. Em primeiro lugar, e ao contrário do que vem na peça, a fonte de ambos os sonetos não é o manuscrito guardado no cofre 50.1.11 da BNRJ — que James Amado designou como «Códice Imperador» —, mas antes o já referido 50.3.16 da mesma biblioteca. Por outro lado, e conforme já tivemos oportunidade de esclarecer, nenhum deles vem atribuído a Gregório na fonte original, estando ambos anónimos. Por outro lado ainda, nenhum deles — apesar de não constar da edição de Amado — é inédito, dado que ambos foram publicados por Afrânio Peixoto (III, 45 e II, 177, respectivamente). Por último, convém notar que a transcrição de ambos, tal como publicada no jornal a que vimos fazendo referência, apresenta uma série de erros grosseiros. Ficando apenas pelo primeiro deles, que é aquele que nos interessa discutir, note-se que, no v. 10, deveria estar Lourença em lugar de Lourenço; no v. 12, saiba em vez de saibo e soforniza em vez de sofornista; no v. 13, juro em lugar de furo e tenca em lugar de temco; e, no v. 14, requiescat in pase em vez de requiescat pase.
 Pelo conjunto dos motivos expostos, pensamos portanto que o referido códice 50.3.16 da BNRJ não apresenta qualquer interesse para a preparação da edição crítica da obra gregoriana, tanto mais que os originais respectivos se conservaram. Além do mais, Assunção não aproveitou todos os dados da primeira das fontes — o Ms. CXXX / 1-17. Com efeito, há nele mais 13 poemas que comparecem em códices que reúnem a poesia de Gregório de Matos, embora aqui surjam anónimos ou atribuídos a outros autores.
 Explicada assim a origem da atribuição indevida do soneto ao poeta baiano, vejamos então a nossa proposta de edição crítica, a figurar no anexo reservado aos poemas excluídos. Explicando rapidamente o modo de apresentação do texto crítico, importa dizer que ele é precedido da relação das fontes testemunhais que o veiculam, dividida segundo os três tipos que considerámos. Os testemunhos manuscritos são citados a partir da sigla que identifica a biblioteca  em que se encontram, seguida do número do códice e da página(s) ou fólio(s) correspondentes. Os testemunhos impressos também serão citados por meio de siglas, correspondentes ao título ou ao nome do autor , igualmente seguidas do volume e do número da página. Sempre que um dos testemunhos diverge na atribuição ou esta não coincide com Gregório, virá indicado entre parênteses o nome do autor proposto ou a indicação de que se trata de um poema anónimo. Dado que na maior parte dos casos há divergências significativas entre as fontes, estas receberão como siglas identificativas letras maiúsculas impressas em itálico. As versões muito próximas receberão como sigla a mesma letra, que contudo será seguida de um número individualizador, colocado em posição inferior. Reservaremos sempre o A para designar a versão que escolhermos como base. A atribuição das restantes letras do alfabeto será feita em função do grau de proximidade das outras versões perante A.
 Seguir-se-á a epígrafe, caso exista, e logo depois o soneto. Teremos o cuidado de indicar eventuais omissões e adições: para aquelas usaremos os colchetes e para estas as chavetas.
 Abaixo, virá o aparato das variantes, que será do tipo negativo. Apenas daremos conta das variantes significativas, que serão apresentadas de acordo com as mesmas regras utilizadas para a transcrição do texto apurado (por razões de espaço e tempo, não teremos aqui oportunidade de expô-las). O aparato apresentará, por assim dizer, dois momentos, correspondentes ao paratexto e ao texto propriamente dito. A chamada do primeiro desses elementos será feita por intermédio da abreviatura Ep. (correspondente a Epígrafe). A chamada do texto propriamente dito será feita pelo número do verso. O lema será seguido de um meio colchete, vindo imediatamente depois a variante e a sigla que a identifica. Se um lema tiver duas ou mais variantes, estas serão consecutivamente apresentadas, sem que entre elas exista qualquer sinal de pontuação. Entre o lema, a(s) variante(s) e a(s) sigla(s) também não haverá nenhum sinal de pontuação, a menos que a(s) variante(s) em causa diga(m) respeito a um sinal desse tipo. O lema e a(s) variante(s) serão impressos em redondo, ao passo que as siglas identificativas das variantes virão em itálico. Havendo necessidade de anotar variantes para mais do que um lema do mesmo verso, a passagem de um ao outro será assinalada por intermédio de uma vírgula, colocada depois da última sigla da variante do lema anterior.
 Depois do aparato das variantes, virão — sempre que tal se revele necessário — as notas justificativas das emendas, seguindo-se o glossário e as notas ao texto. A terminar, virá uma breve apontamento sobre a versificação, que contemplará o esquema rimático e a métrica e acentuação.
Feitos estes derradeiros esclarecimentos, voltemos ao soneto que estava a ser discutido. De acordo com as nossas pesquisas, ele comparece em 7 fontes manuscritas secundárias, sendo que em 5 delas vem anónimo e nas 2 restantes atribuído a D. Tomás de Noronha, que deve portanto ser considerado o autor do texto.
 São muito escassas as informações disponíveis sobre este autor. De acordo com Barbosa Machado , nasceu em Alenquer, em data incerta, vindo a falecer em 1651, em idade avançada, o que faz supor que tenha nascido no final do século anterior. Conhecido sobretudo como poeta satírico, D. Tomás de Noronha não publicou nenhuma obra em vida. Postumamente, alguns poemas  seus foram incluídos no tomo V da Fenis Renascida (1727). No final do século passado, em 1899, Mendes dos Remédios editou mais uma pequena parte do espólio do autor, no volume Poesias Ineditas de D. Thomás de Noronha. A maior parte da sua obra poética continua inédita, dispersa por miscelâneas manuscritas.
 A juntar a estas fontes manuscritas, o soneto é ainda transmitido por duas fontes impressas: AP, conforme deixámos dito; e Adelino Duarte Neves, na sua tese de mestrado dedicada a D. Tomás de Noronha, em que edita o ms. 49-III-71 da Biblioteca da Ajuda, anotando  — para este soneto específico — as variantes de outras duas fontes manuscritas: ACL, 693A e BNL, 4259.
 Feita a colação de todos os testemunhos, verificámos que TT, L, 1659 oferece a melhor versão do soneto. Decidimos por isso adoptá-la como versão base, sendo a nossa proposta de edição a que se segue:
 Fontes manuscritas secundárias: TT, L, 1659, f. 57v (an.) = A / BA, 49-III-71, p. 8 (D. Tomás de Noronha) = A1 / ACL, 693A, f. 155v (an.) = A2 / BADE, FR1, CXXX/1-17, f. 106v (an.) = A3 / BNL, 6204, p. 812 (an.) = A4 / BNL, 4259, p. 286 (D. Tomás de Noronha) = A5 / BGUC, 526, f. 173r-173v (an.) = B
 Fontes impressas: ADN, p. 15-16 (D. Tomás de Noronha) = A1 / AP, III, p. 45 = A6

Versão de A
ÀS FREIRAS

  Madre Abadessa, sancristãs, porteiras,
  Discretas do mosteiro e mais canalha,
  Que estando já metidas na baralha,
  Quereis ‘inda jogar como terceiras;
 
5  Soberbas anciã?e?s, lascivas freiras,
  Que na bolsa cortais como navalha:
  Gastou-se o trigo já, fiquei em palha,
  Não tenho mais de meu que quatro esteiras.
 
  Se destas três quereis, venha Luísa,
10  Com Maria da Costa e Ana Lourença,
  Para as poder levar, que André foi fora.
 
  Mas saiba a minha Clara sofronisa
  Que acabou por aqui seu juro e tença:
  Requiescat in pace por agora.

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Ep. À deixação do Autor das Freiras de certo Mosteiro A1 D. Tomás a umas Freiras muito interesseiras A5 Soneto às Freiras. É de quem já tinha dado tudo B Ausente em A2 A3 A6
1. sancristãs? sancristã A3 A5 A6
3. Que estando já metidas? Que metidas estando A5
4. Quereis ‘inda jogar? Quereis ainda jogar A2 Quereis ‘inda sugar A6 Ainda vos quereis pôr B
5. anciã?e?s? anciãs A1 A2 A3 A4 A5 A6 B
6. na bolsa? na bola A6 nas bolsas B
7. o trigo já,? o trigo já A2 A3 B o trigo, já A4 A5 o trigo já; A6, fiquei em palha? ficai em palha A6 fiquei na palha B
8. quatro esteiras? três esteiras B
9. Se destas? Se estas B
10. Com Maria? Ou Maria B, e Ana Lourença? Ana ou Lourença A1 A2 A3 A5 A6 ou Lourença A4 ou Ana Lourença B
12. Mas saiba a minha? E creia minha B, Clara? cara A3 A4 A6, sofronisa? safronisa A1 A5 sofornisa A3 A4 Loformiza A6 a quem a avisa B
14. Requiescat? E requiescat B

Justificações
5. Trata-se de uma gralha evidente, que talvez denuncie um hábito do copista.

Glossário
Ep. (A1) deixação — acto ou efeito de deixar; abandono.
3. baralha — o mesmo que baralho; em sentido figurado, enredo, confusão, contenda.
4. terceira — medianeira, intercessora, alcoviteira.
12. Clara — provavelmente no sentido de freira da Ordem de Santa Clara.
sofronisa — Não encontrámos registo desta palavra em nenhum dicionário. Ela parece contudo estar próxima de sofronista, termo que designa um tipo de magistrado da antiga Grécia que exercia funções semelhantes às do censor romano.
14. Requiescat in pace — «Que descanse em paz», palavras da liturgia cristã dos defuntos.
 

Versificação
Esquema rimático: ABBA / ABBA / CDE / CDE.
Acentuação: domina o decassílabo heróico, mas são sáficos os v. 1, 8 e 11.

 Passemos ao segundo exemplo, um soneto até agora inédito. O facto de ser transmitido por uma única fonte, ainda por cima uma fonte manuscrita secundária, leva a que se coloquem de imediato algumas dúvidas sobre a validade desta atribuição. Acresce  que a parte da epígrafe relativa à autoria não é absolutamente clara: na tradição do soneto de cabo roto, é omitida a sílaba final do apelido. No entanto, a prova definitiva só pode ser encontrada através da leitura do poema. Como se verá pelas nossas anotações, o texto faz referência a uma série de circunstâncias históricas relativas ao reinado de D. João V, numa época portanto muito posterior à morte de Gregório de Matos.

 Fontes manuscritas secundárias: BGUC, 392, f. 155r

 Em Louvor da Capé-  e seus sequa-
 Por Gregório de Ma-

  No limbo, jaz o douto cardea-
  E no Céu o Senhor Gaspar Mosco-;
  No Inferno, o que a bula gove?r?no-
  Porque Lisboa tenha um Patria-.
 
5  Destes, só três governam um rei fata-
  Que a fazer vários bispos se inclino-;
  Sancristão da Capela se torno-
  Porque assim tenha mais autorida-.
 
  Delírio foi mui grande e devene-
10  Este que lhe pediu a rapazi-,
  Que a Roma fez mandar o seu corre-.
 
  Mas foi parto fatal do seu desi-
  E o papa lhe pôs tudo corre-,
  Porque devoto é do verbo acci-.
 
 

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Justificações
3. De acordo com a nossa proposta de leitura da palavra em causa, tratar-se-á de uma gralha.

Notas e glossário
1-14. Estamos perante um soneto de cabo roto, modalidade especial de soneto em agudos que consiste na eliminação das sílabas postónicas finais dos versos. Se bem lográmos identificar as sílabas em falta, a receita não terá sido aplicada de forma exacta: reconstituindo os vocábulos em causa na epígrafe, obtemos Capela, sequazes e Matos; nos restantes versos, cardeal, Moscoso, governou, Patriarca, fatal, inclinou, tornou, autoridade, deveneio, rapazia, correio, desígnio, correcto e accipere. Note-se que os v. 1, 3, 5, 6 e 7 terminam com vocábulos oxítonos, o que não permite elidir nenhuma sílaba, optando-se nesses casos pela eliminação de um fonema. Observe-se também que, nos v. 9 e 11, só surge grafada a vogal do ditongo da sílaba tónica.
Ep. Capé-?la? — Referência à capela real de D. João V, situada nos Paços da Ribeira, elevada pelo papa Clemente XI, em 1716, a Colegiada de S. Tomé. A 7 de Novembro do mesmo ano, a igreja passaria a basílica patriarcal, com extraordinárias graças e privilégios para os seus cónegos.
1. o douto cardea-?l? — Supomos que se refere a D. Tomás de Almeida (1670-1754), que, depois de ter sido bispo de Lamego e do Porto, viria a ser escolhido, a 4 de Dezembro de 1716, por D. João V para primeiro patriarca de Lisboa. Mais tarde, em 1737, seria feito cardeal por Clemente XII.
2. Gaspar Mosco-?so? — Trata-se de D. Gaspar Moscoso da Silva (1685-1752), mais conhecido por Frei Gaspar da Encarnação. Franciscano professo no Convento de Varatojo e deão da Sé de Lisboa, destacou-se sobretudo como reformador da Congregação dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz e como ministro de D. João V, na parte final do seu reinado (1747-1750).
3-4. Referência ao motu proprio (e não bula, propriamente dita) In supremo Apostolatus solio de Clemente XI, de 7 de Novembro de 1716, pela qual a cidade e diocese de Lisboa foi dividida em duas partes, ficando reservada a ocidental à colegiada, agora elevada à categoria de igreja metropolitana, e recebendo o seu arcebispo o título de Patriarca de Lisboa Ocidental.
5. três — Supomos que a primeira das personalidades referidas será D. João da Mota e Silva, mais conhecido por Cardeal da Mota (1691-1747). Nomeado por D. João V cónego magistral da Colegiada de S. Tomé, viria a receber a púrpura cardinalícia em 1727. Colaborador próximo do rei, tornar-se-ia, a partir da morte de Diogo Mendonça Corte Real, em 1736, uma espécie de primeiro-ministro, apesar de nunca ter sido nomeado para o cargo. As outras duas personalidades serão o já referido Frei Gaspar da Encarnação e o cónego Pedro da Mota e Silva, irmão do Cardeal da Mota, que, entre outros cargos, foi Secretário dos Negócios do Reino entre 1736 e 1756.
rei — D. João V, O Magnânimo (1689-1750), foi o 24.º rei de Portugal, tendo governado a partir de 1706. Conseguiu estreitar as relações com a Santa Sé, dela obtendo grandes privilégios, como a concessão do título de patriarca ao bispo de Lisboa.
10. rapazia — Conjunto de rapazes; o mesmo que rapazio.
11. o seu corre-?io? — Supomos que se refere a Pedro da Mota e Silva, que em 1721 foi presidente da embaixada de Roma, e depois, entre 1722 e 1728, enviado extraordinário na mesma cidade.
14. acci-?pere? — Infinitivo do verbo latino accipio, que significa aceitar, receber.

Versificação
Esquema rimático: ABBA / ABBA / CDC / DCD.
Acentuação: domina o decassílabo heróico, mas são sáficos os v. 5 e 14.
 

 Para terminar, apresentaremos um exemplo por assim dizer inverso aos anteriores, dado que se trata agora de validar uma atribuição que, à partida, não reúne as condições ideais. Trata-se do soneto «A coronarte subes, Castro, al cielo», que é transmitido por uma única fonte manuscrita principal — BNRJ, 50.2.7 —, a partir da qual seria publicado por AP. Acontece porém que outros condicionalismos reforçam a credibilidade da atribuição. A começar, não existe nenhuma fonte que proponha outra autoria. Mas, mais importante que isso, é o facto de o soneto fazer parte de uma espécie de mini-ciclo consagrado à morte do Governador-geral do Brasil Afonso Furtado de Mendonça, ocorrida em 1675. Desse ciclo fazem parte outros quatro sonetos: «Furtado ao Brasil foi, si, foi forçoso», «Aquele Afonso jaz em cinza fria», «Chore a pátria, Afonso esclarecido» e «Se maravilhas buscas, peregrino». Todos eles são transmitidos por duas fontes manuscritas principais: BA, 50-I-2 e BNRJ, 50.2.7. Portanto, o facto de o soneto castelhano ser transmitido por uma dessas duas fontes parece atestar a validade da atribuição autoral.
 Vejamos então a nossa proposta de edição, através da qual é possível notar vários lapsos — que são sobretudo lapsos de leitura — cometidos por AP.
 

 Fontes manuscritas principais: BNRJ, 50.2.7, f. 15v-16r = A
 Fontes impressas: AP, V, p. 15 = A1

Versão de A

 Ao mesmo

  A coronarte subes, Castro, al cielo,
  Río, a acabar te escondes en la tierra,
  Mendoza, vuelas, rayo de la guerra,
  Hurtado, bajas, desatado en celo.
 
5  Hurtado Río, mueres en el suelo,
  Mendoza, brillas, Astro que no erra,
  En tu curso fatal, sutil se encierra,
  En fin, sagrado dueño y otro vuelo.
 
  Río en la mar, en el calor Hurtado,
10  Mendoza en aire, en ceniza Castro,
  Fué lamentar, compuesto se destroza.
 
  Pero, ‘spiritu todo arrebatado,
  Nuevo te admira el Orbe todo un Astro,
  De Hurtado Castro, Río de Mendoza.
 

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Ep. Ao mesmo assunto A1
2. a acabar te escondes? a acabarte escondes A1
4. bajas? haxas A1, celo? selo A1
7. curso? corso A1
8. vuelo? huelo A1

Notas e glossário
Ep. Ao mesmo — Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, 1.º Visconde de Barbacena, nascido em Lisboa, em data desconhecida, e falecido na Baía, em 1675. General de artilharia, foi governador de Armas da Beira e ocupou o cargo de Governador-geral do Brasil entre 1671 e 1675.

Versificação
Esquema rimático: ABBA / ABBA / CDE / CDE.
Acentuação: domina o decassílabo heróico, mas são sáficos os v. 1, 4, 8-10 e 13.

 4. Chegámos assim ao final desta comunicação, ao longo da qual procurámos dar uma ideia do trabalho que vimos desenvolvendo, de forma a torná-lo público e a discutir com os especialistas a metodologia em que ele assenta. Pensamos que os exemplos escolhidos — não correspondendo embora a textos emblemáticos do conjunto da obra atribuída a Gregório de Matos — permitem ilustrar de modo satisfatório o tipo de problemas que a preparação de uma edição crítica coloca, tanto no domínio autoral como no textual, mostrando além disso que as condições de transmissão da obra impedem a formulação a priori de critérios rígidos aplicáveis a todo o conjunto.