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O FILÓLOGO DE PLANTÃO
“Um jornal que teima em buscar a verdade na doce ilusão de encontrá-la”
Publicação do CIFEFIL Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos.
Nova Série, ano 1, n.º 3. Rio de Janeiro, maio de 2021.
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Verba Sapientiae
“Não esqueça a gratidão à sua mãe.
A perda desse sentimento é sinal de
arrogância, além de ser a perda de
algo muito precioso como ser
humano. Do sentimento de respeito
à sua mãe nasce a paz e a justiça
em seu coração”.
(IKEDA, Daisaku. 365 dias: frases para
mulheres. São Paulo: Brasil Seikyo, 2008, p. 62)
EDITORIAL
Entre nós, tradicionalmente, maio é celebrado
como Mês das Mães e, na comunidade católica,
Mês de Maria, epítetos relacionados, visto ser ela
não a mãe de Jesus e, segundo a doutrina
católica, mãe da Igreja, e, por isso mesmo, o
maior ícone de maternidade da cultura ocidental.
A celebração mariana deste mês tem origem
na Grécia e na Roma antigas, que o dedicavam a
Artemisa e Flora, deusas da fecundidade e da
vegetação, respetivamente. Antes do século XII,
surgiu o Tricesimum, devoção de 30 dias a Maria,
entre 15/08 e 14/09. Como se vê, a ideia de um
mês dedicado a Maria é antiga. Mas nos
séculos XVI e XVII maio passou a ser esse mês.
(Cf. FRANCSICANOS, 2021)
o feriado laico atual foi instituído nos EUA,
em 1914 pelo presidente Woodrow Wilson (1856-
1924) sensibilizado por campanha de Anna Jarvis
(1864-1948) para homenagear sua mãe, Ann
Jarvis (1832-1905), ativista social do período da
Guerra Civil Americana (1861-1865). Entre nós, a
primeira celebração do Dias das Mães se deu em
Porto Alegre, em 1918. Coube ao presidente
Getúlio Vargas (1882-1954) instituir o feriado em
1932. (Cf. WIKIPÉDIA, 2021)
Nesta edição, homenageamos as mães,
tratando da maternidade. Esperamos uma boa
avaliação um bom aproveitamento do público.
EXPEDIENTE
CiFEFiL
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e
Linguísticos
Gestão 2020-2024:
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O Filólogo de Plantão
Editor-geral
Prof. Dr. Ricardo Tupiniquim Ramos
Próximas Atividades do CiFEFiL
XIV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E
FILOLOGIA
em homenagem a Cilene da Cunha (1952-2019) e
ao Quinto Centenário dos Correios de Portugal
24 e 26 de agosto de 2021
2
óνομαστικóς
(onomásticos)
MARIA, O SIGNIFICADO DE UM NOME
Ricardo Tupiniquim Ramos
Taís Costa Oliveira*
Desde os primórdios do Cristianismo, o nome Maria tem desafiado fieis e estudiosos.
Considerado uma forma composta, deu lugar a várias supostas origens, como iluminatrix ou
Iluminans eos a que os ilumina’, que São Jerônimo (c. 347-420) rejeitou, parecendo-lhe
proceder de Stella maris ‘estrela do mar’ (de mir, meir ‘iluminador’ + yam ‘mar’) ou de Amarum
mare ‘mar amargo’ (de mar ‘amargo’ + yam ‘mar’) e assinalou, ainda, que, em aramaico,
significaria senhora’. Por sua vez, Santo Ambrósio (340-397) o interpretou como Deus ex
genere meo ‘Deus da minha geração’. Dessas propostas, hoje abandonadas, fez Antônio Vieira
(1608-1697) engenhoso comentário no Sermão do Santíssimo Nome de Maria. Hoje também
não se levam a sério outras etimologias que traduzem esse nome por contumacia eorum
‘contumácia, rebeldia deles’ (Cf. FONTES, 1950) ou o consideram de origem egípcia, língua
em que significaria ‘amada do Senhor’, ‘amada do deus Amon’.
Segundo interpretação mais recente (Cf. VOGT, 1941), Maryam não é nome composto,
mas simples, idêntico a marôm, nome comum, ‘altura‘, traduzível como ‘excelsa, sublime,
eminente, exaltada’, sentido totalmente conforme à cena da Anunciação relatada por São
Lucas (Lc 1, 26-38), quando o Arcanjo saúda e exalta a Virgem: Ave, gratia plena! Dominus
tecum!‘Ave, Cheia de Graça! O Senhor é/está contigo/em ti’. O nome Maria carregaria essa
divindade, configurando-se na piedade, sobretudo na perspectiva religiosa do ilustre filólogo e
jesuíta pela qual, a referência a Maria considera apenas a virgem que deu à luz o filho de
Deus e que, diante da morte dos pecadores, roga por eles se lhe pedirem. Contudo, dada a
sua antiguidade (já na Torá hebraica, nomeia a profetiza irmã de Moisés
1
) e à sua popularidade
no século I d.C.
2
, não nos parece possível uma interpretação exclusivamente teológica católica.
Hoje, a Onomástica ciência lexical ocupada do nome próprio dá tratamento um pouco
diferente a esse antropônimo, pródigo na nomeação feminina em todas as sociedades de
maioria católica, como a nossa, tanto em sua forma simples quanto em composição: procede
de maryâh ‘pureza, virtude, virgindade’, do sânscrito, língua indo-europeia da Antiguidade
oriental, origem dos atuais idiomas do subcontinente indiano e venerável instrumento de
registro dos textos sagrados hindus e das mais antigas escrituras budistas. Dela, o vocábulo foi
transmitido, por empréstimo, ao hebraico (variantes Myriam ~ Maryam) e levado, pela difusão
do Cristianismo, ao grego (> Maria) e deste ao latim, de onde chegou às línguas modernas.
Referências
FONTES, Henrique. Digressões antroponímicas. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950.
FRANCISCANOS. Maria. 2021. Disponível em:
<https://franciscanos.org.br/vidacrista/especiais/maria/#gsc.tab=0>. Acesso: 22.abr.2021.
OLIVER, Nelson. Todos os nomes do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
VOGT, Ernesto (SCJ). O nome de Maria à luz de recentes descobertas arqueológicas. Revista
Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, vol. 1, n. 4, p.473-81, set./1941.
WIKIPEDIA. Português. Dia das Mães. 2021. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Dia_das_M%C3%A3es>. Acesso em: 22.abr.2021
____________________
* Licencianda em Letras Língua Portuguesa e Literaturas da Universidade do Estado da Bahia.
1. Segundo a etimologia hebraica originária, MARIA e MIRYAN são o mesmo nome. Maryam ou Miryam é
a forma hebraica; Maria, sua transcrição grega, adotada pelo latim.
2. Além da mãe de Jesus, o Novo Testamento menciona cinco Marias (a Madalena, a mãe de São João
Marcos, a mulher de Cleofas e a mãe de São Tiago, o Menor, e Maria, de Roma, saudada por São Paulo
na epístola aos Romanos (Rm 16, 6) e talvez uma sexta (se se admitir serem distintas a Maria de
Magdala e a de Betânia, irmã de Lázaro e de Marta).
3
Flashes de Romanidade
MÃE, MATERNIDADE E CORRELATOS: DAS RAÍZES LATINAS A UM DEBATE
CONTEMPORÂNEO
Ricardo Tupiniquim Ramos
Érica de Souza Oliveira*
Nesta coluna
1
, a partir de motivação peculiar ao autor, interna ao jornal ou de uma
sugestão de leitore(a)s, pretende-se sempre levantar alguma reflexão sobre o latim e/ou as
línguas e culturas românicas, seus sentidos e subversões, muitas vezes polêmicas, mas
necessárias em nosso tempo. Nesta edição
2
, propomo-nos a tratar do campo semântico
relativo à mãe, tentando situar, além disso, alguns debates atuais que entrecruzam essa
categoria exclusivamente feminina a outra social, historicamente vulnerável, o feminino-negro.
Inicialmente, cumpre indicar que a palavra latina MATER, TRIS origina todas as formas
românicas designativas da mulher que deu à luz, cria ou criou um ou mais filhos’ (pt. mãe, esp.
madre, cat./prov. mare, fr. mère, it. madre, sd. matre), bem como uma série de cognatos
(palavras com a mesma raiz), em latim e em suas continuações modernas. Como nem sempre
é possível localizar as formas destas últimas, indicaremos sempre a portuguesa e a latina.
Assim, de mater, tris, temos maternus, a, um (> pt./esp./it./sd materno(a), cat. maternal, fr.
maternel, rom. matern) e maternal, is (> pt./esp./cat./prov. maternal, fr. maternel, it. maternale),
ambos com o sentido de relativo à mãe; mas também matrasta, ae (Cf. CUNHA, 1997, p. 488)
(> pt./esp./cat. madrasta), matrina, ae (> pt. madrinha), matrix, icis (> pt. matriz), matrimonius, i
(> pt. matrimônio), matrimus, a, um ‘pessoa cuja mãe é viva’, matrona, ae (> pt. matrona
‘mulher casada, esposa, mãe de família’).
Entre os cognatos latinos de mater, nomes relativamente recentes, boa parte surgida
nos dois últimos séculos no jargão das Humanidades, como matricidium, i (< pt. matricídio ‘ato
de matar a própria mãe’) e matricida, ae (> pt. matricida ‘quem pratica matricídio’) (ambos de
1813); maternatio, onis (> fr. maternation > pt. maternação, esp. maternación, it. maternazione)
‘conjunto de atos, funções, cuidados ou responsabilidades relativos ou próprios da figura
materna ou a seu papel familiar, social ou cultural’; maternago, inis (> fr. maternage > pt./esp.
maternagem, it. maternaggio) técnica psicoterapêutica que trata de estabelecer entre terapeuta
e paciente, no simbólico e na realidade, relação semelhante à de uma “boa mãe e seu filho.
Esses exemplos são empréstimos eruditos, os que línguas modernas (como as neolatinas)
tomam a uma clássica (no caso, o latim, o grego-antigo, o árabe, o gótico, etc.) para expressar
conceito emergido de estudos acadêmicos. Outros são matriarca ‘mulher que governa ou
domina um grupo qualquer de pessoas’, matriarcado ‘regime social em que a autoridade é
exercida por mulheres’ e matriarcal ‘relativo a matriarca(do)’, surgidas por analogia (isto é,
semelhança), respectivamente, de patriarca, patriarcado, patriarcal; vejam:
pt. patriarca (séc. XIII) < lt. patriarca, ae (séc. II, apud TORRINHA, 1939) < gr. patriarkhés <
patr ‘pai’ + arkhés ‘origem, comandante, dirigente’, donde ‘o pai dirigente, original, o ancestral’.
pt. matriarca (séc. 1899) < lt. matriarca, ae < gr. matriarkhés < matr ‘mãe’ + arkhés ‘origem,
começo, comandante, dirigente’, donde ‘a mãe dirigente, original, a ancestral’.
pt. patriarcado (séc. XIII) < lt. patriarcatus, i (séc. II, apud TORRINHA, 1939) < patriarca + -
atus ‘suf. PaPt’, donde ‘regime ou cargo do patriarca’ (idem).
pt. matriarca (séc. 1899) < lt. matriarca, ae < matriarca + -atus ‘suf. PaPt’
pt. patriarcal ‘relativo ao patriarca’ (séc. XVIII) < lt. patriarcalis, is (séc. V) < patriarca + -lis
pt. matriarcal ‘relativo à matriarca’ (séc. XX) < lt. matriarcalis, is < matriarca + -lis ‘suf. deriv.
Por fim, originário de mater, tris, ainda no latim, cabe destacar o nome do estado ou
qualidade de quem é mãe ou, ainda, do laço de parentesco entre mãe e filho(s)
MATERNITAS, TATIS , fonte das formas românicas correspondentes: pt. maternidade, esp.
maternidad, cat./prov. maternitat, fr. maternité, it. maternità (MEYER-LÜBKE, 1911, p. 423) por
ser esse o termo em torno do qual prosseguiremos nossas reflexões.
4
Ora, na cultura ocidental, a maternidade remete à figura de Maria, mãe de Jesus, nosso
maior ícone materno, modelo de dedicação e devoção maternal à prole, personificação da
moralidade esperada de uma mãe (e, por extensão, de mulheres casadas) e, mais ainda,
símbolo da própria castidade, visto que sempre virgem, apesar de mãe.
Embora haja aqui, como se diz popularmente, muito pano para a manga (a validade dos
dogmas teológicos marianos fundamentos do Cristianismo, sobretudo católico , suas
consequências para a construção ou reforço das bases patriarcais de nossa sociedade, a
existência de muitas famílias chefiadas por mães-solo, etc.), pretendemos focar na questão da
diferente experiência de maternidade entre mulheres brancas e negras no Brasil.
Longe de querer polemizar o tema, estudos apontam que nosso passado escravista negou
às mulheres negras, cujos corpos eram vistos como objetos aptos para servir, o direito de amar
e constituir família (Cf. GONZALES, 1983), de serem matriarcas de famílias brasileiras (Cf. DEL
PRIORE, 1993). Segundo Davis (2013, p. 12), a idealização da figura materna, tão exaltada
durante o período colonial, não se estendia a todas as mulheres: [...] “de fato, aos olhos dos
donos de escravos, as mulheres escravas não eram mães em absoluto; eram simplesmente
instrumentos que garantiam o crescimento da força do trabalho escravo”. Assim, seu corpo era
entendido unicamente como máquina reprodutora de outros corpos e seu valor, medido a partir
de sua capacidade de multiplicar o plantel de seu senhor
3
.
Se, no campo afetivo, eram objetos de prazer; no social, eram mão-de-obra destinada à
produção econômica bem como a todo trabalho doméstico e atividade considerada imprópria
para as senhoras brancas, inclusive a amamentação (Cf. DEL PRIORE, 1993). Não é à toa que
a única imagem de maternidade negra presente na literatura brasileira até bem adentrado o
século XX é a da mãe-preta (Cf. PROENÇA FILHO, 2004) mulher escravizada, obrigada a
amamentar, cuidar e educar os filhos dos senhores, em detrimento dos seus próprios.
Da mesma maneira, informa hooks (2000), por muito tempo, para sobreviver, os negros do
pós-escravidão, podiam expressar sentimentos e emoções em locais restritos, pois sabiam
que, agindo de modo contrário, poderiam ser punidos. Assim, o discurso hegemônico levou as
mulheres negras a um modelo maternal desprovido de afetividade, pelo menos pública.
Talvez por isso, González (1983) indique a necessidade de discussão dos perfis sociais e
dos locais ocupados pelo negro no Brasil, em especial sobre os lugares impostos à negra. Se a
maternidade negra foi demarcada pela mãe-preta, esta, em vez de colocar a mulher negra de
forma resignada, como escravizada, confirma sua resistência no cotidiano das relações entre
senhores e escravizados. A mãe-preta era a mãe, tendo em vista seus cuidados e afetos na
criação da criança branca, enquanto a mulher branca, em contexto escravista, levando em
conta outros tipos de exploração sobre seu corpo, exercia mais a função de reprodutora dos
filhos do senhor, sem, contudo, vivenciar plenamente a maternidade.
Dentro desse cenário, de se perceber ainda que as mulheres negras maternaram além
dos filhos. Seus corpos carregavam a semente da vida. Maternaram outras mulheres em rede
de proteção mútua e, por vezes sozinhas, famílias inteiras: homens, crianças, velhos, afilhados,
netos, os filhos dos brancos, seus próprios filhos. As mulheres negras driblaram um imaginário
social no qual ter famílias e cuidar de seus filhos simplesmente era incompatível com a tradição
e objetivo elitista de apagar do imaginário nacional essa apresentação sobre elas. Assim, fica
evidente que estudar a maternidade das mulheres negras é ir de encontro com uma parte da
história de nosso país que demoramos para ter acesso.
___________________________________
* Mestre em Estudos da Linguagem pela UNEB, assina, neste jornal, a coluna “Fica a Dica: Literatura”.
1. Nesta coluna, a não ser quando sinalizada informação distinta, os significados destacados dos termos
são hauridos em Houaiss (2001), a datação de seu primeiro registro em português em Cunha (1997) e as
formas românicas em Meyer-Lübke (1911).
2. As referências deste artigo se encontram junto com o artigo da próxima coluna.
3. Seus rebentos eram considerados bebês-animais e há registros de bebês negros usados como isca
para a caça de crocodilos na Flórida (Cf. DAVIS, 2013) ou de crianças negras (e mesmo adultos) usadas
como montaria nas brincadeiras dos filhos de abastados senhores (Cf. DEL PRIORE, 2016) ou como
cobaias para a primeira vacina contra varíola aplicada no país (Cf. UMA HISTÓRIA A MAIS, 2021).
5
Nossos povos, nossas línguas
MATERNIDADE INDÍGENA: MODOS DIFERENTES DE MATERNAR
Embora, de uma perspectiva biológica, a maternidade seja idêntica para toda a
humanidade (e, mesmo talvez, para outras espécies de mamíferos) e a nossa imersão na
cultura ocidental nos faça percebê-la como essencialmente única, de uma perspectiva social,
há uma ampla variação dessa experiência exclusivamente feminina e tão fundamental à
sobrevivência do gênero humano. No Brasil, 305 etnias indígenas, falantes de 274 línguas
nativas (Cf. FUNAI, 2021, p. 1). Não se pode imaginar, portanto, que, entre nós, a maternidade
apenas espelhe a cultura hegemônica do país (de matriz judaico-cristã) e suas
representações. Haverá, necessariamente, um amplo espectro de padrões diferenciados
ainda que minimamente de maternidade. Segundo Dreher (2020),
Para entender o modelo de maternidade de cada mulher, é preciso
considerar se o povo ao qual ela pertence tem suas terras demarcadas ou
não; se mora longe, perto ou até mesmo dentro da cidade; se vive em beira
de estrada, defendendo-se de bala de capanga de latifundiário; se dentro da
sua comunidade ela tem lugar de destaque; se é ama-de-leite; se é esposa
ou filha de liderança; se ela mesma é liderança; se é mais velha ou mais
nova; quantos filhos ela tem; se trabalha fora da aldeia ou fica em casa; se a
sua etnia ainda fala a própria língua ou majoritariamente o português.
É, contudo, um erro imaginar nas sociedades indígenas modelos de maternidade alternativos
ou melhores que o ocidental, afinal, das diversas formas de maternidade, “nenhuma é mais
certa e nenhuma é mais errada. São diferentes. Diversas. Necessárias” (DREHER, 2000) e
vinculadas ao modus vivendi de sua respectiva sociedade.
Assim como em outros temas, a maternidade indígena permite generalizações sem,
contudo, apagar as especificidades. Examinemos alguns casos para tentar desconstruir
estereótipos e melhor compreender o diverso, mas essencialmente humano.
Em boa parte das sociedades indígenas, a divisão do trabalho considera os critérios
idade e gênero, de forma que cada grupo exerce funções complementares em relação ao
outro. Cabe aos idosos (a direção d)o cuidado das crianças; a estas a aprendizagem
(inclusive escolar), em boa medida sempre lúdica; aos demais adultos, as atividades de
produção. Nestas, às mulheres cabe o trabalho doméstico, assim entendido não apenas o da
casa, mas também o interno às aldeias (cuidados da casa, dos demais membros da família,
da roça, do artesanato, da pintura corporal) e aos homens, o externo (vida religiosa, caça,
pesca, contato com outras aldeias/etnias e com a sociedade envolvente).
Embora seja seu papel cuidar da prole, ficando as crianças praticamente grudadas a ela
durante os dois primeiros anos de vida, uma mãe indígena é apoiada por todas as mulheres
da família em suas tarefas: “Esse apoio inclui ir para a roça, cozinhar, cuidar das crianças e da
casa, amamentar os bebês umas das outras, produzir artesanato... conversar” (DRHER,
2020). É normal uma mulher maternar os próprios filhos, sobrinhos, netos, filhos de primas e
amigas; uma menina maiorzinha maternar irmãos, primos
1
, etc.:
O banho é o momento em que a criança se integra com o ambiente da água.
Aprende os limites do próprio corpo [...]. O ambiente é preparado pela
comunidade para esse fim. Deixam o fundo bem limpinho, tiram o mato da
beira do rio, você sabe onde pode ir e onde não pode. [...] Crianças menores
ficam na beira; as maiores, mais ao fundo; outros mergulham. [...] A criança
pequena observa o que é possível fazer e realizar nesse lugar, de acordo
com suas capacidades, em diferentes fases. [...] Uma coisa é a gente ter
contato esporadicamente (com o rio). Outra coisa é o contato diário, duas,
três vezes por dia. Você vai se apropriar daqueles desafios, daquele
ambiente. Há pouco espaço para perigo. (VASCONCELOS, 2017)
Além disso, muitas vezes, o cuidado com a prole envolve o pai e outros homens da
família e da comunidade. A partir do conceito de família estendida, as sociedades indígenas
se organizam para que nenhuma criança esteja ou fique só, por exemplo, em casos
orfandade, o que torna processos de adoção bem mais comuns que na sociedade ocidental.
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Até aqui, demarcamos aspectos gerais da maternidade nas sociedades indígenas. As
especificidades surgem quando se considera a maternagem anterior mesmo ao nascimento.
Assim, entre os Kaingang, a partir do quinto mês de gestação, a gravida começa a tomar um
chá para aumentar o líquido amniótico e, antes do parto, ingere um cde raiz de algodão
preparado por sua mãe. Nas aldeias, os partos, em geral naturais, com a mãe de cócoras e o
auxílio de parteiras, são antecedidos da oração de rezadores, curandeiros e pajés. Em
algumas sociedades (a Dessana e a Guarani, por exemplo), as paturientes acocoradas são
seguradas pelo marido ou outro homem de confiança; noutras (a Tapauyuna), homens não
participam do parto. Em geral, o pós-parto reserva para a mãe (às vezes também para o pai)
dietas especiais e/ou períodos de resguardo, variáveis. Entre os Guarani e os Aweti, indica-se
que o casal de pais recentes se abstenha de sexo por pelo menos um ano.
Encerramos o presente artigo apontando talvez o maior desafio das mães indígenas,
numa sociedade estruturalmente racista e construída a partir do apagamento de identidades e
vidas indígenas: criar seus filhos sem a vergonha ou medo de serem indígenas.
Referências
BRASIL. FUNAI. Índios no Brasil: quem são. Brasília: FUNAI, 2021. Disponível em:
<www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao?limitstart=0#>. Acesso: 17.abr.2021.
DAVIS, Angela. Mulher, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016 [1981].
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidade no
Brasil-Colônia. Brasília, Rio de Janeiro: EdUnB, José Olímpio, 1993.
DEL PRIORE, Mary. Histórias da gente brasileira: Império. São Paulo: LeYa, 2016, vol. 2.
DREHER, Andressa. Maternidade indígena: como as indígenas vivenciam o parto, a
amamentação e a criação dos filhos. 2020. Disponível em:
<https://azmina.com.br/reportagens/maternidade-indigena/>. ACESSO: 20.abr.2021.
FACHIN, Patrícia. Elo e sentido na maternidade indígena. IHU online, São Leopoldo, n. 359,
2/05/2011. Disponível em: <www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3804-lucia-helena-rangel-1>.
Acesso: 20.abr.2021.
FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. Rio de Janeiro: FAE, 1991.
GONZÁLES, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: SILVA, Luiz A. (Org.).
Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília: ANPOCS,
1983, p. 223-44.
HOOKS, Bell. “Vivendo de amor”. In: WERNECK, Jurema et al (Org.). O livro da saúde das
mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Pallas: 2000, p. 188-198.
HOUAISS, Antônio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetivo, 2001.
MEYER-LÜBKE. W. Romanisches Etymologisches Wörterbuch. Heidelberg: Carl Winter's
Universitätsbuchhandlung, 1911.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ
́
. What gender is motherhood? New York: Palgrave Macmillan, 2016.
PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estudos
Avançados, São Paulo, vol. 18, nº. 50, 2004.
TORRINHA, Francisco. Dicionário português-latino. 2.ed. Porto: Domingos Barreira, 1939.
UMA HISTÓRIA A MAIS. vacina do Brasil teve crianças escravizadas como cobaias.
Brasil: Uma História a Mais, 2021, 7’26”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=835FLWZ8V6A>. Acesso: 5.abr.2021.
VASCONCELOS, nica. Reflexões de uma antropóloga e mãe: 'O que aprendi com índios
sobre educação infantil'. BBC Brasil, 10/09/2017. Disponível em: <
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-41119694>. Acesso: 20.abr.2021.
VIEIRA, Amanda; VALLE, Isis. Como é a maternidade indígena no Brasil hoje? Blogueiras
Feministas, 19/04/2013. Disponível em:< https://blogueirasfeministas.com/2013/04/19/como-
e-a-maternidade-indigena-no-brasil-hoje/>. Acesso: 20.abr.2021.
_______________________________
1. Como se vê, assim como a maternidade negra, a indígena também se dirige a diversos indivíduos,
não apenas aos filhos das mulheres-mães, mas ao próprio corpo social, configurando uma verdadeira
matripotência centralidade social e cultural da figura materna, derivada de seu papel procriador,
presente nos mitos fundadores de diversas sociedades africanas (entre os iorubanos, v.g., Oxum) (Cf.
OYĚWÙMÍ, 2016, p. 60) e ameríndias (entre os incas, por exemplo, Pachamama). Assim, para melhor
compreender a maternidade em sociedades ameríndias, africanas e afro-diaspóricas, é essencial
analisar a matripotência não só em suas narrativas fundadoras como também nas de sua literatura.
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FICA A DICA
LITERATURA & CINEMA
As Mães de Maio
Segundo denúncia de pesquisadores e do movimento social em foco,
entre 12 e 21/05/2006, numa ação de vingança contra integrantes de
facção criminosa, policiais promoveram um ataque a comunidades
periféricas da Baixada Santista, daí resultando 564 mortes (355 delas, de
pessoas de até 25 anos e mais cem feridos em todo o estado de São Paulo.
Dessa revoltante chacina infelizmente não a única do gênero no país , surge o movimento Mães
de Maio, formado, sobretudo, mas não somente, pelas mães das vítimas.
Muito semelhante às Mães da Praça de Maio, na Argentina que cobram do Estado o
esclarecimento do desaparecimento e/ou morte de seus filhos no último período de Ditadura Militar
naquele país nossas Mães de Maio se diferenciam das hermanas porque a tragédia que vitimou
suas proles se deu em período de plena democracia liberal, sendo, portanto, ainda mais injustificada.
De sua atuação e articulação com apoiadores diversos, resultaram dois produtos que
recomendamos ao público-leitor: o livro “Mães de Maio: do luto à luta”, editado por Débora Maria e
Danilo Dara (2011), e o documentário “Mães de Maio: um grito por justiça”, de Daniela Santana
(2012), ambos gratuitamente acessáveis nos links constantes das referências.
Referências:
MARIA, Débora; DARA, Danilo (Ed.). Mães de Maio: do luto à luta. São Paulo: Mães de Maio/
Fundo Brasil de Direitos Humanos, 2001. Disponível em: <https://fundobrasil.org.br/wp-
content/uploads/2016/07/livro-maes-de-maio.pdf>.
SANTANA, Daniela (Dir.). Mães de Maio: um grito por justiça. Brasil, 2012, 33 min. Disponível
em: parte 1: <www.youtube.com/watch?v=Y4STk8g3uI4>; parte 2:
<www.youtube.com/watch?v=yFwtI0C13Yw>.
LITERATURA Cartas para minha mãe
Érica Oliveira
Ambientado em Cuba, “Cartas para a minha mãe” (lançado em
1998; no Brasil, em 2010), de Teresa Cárdenas, é livro que se numa
tarde: história curta, mas com um relato emocionante de acolhimento na
relação de uma filha com a falecida mãe por meio de cartas.
A protagonista é uma menina negra de cerca de 10 anos, cujo nome
não é revelado. Pelas cartas, ela transforma a mãe em melhor amiga,
amiga imaginária com quem compartilha detalhes do dia-a-dia na tentativa de aliviar a pressão
de morar num lar onde é rejeitada por ser fruto de relação extraconjugal. As cartas revelam o
preconceito racial da sociedade cubana, inclusive, no meio familiar da garota, cujas parentas
abusam psicologicamente dela, sempre lembrando que deve se esforçar para parecer branca.
A narrativa ganha impulso e seduz o leitor à medida que a protagonista vai crescendo e
aprendendo a se desfazer das amarras do sofrimento. moça, a protagonista, enfim, vivencia
o luto e passa a entender melhor as circunstâncias, iniciando sua transformação em mulher. É
neste ponto que os segredos familiares não podem mais assustá-la e ela pode enfrentá-los sem
necessariamente ter neles uma carga sobre-humana.
Romance para ser lido, emprestado, estudado, pois, não por acaso, em 2006, recebeu o
prêmio Casa de Las Americas como livro infantil, categorização questionável.
Referência: CÁRDENAS, Teresa. Cartas para minha mãe. Rio de Janeiro: Pallas, 2010.
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Agenda alia...
O que é: Em 2012, três grupos de pesquisa da
Universidade do Estado da Bahia se juntaram a
parceiros da sociedade civil organizada para formar
o Coletivo de Pesquisa e Extensão Leituras de
África, nome também de evento desde então
promovido bianualmente, numa semana no mês de
novembro. Neste ano, o evento conta com três
novidades: sua primeira edição virtual; a inserção de
outro grupo de pesquisa; o formato contínuo.
Formato: Mesas/Lives quase sempre semanais, de
cerca de 90 minutos, realizadas entre maio e
dezembro.
Temática
principal: bases civilizatórias (culturais, artísticas,
linguísticas) afro-brasileiras e as questões sociais
relativas às nossas populações negras
secundária: outras bases da cultura brasileira
(indígenas, ciganas, etc.) e questões sociais afeitas a
outros segmentos populacionais socialmente
fragilizados
Inscrições
período: até 24 de maio de 2021
Ficha de Inscrição disponível na página do
Coletivo Leituras no Facebook:
https://web.facebook.com/groups/378564215625523
Mesa/Live Inaugural
data e horário: 25/05/2021 19h.
transmissão: Canal “Leituras de África” do
YouTube:
https://www.youtube.com/channel/UCECdhIPMRi
W03CUTH3koLvg (sugerimos que se inscrevam no
canal e acionem o sininho de notificações)
tema: “Filosofia Ubuntu e Bem Viver Indígena:
percursos decoloniais de pensamento afro-
ameríndio
expositores: Prof. Dr. Ricardo Tupiniquim Ramos
e Prof. Ms. Antônio Carlos Gonçalves
mediadora: Prof.ª Maria Luísa Lino
HOLOFOTES
OLIVEIRA, Érica de Souza. Imagens de
maternidade negra em “Quarto de Despejo e
“Diário de Bitita. 2021. 130 p. Dissertação
Mestrado em Estudos de Linguagem. Salvador:
UNEB/ PPGEL, 2021.
Considerado um relato autobiográfico, Quarto de
despejo, da escritora negra Carolina Maria de Jesus
(1914-1977), revela o cotidiano de uma favela
paulistana do final da década de 1950. Nele,
Carolina atua como narradora-personagem. A
narrativa gira em torno da luta diária da escritora
para garantir a sobrevivência dos três filhos num
cotidiano marcado pelo racismo e sexismo. Da
mesma autora, Diário de Bitita narra a trajetória da
narradora-personagem mediante um conjunto de
memórias do período s-escravista, ao grafar suas
experiências como mulher negra naquele contexto e
ao evidenciar a vivência de outras mulheres negras.
Entre as cenas de descaso experimentadas pela
população periférica, a escritora destaca a relação
afetiva entre ela e sua mãe. Nas obras, através dos
relatos, a autora agencia um espaço de reflexão
para revelar as opressões de nero e raça em seu
contexto, produzindo um conhecimento a partir de
seu lugar de fala. Desse modo, Carolina de Jesus,
em Diário e Quarto, possibilita outras leituras para a
imagem maternal de mulheres negras. Tendo como
âmago as relações familiares, as narrativas
apresentam um resgate da cultura ancestral negra,
uma vez que, em momentos de afetividade, a autora
afirma um local de existência de núcleos familiares
centrados na figura de mães negras. A escritora
dribla um imaginário colonial que impossibilitou às
mulheres negras serem mães, terem famílias e
cuidarem de seus filhos, mecanismos que tentavam
promover o apagamento de sua prole na construção
da cultura nacional e representá-las no discurso de
escritores consagrados apenas como corpo-objeto,
corpo-sexual e corpo-trabalho. As imagens
maternais apresentadas da narrativa não são a
imagem idealizada da mulher mãe, mas imagens
reais de mulheres negras vivenciando a
maternidade da melhor forma possível. A pesquisa
teve natureza bibliográfica com análise de texto
literário e aportes teóricos de algumas áreas de
investigação Hampaté (1982), Gonzáles
(1983), Del Priore (1993), hooks (2000), Gomes
(2004), Evaristo (2009), Spivak (2010), Gilroy
(2012), etc. , aplicados a um novo objeto: o perfil
literário da mãe negra.