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O FILÓLOGO DE PLANTÃO
“Um jornal que teima em buscar a verdade na doce ilusão de encontrá-la”
Publicação do CIFEFIL Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos.
Nova Série, ano 1, n.º 4. Rio de Janeiro, junho de 2021.
Visite www.filologia.org.br para saber das novidades da área de Letras e do CiFEFiL.
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Verba Sapientiae
Pessoas sábias o assim chamadas
porque não são levadas pelos oito
ventos: prosperidade, declínio,
desgraça, honra, elogio, censura,
sofrimento e prazer”.
Nichiren Daishonin, monge budista japonês
do século XIII
(GOSHO ZENSHU. Português. Coletânea dos
Escritos de Nichiren Daishonin. São Paulo:
Brasil Seikyo, 2017, vol. 2, p. 53).
EDITORIAL
No Brasil, sobretudo no Nordeste, a tradição
católica fez de junho o mês de três de seus
santos mais populares (Santo Antônio, São João
Batista e São Pedro), cujas festas, embora
mobilizem, em nossos dias, muito mais foliões
que fiéis, movimentam a economia das cidades
celebrantes. Contudo, desde o início da pandemia
de Covid-19, o clima animado do mês vem sendo
prejudicado, pois os festejos foram devidamente
suspensos em prol do controle da doença.
Além disso, o mês tem uma efeméride
comercial relacionada a Santo Antônio (famoso
por seu caráter casamenteiro) e comemorada na
véspera de seu dia o Dia dos Namorados,
criado pelo publicitário baiano João Agripino Dória
Neto (1919-2000) como estratégia de alavancar o
comércio em mês de poucas vendas. Contudo,
em outros tantos países, a efeméride ocorre em
14 de fevereiro, data do martírio, em 207, de São
Valentim de Terni, verdadeiro padroeiro do amor,
do casamento e dos namorados.
Dadas as essas comemorações, nossos dois
primeiros artigos referem-se aos santos
mencionados neste editorial e ao amor.
A novidade desta edição é a coluna Fica a
Dica: Cinema”, doravante assinada pelo
acadêmico de Jornalismo Filipe Tupiniquim.
Agradecemos ao público o tempo dedicado a
estas páginas e lhe desejamos proveitosa leitura.
EXPEDIENTE
CiFEFiL
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e
Linguísticos
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O Filólogo de Plantão
Editor-geral
Próximas Atividades do CiFEFiL
XIV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E
FILOLOGIA
em homenagem a Cilene da Cunha (1952-2019) e
ao Quinto Centenário dos Correios de Portugal
24 e 26 de agosto de 2021
2
Prof. Dr. Ricardo Tupiniquim Ramos
óνομαστικóς
(onomásticos)
OS SANTOS JUNINOS E O VERDADEIRO CASAMENTEIRO
Ricardo Tupiniquim Ramos
Como anunciado no editorial, neste artigo tratemos de três dos mais populares santos
católicos, cujo culto religioso e festejos um tanto secularizados ocorrem neste mês - Santo
Antônio (dia 13), São João Batista (dia 24) e São Pedro (dia 29) , cujas informações
biográficas folhas colhidas em artigos da Wikipédia referenciados ao final.
Chamado o santo de Lisboa ou de Pádua cidades de seu nascimento e morte,
respectivamente e das quais é padroeiro , Santo Antônio (15/08/1195-13/06/1231) teria sido
filho (há dúvida quanto a esse fato) do casal Martim de Bulhões e Maria Teresa Taveira e foi
batizado como Fernando, vindo a assumir o nome religioso de Antônio (lt. Antonius, i <
antonius, i, ‘inestimável’ OLIVER, 2005), pelo qual é mundialmente conhecido, em 1217, após
mudar-se para o eremitério de Santo Antônio do Desterro. De início, integrou a Ordem dos
Cônegos Regulares da Santa Cruz, em cujo Mosteiro de São Vicente de Fora foi educado,
transferindo-se depois para o Convento de Santa Cruz de Coimbra para aprofundar seus
estudos em leitura e exegese bíblica, patrística, ciências e literatura clássica. Em 1220,
ordenou-se franciscano, participando, em 1221, do Capítulo Geral da ordem de São Francisco,
ocasião em que instruiu seus irmãos religiosos nos estudos teológicos que tanto dominava.
Nessa ordem, viajou muito por Portugal, Itália e França, pregando contra os albigenses e
valdenses (grupos de clérigos julgados hereges), destacando-se como grande orador,
retornando, depois, para Pádua, onde faleceu. Sua fama como orador, taumaturgo, místico e
milagreiro levou à sua canonização um ano após sua morte; seu saber, ao reconhecimento
como Doutor da Igreja em 1946, o primeiro franciscano a merecer o título. Embora famoso
casamenteiro, nada em sua vida que o relacione a jovens casadoiro(a)s
1
. Talvez essa fama
venha de intervenção feita em favor de uma mulher casada, acusada pelo marido de ter gerado
um filho ilegítimo. Segundo a tradição, o religioso teria ordenado ao bebê de poucas horas a
declarar o nome de seu pai e, por milagre, a criança disse o nome do esposo de sua mãe,
fazendo-o cair de joelhos em pedido de perdão, o que levou o casal a reconciliar-se.
Chamado de Batista (< gr. baptistas < baptistes ‘submergir + aspecto frequentativo’ <
bápto ‘submergir’; donde: o que batiza’ OLIVER, 2005) para diferenciar-se do xará
Evangelista, São João (<lt. Iohan, nis < hb. Yekokhanan ‘Deus é gracioso OLIVER, 2005) (2
a.C.28 d.C.) foi um pregador e asceta messiânico itinerante surgido na Judeia (seu provável
lugar de nascimento) e na Galileia, na época de Herodes e pode ser considerado o mártir
cristão anterior ao ministério do próprio Jesus. Pregando aos judeus o exercício da virtude e da
retidão, o arrependimento dos pecados, aplicando-lhes o batismo como rito de purificação da
alma e profetizando a vinda do Messias, segundo o Evangelho de São Lucas, era filho do
sacerdote Zacarias com Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus, de quem era, portanto, primo
em segundo grau de Jesus e a quem antecipou como pregador e batizou. Sua historicidade é
controversa, embora referido em texto não cristão, a obra Antiguidades Judaicas”, do
historiador judeu Flávio Josefo. Teria sido decapitado na Pereia por ordem de Herodes Antipas,
atendendo a pedido da sobrinha e enteada Salomé, enfurecida com as críticas do pregador ao
comportamento de sua mãe que, viúva, se tornara esposa do próprio cunhado.
Por sua vez, São Pedro, natural de Betsaida e residente em Cafarnaum, Galileia, era
viúvo daí, ser padroeiro da viuvez e irmão do apóstolo André de quem era sócio, ao lado
dos também apóstolos João e Tiago (e do pais destes, Zebedeu), na frota de barcos
pesqueiros e originalmente se chamava Simão. Segundo relato de São João Evangelista,
Jesus teria trocado o seu nome para Kephas, traduzido ao grego como Petros, e ao latim como
Petrus (de petra ‘pedra, rocha’), a pedra ou rocha sobre a qual edificaria sua ecclesia
assembleia (> pt. igreja). Segundo a tradição Católica e Ortodoxa, depois de exercer o
episcopado em Antioquia, Pedro teria fundado com Paulo a Igreja em Roma e se tornado seu
3
primeiro Bispo. Segundo os relatos bíblicos, após ter sido milagrosamente solto da prisão em
Jerusalém, ele teria viajado até Roma e ali permanecido até sua expulsão com outros judeus e
cristãos pelo imperador Cláudio, tendo, então, retornado a Jerusalém para participar do
chamado Concílio de Jerusalém, após o qual ficou em Jerusalém, sendo visitado por Paulo três
anos depois. O reencontro dos dois com outros apóstolos na Cidade Santa só voltaria a ocorrer
14 anos depois. Segundo a tradição católica, após passar por várias cidades, Pedro teria sido
crucificado de ponta-cabeça (a posição teria sido um pedido seu, pois sentia-se indigno de
morrer como seu Senhor), entre 64 e 67 d.C., no monte Vaticano, em Roma, onde foi
enterrado. Contudo, desde a Reforma, teólogos protestantes negaram a passagem Pedro pela
Cidade Eterna, posição hoje revista, inclusive pelos historiadores, que afirmam ter o apostolo
vivido e morrido em Roma e estar seu túmulo descoberto em 1950, após minuciosa pesquisa
arqueológica e documental nos subterrâneos da Basílica de São Pedro, no Vaticano.
Referências
OLIVER, Nelson. Todos os nomes do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
WIKIPEDIA. Português. Pedro, apóstolo. 2021. Disponível em: <
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_(ap%C3%B3stolo)>. Acesso em: 25.maio.2021
WIKIPEDIA. Português. Santo Antônio de Lisboa. 2021. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Santo_Ant%C3%B3nio_de_Lisboa>. Acesso em: 25.maio.2021
WIKIPEDIA. Português. São João Batista. 2021. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Batista>. Acesso em: 25.maio.2021
WIKIPEDIA. Português. Valentim de Roma. 2021. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Valentim_de_Roma>. Acesso em: 25.maio.2021
____________________
1. O verdadeiro padroeiro do amor, namoro e casamento seria São Valentim de Terni ou de Roma (séc.
III270 d.C.), bispo romano que desafiou, em segredo, a proibição da realização de casamentos, imposta
pelo imperador Cláudio II, que via na medida uma estratégia para atrair os jovens ao exército. Delatado,
Valentim (< lt. Valentinus < valens, ntis ‘valente, forte, vigoroso, saudável’ + {-inus, a, um} ‘suf. dim.’) foi
preso e condenado à morte por degola, sentença executada em 14 de fevereiro de 270. Durante sua
prisão, muitos jovens atiravam flores e bilhetes em sua cela dizendo que ainda criam no amor, entre eles,
a jovem cega Artérias, filha do carcereiro, que conseguiu a permissão do pai para visitar Valentim. Nessa
visita, os dois se apaixonaram e ela, por milagre, recuperou a visão. Na maioria dos países cristãos, na
data de seu martírio é comemorado o Dia dos Namorados.
Flashes de Romanidade
AS DIFERENTES FORMAS E SENTIDOS DO AMOR
À Cachoeira de Bessém
Num ato de provável contrariedade às expectativas de algum(a) leitor(a) quanto ao
título deste artigo, esclarecemos que deve-se entender o item “forma”, nele constante,
como forma linguística, vocábulo, palavra, lexia e indicamos que trataremos aqui dos
diferentes sentidos de amor, palavra cuja polissemia influencia e sofre influência da cultura
expressa pela língua, portuguesa e, logo, ibérica, cristã, ocidental e, na origem, românica.
A polissemia da palavra amor parte da acepção básica de “sentimento afetivo que
faz com que uma pessoa queira o bem de outra” (RIBEIRO, 2021), cremos que universal
1
.
Desta derivam outras, relativas ao campo afetivo geral (A. “sentimento de afeição intensa
que leva alguém a querer o que, segundo ela, é bonito, digno, esplendoroso; sentimento
afetivo; afeição viva por; afeto”); ou direcionado a outrem (B. “sentimento apaixonado por
outra pessoa”), com quem se quer estar, proteger e cuidar, conservando a companhia
(idem). Daí, é só um passo para sentidos que personificam tais sentimentos em seu objeto
4
principal (C. “a pessoa amada”) ou noutros, mais difusos (D. “pessoa muito querida,
agradável, com quem se quer estar”).
Conforme o mesmo verbete, na língua comum, amor indica um segundo conjunto
mais abstrato de acepções (E. gosto vivo por alguma coisa”; F. “excesso de zelo e
dedicação” a algo; G. “inclinação ditada pelas leis da natureza”), bem como dois sentidos
ligados ao Sagrado (H. “sentimento de devoção direcionado a alguém ou ente abstrato;
devoção, adoração” ou I. “designação do Cupido, deus romano do amor”).
A mesma obra ainda registra expressões idiomáticas compostas por amor: amor ao
próximo (J. “‘sentimento que leva alguém a agir com caridade, generosidade’”); amor à
primeira vista (K. “‘sentimento amoroso que se tem por alguém que se acabou de
conhecer’”); amor cortês (L. “‘amor servil, nobre, leal do cavaleiro por uma mulher,
normalmente figurado em literatura medieval’”) e amor platônico (M. “‘amor ideal, puro, que
não se pauta em desejo físico, [...] impossível, não correspondido’”).
A partir do levantamento de todos esses sentidos
2
, Ribeiro (2021) lista sinônimos
(afeto, amizade, adoração, devoção, zelo, cuidado) e antônimos (desamor, ódio, raiva)
contextuais para a lexia; e, por fim, indica-lhe por étimo a forma latina amor, is.
Ora, em latim
3
, contudo, os conceitos cobertos, em português, por amor e listados
acima são expressos por diferentes lexias: amor, is (forma deverbal ‘eu sou amado’, talvez
associável aos nossos sentidos C e D), caritas, tatis (sentido J), studium, i (G),
benevolentia, ae (A e F), voluntas, tatis (B); pietas, tatis (H); cupido, inis (sentidos E e I).
Assim como a portuguesa, as demais formas românicas calcadas em amor, is
conservam-na praticamente intacta, como se : esp./cat. amor, fr. amour, it./corso. amore.
Por outro lado, as outras lexias latinas acima originam, em português, formas com
significados próximos aos originais, mas bem menos expressivos: lt. caritas, studium,
benevolentia, voluntas, pietas, cupido > pt. caridade, estúdio, benevolência, vontade,
piedade, Cupido o que representa, de alguma forma, perdas semânticas em sua
passagem da língua latina à lusitana.
Neste mês de celebração, no Brasil, da efeméride dos casais enamorados e em
tempos tão difíceis de tanta expressão de ódio e desamor na sociedade e na politica, entre
nós e no mundo, encerramos essas reflexões filológicas sobre os múltiplos sentidos e
formas amor relembrando a necessidade de expandirmos o amor pelas pessoas amadas
(com ou sem conotação passional ou erótica) para a difícil e quase utópica esfera de um
amor universal, que nos faça ver em todos os seres extensões de nós mesmos, como nos
ensinou o Cristo: “'Ama o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22, 39).
Referências
CARVALHO, Paulo César. Os nomes do amor. Discutindo língua portuguesa, São
Paulo, ano 1, no. 1, p. 54-7, jan./2004.
NAVARRO, Eduardo de Almeida. Dicionário Tupi-antigo: a língua clássica do Brasil. São
Paulo: Global, 2013.
O’HAGAN, Zachary. Dicionario del idioma omágua. 2011. Disponível em:
<http://linguistics.berkeley.edu/~zjohagan/pdflinks/omagua_fw2011_dict_TOTAL_FINAL.pd
f>. Acesso: 21.mar.2020
RIBEIRO, Débora. “Amor”. In: DICIO: Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus,
2021. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/amor/>. Acesso: 13.maio.2021.
SANTOS, Descoredes M. dos. Ioruba tal qual se fala. Salvador: Ilê Asipá, 1959.
TORRINHA, Francisco. Dicionário português-latino. 2e. Porto: Domingos Barreira, 1939.
__________________
1. A título de curiosidade, apresentamos o correspondente a amor, na acepção básica, em algumas
línguas brasilíndias e africanas referidas neste jornal, em outros artigos e edições anteriores: em Tupi-
antigo, aûsuba /aw’suba/ (NAVARRO, 2013); em Omágua, saxita /sa’∫ita/ (O’HAGAN, 2011); em ioruba,
ife /’ife/ (SANTOS, 1959), em fon, wànyìyí /wà’njìjí/ (DELAFOSSE, 1894)
2. Observando esses sentidos, confirmamos os traços comuns às acepções do vocábulo amor indicados
por Carvalho (2004): o sujeito amante e sua atração pelo objeto do amor; a forte e tônica euforia do
sujeito amante em relação ao objeto amado e a relação intensa e de grau variado do sujeito com o objeto.
5
3. Segundo Carvalho (2004), também em grego, quatro palavras indicativas das diferentes acepções
de amor em português: ágape (sentido H), storgue (A, B e G), philos (D e E), eros (sentidos A, C, B e I).
Nossos povos, nossas línguas
A ORIGEM DOS POVOS NATIVOS AMERICANOS E DE SUAS LÍNGUAS
Desde a “descoberta” do “Novo Mundo”, a cultura ocidental se pergunta sobre a
origem e a natureza dos povos indígenas, não tendo ainda chegado a resultados
definitivos. No início da era colonial, a simples existência dessas populações era um
enigma, pois era inexplicável ou contraditória se confrontada com a versão bíblica, única
aceitável, então, pela qual a humanidade teria surgido de ato criador divino a partir de
Adão e Eva; contudo, após desobedecer ao criador, o casal foi expulso do paraíso e
passou a viver da agricultura. Seu filho mais velho (Caim) matou o segundo (Abel) e,
amaldiçoado por Deus, saiu errante pelo mundo. O casal teria tido um terceiro filho, Set, e
após ele, outro(a)s, não nomeados nas Escrituras. Dele(a)s, o gênero humano cresceu,
mas, com o crescimento, veio a corrupção; por isso, Deus decidiu exterminá-lo mediante
um dilúvio, salvando o único varão fiel à sua palavra N e sua família. Após a
catástrofe, o mundo teria sido repovoado pelos filhos de Noé: Sem seria antepassado
direto de euroasiáticos e Cam, dos africanos; Jafé não tem claramente especificado o
rumo após partir do Monte Ararat, onde a arca teria encalhado.
Ajudou a intelectualidade europeia a resolver, naquele momento, a intrincada
questão da origem do homem americano um mito Tupinambá pelo qual um ancestral da
etnia chamado Tamandaré e sua família se salvaram de um dilúvio universal subindo na
copa de um altíssimo jenipapeiro; enquanto a inundação durou, não desceram de lá e se
alimentaram, junto com outros animais, dos frutos da árvore. Essa narrativa está
registrada nos autos de um complicadíssimo processo arbitrado pela Igreja em Madri no
século XVII, cuja discussão opunha duas teses sobre a natureza dos nativos americanos
e africanos. Segundo Sepúlveda, eles seriam bestas-feras entre os humanos e os animais
irracionais e, portanto, poderiam ser escravizados; contudo, com base naquele mito, Las
Casas defendeu a humanidade plena dos indígenas, descendentes de Adão, via Jafé,
filho de Noé. Para esse teórico, era o bíblico o dilúvio Tupinambá, alterado ao longo dos
milênios, mas essencialmente conservado. Como humanos plenos, os ameríndios não
deveriam ser escravizados, mas salvos do barbarismo pela conversão. Plenamente
conforme aos interesses da Igreja pela conquista espiritual de novas almas, esta tese foi
prontamente aceita e decretada pelo papa Urbano VIII, em bula de 1680, que ainda
estabelecia que, embora também devesse ser cristanizado, o negro não era um ser
humano em sua completude, o que justificava sua escravidão
1
; não aplicável ao o nativo
americano, salvo em situação de guerra justa, decidida pela autoridade europeia local
2
.
Até o século XIX, a origem do homem americano não incomodou mais a
intelectualidade europeia. Porém, no início do século passado, a descoberta de artefatos
de uma antiquíssima sociedade, identificada como Cultura de Clóvis (nome de cidade
norte-americana próxima ao sítio arqueológico), a questão voltou à tona e, então, surgiu
hipótese segundo a qual os paleo-indígenas ancestrais de nossos atuais povos nativos
migraram do Velho para o Novo Mundo através da Beríngia
3
, entre 14 mil e 13 mil anos
atrás, pois no fim da última era glacial partes das duas grandes placas de gelo que
cobriam o Canadá começaram a derreter, fazendo surgir um corredor livre de gelo de uns
25 km de largura. Aberto esse corredor, os humanos residentes em Beríngia poderiam
avançar até o interior da América rumo ao sul.
Ora, na década de 1990, contudo, pesquisas genéticas inter-relacionadas passaram
a contestar a data proposta pelo consenso de Clóvis, resultando controvérsia. Por outro
lado, indícios arqueológicos de diversos pontos do continente anteriores àquele período
os na Toca da Esperança datam de 204 mil a 294 mil anos atrás indicam presença
humana antes do surgimento do Homo sapiens, o que significa que o povoamento da
América pode ter ocorrido cerca de 300 mil anos, por alguma variante do Homo
6
erectus. (PRINGLE, 2005)
Graças a sítios arqueológicos brasileiros, o conhecimento atual sobre o tema tem
base muito mais sólida e, paradoxalmente, maiores enigmas: um crânio feminino de
11.500 anos e retirado de escavações em Lagoa Santa (MG) teve os tecidos musculares,
pele e demais órgãos da face modelados por especialistas brasileiros e britânicos,
trabalho que revelou a face de uma mulher (batizada “Luzia” pelos pesquisadores) com
traços muito mais parecidos com grupos da África e Austrália que com os típicos dos
grupos asiáticos, o que desmentiria o Consenso de Clóvis. Assim, hoje, pensa-se o
povoamento da América a partir do sudeste da Ásia, região de onde a humanidade teria
saído para a Micronésia e a Polinésia e alcançado a América Central e do Sul entre 25 mil
e 15 mil anos atrás. (TEICH, 1999) Essa primeira população teria sido posteriormente
eliminada ou, em alguns casos, assimilada pelos antepassados dos atuais ameríndios,
aqui chegados a partir de três rotas: da Ásia central, pela Beríngia, 13 mil anos (os
ancestrais dos esquimós); das ilhas asiáticas, pela costa da Beríngia no sentido SE-NW,
para a costa oeste ianque, há 16 mil anos (populações fixadas no Canadá e SW dos EUA,
antepassada dos na-denos); do SW asiático para a Austrália e Nova Zelândia teriam
lentamente atingido a América Central e do Sul, originando os outros povos.
Esta hipótese antropológica confirma polêmico estudo comparativo das nguas
indígenas de Greenberg (1987). Comparando o vocabulário de centenas dessas línguas,
ele verificou que os itens menos modificados formavam apenas três grupos, dotados,
cada um, de mais semelhanças com grupos asiáticos do que entre si. Greenberg
classificou as línguas nativas americanas em três grupos o esquimó-aleutiano, o na-
deno e o ameríndio cada um com sua própria língua ancestral. Essa divisão implica ao
menos três migrações distintas, asiáticas, hipótese reforçada por pesquisa genética de
1988 do italiano Luigi Cavalli-Sforza, que justifica o sincronismo da história genética e da
linguística: os genes não têm nenhum efeito direto sobre as línguas, mas, como a língua
materna depende do local de nascimento e do meio familiar e social, genes e línguas se
diferenciam ao mesmo tempo, após seu isolamento.
Assim, apesar de todas as controvérsias, a confluência de dados dessas ciências
parece indicar ser essa a origem da diversidade étnico-biológica e linguística dos povos
ameríndios.
Referências
NEVES, Walter A.; STRUSS, André; BERNARDO, Danilo V. et allii. As promessas de
Lagoa santa. Scientific American Brasil, São Paulo, ano 10, Ed. especial no.53, p.12-
15, jul./2013.
NOGUEIRA, Salvador. Os homens mais antigos da América. Scientific American Brasil,
São Paulo, ano 10, Ed. Especial no.52, p.66-71, jun./2013.
PRINGLE, Heather. Os primeiros americanos. Scientific American Brasil, São Paulo,
ano 10, Ed. especial no.52, p.58-65, jun./2013.
TEICH, Daniel Hessel. A primeira brasileira. VEJA, São Paulo, ano 32, no. 34, p. 80-7,
1999.
URBIM, Emiliano. O Brasil antes de Cabral. Superinteressante, São Paulo, ano 27, no.
329, p.30-9, fev./2014.
_________________
1. Somente em 1992, com uma bula assinada por João Paulo II, a Santa retificou esse absurdo
erro de Urbano VIII, o que significa que, por mais de 300 anos, oficialmente, para a doutrina
católica, o negro não era dotado de alma humana e sua escravidão era justificável.
2. A despeito dessa proibição, a escravidão indígena que, de fato, acontecia, jamais deixou de
existir.
3. Durante a última era glacial, o atual Estreito de Bering não existia; era uma porção de terra entre
a atual Sibéria, na Rússia (Ásia), e o atual Alaska, nos Estados Unidos (América). Devido ao nome
do acidente geográfico atual (Estreito de Bering), essa porção de terra é conhecida como Beríngia.
7
PÍLULAS DE BAIANIDADE
O BOITÁ
Em Tupi-antigo (também chamado Tupinambá), a forma composta mboî-tatá (de mboî ‘cobra’ + tatá
‘fogo’) designa uma gigantesca cobra-de-fogo que protege os campos contra incêndios, queimando os
incendiários. Conforme versão predominante desse mito, numa noite sem fim nas matas, houve uma
enchente causada por grandes chuvas. Assustados, os animais correram para o ponto mais elevado e a
mboy-gûasu ‘cobra grande’, habitante de uma gruta escura e único animal acostumado a enxergar no
escuro, acordou e, faminta, decidiu se alimentar dos olhos dos animais. De tanto comê-los, foi ficando toda
luminosa, cheia da luz dos olhos de suas vítimas até que seu corpo se transformou em bola de chamas. A
alimentação frugal deixou-a muito fraca e ela morreu, mas reaparece nas matas, podendo causar cegueira,
morte ou loucura para quem a encontre. (RAMOS, 2018, p. 57)
Do nome composto tupi mboî-tatá deriva, no português brasileiro, a forma simples Boitatá, nome de
ente folclórico nacional que remete ao mito indígena original acima e explicaria fenômeno atmosférico
conhecido por fogo fátuo. Na passagem do tupi-antigo para o português, dá-se a fusão de duas consoantes
semelhantes as bilabiais /m/ e /b/.
É possível a hipótese de Cachoeira (2020) de que esteja nessa locução tupinambá a origem do
nome Boitá designativo de procissão ritual em homenagem a Bessém, divindade-serpente considerada o
rei na Nação
1
Jeje-mahi
2
do Candomblé até porque, segundo Parés (2006, p. 349), na África não rito
claramente identificável “como antecedente do boitá Jeje”.
Correta nossa interpretação, de mboî-tatá para boitá, deu-se apenas a redução de tatá ‘fogo’, silaba
reduplicada, mudança não rara em tupi-antigo ou em seus empréstimos lexicais, como em Natuba (< Tp.-
ant. ananá ‘abacaxi’ + -tyba ‘sufixo coletivizador; donde: ‘abacaxizal’), antiga denominação do município
baiano de Nova Soure. (RAMOS, 2008, p. 529)
Correta, essa leitura (re)afirma a Bahia e seu Recôncavo como a encruza em X do encontro (nem
sempre tão pacífico quanto desejam e divulgam a historiografia e a propaganda oficiais) das mais diversas
formas de resistência e hibridizações culturais constituintes de uma brasilidade diferenciada, a baianidade,
de fato, uma afrobrasilindade, entendida como um vasto mar de identidades africanas e brasilíndias que
rasuram e erodem o curso da nau pétrea da modernidade europeia (invasora, colonial, opressora) e, aos
poucos, com suas indeléveis correntes, o corrige e dirige a um utópico Porto Seguro do Bem-Viver/Ubuntu.
Referências
CACHOEIRA, Miria. “O Boitá: a procissão festiva dos adoradores do vodun serpente na Bahia”. In:
PORTUGUEZ, Anderson Pereira; et al. (Org.). A força da fé: existência, resistência e resiliência da
religiosidade popular brasileira. Ituiutaba: Barlavento, 2020, p. 29-51.
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da Nação Jeje na Bahia. Campinas:
UNICAMP, 2006.
RAMOS, Ricardo Tupiniquim. “Religião e cosmologias tupis”. In: Id; LEITE, Gildeci de Oliveira. Leituras de
Letras e Cultura. Salvador: Quarteto, 2018, p. 29-69.
RAMOS, Ricardo Tupiniquim. Toponímia dos municípios baianos: descrição, história, mudanças. 2008.
718f. il. Tese Doutoramento em Letras e Linguística. Salvador, Programa de Pós-graduação em Letras e
Linguística, Universidade Federal da Bahia, 2008.
WIKIPEDIA. Português. Reino do Daomé. 2020. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Reino_do_Daom%C3%A9>. Acesso: 19.maio.2021.
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1. Durante o período escravista, o predomínio numérico, num território, de africanos escravizados oriundos de uma
mesma civilização levou ao gradual surgimento de cultos híbridos, amalgamados em torno dos elementos centrais da
religião dessa etnia predominante, emergindo, com o tempo, diferentes nações, termo designativo de segmentos do
Candomblé diferenciados por elementos litúrgicos centrais, como as divindades, hierarquia sacerdotal, rituais, toques e
a própria língua.
2. Os povos conhecidos como jejes (< ior. djedje ‘estrangeiro’) no Brasil procedem do reino do Daomé, atual Benin,
cuja política expansionista, entre 1600 e 1904 (data de sua anexação ao império colonial francês) (WIKIPEDIA, 2020),
assimilou diversos povos conquistados na região por eles chamada Mahi. no século XVII, indivíduos desses povos
foram trazidos ao Brasil como escravizados, daí decorrendo sua concentração em algumas áreas, como o Recôncavo
Baiano. Assim, de conceitos políticos, os dois termos passaram a nomear nação (jeje) e subnação (mahi) do
candomblé. (CACHOEIRA, 2020, p. 33)
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FICA A DICA
LITERATURA Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar
Érica Oliveira*
Adaptado para o cinema em 2001, Lavoura Arcaica (1975) é escrito a partir da
técnica de fluxo de consciência: encadeamento de ideias em simulacro ao pensamento
humano. Com uma pontuação não rara, a trama é contínua, sendo o leitor quem
determina o ritmo de leitura. Num jogo proposital de expressões, palavras e sentidos
vão se encaixando e adensando o tom de mistério das circunstâncias de André, jovem narrador-
protagonista, um dos sete filhos de tradicional família do interior, que se rebela contra os valores
patriarcais e sai de casa em busca de sua própria maneira de viver seus dilemas e na tentativa de
arrancar de si a paixão proibida por sua irmã mais nova, Ana.
Na trama, a paixão ganha ramificações e sentidos e acaba desencadeando uma narrativa dos
pensamentos de André num misto de profano e sagrado. Sua paixão incestuosa ceifa toda a plantação
moralista semeada arcaicamente pelos valores tradicionais. Florescem na narrativa muito drama
familiar, questionamentos de valores cristãos, descobertas de sexualidade e sentidos novos para a pureza
e fraternidade. O retorno do filho pródigo, as transgressões ao modelo familiar e a busca de respostas
fora desse meio são simbologias marcantes na trama.
Obra passível de múltiplas leituras, Lavoura Arcaica desperta no leitor um estranhamento inicial,
logo transformado em intensa curiosidade. Com um enredo envolto em questionamentos de situações
enraizadas no cerne de nossa sociedade, quebra, figurativamente, os secos, mas, maciços galhos dos
tabus morais e sociais. Obra essencial para quem anseia por conhecer uma literatura contemporânea que
também semeia no leitor um outro jeito de vivenciar a leitura.
Referências
CARVALHO, Luiz Fernando. Lavoura arcaica. Brasil: VideoFilmes, 2001, 163 min.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 [1975].
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* Mestre em Estudos da Linguagem (UNEB, 2021).
CINEMA Skin a flor da pele”, de Guy Nattiv
Filipe Tupiniquim*
Criado em grupo de supremacistas brancos, Bryon Widner (Jamie Bell) está no
fundo do poço, imerso em realidade absurdamente insana onde nada é mais correto
e antigos hábitos (uso excessivo de drogas, crimes de violência) não fazem mais
sentido. Não suportando os conflitos internos seguidos à paixão pela jovem mãe-
solteira Julie Prince (Danielle MacDonald), decide, então, abandonar o ódio que lhe
fora ensinado e aceitar a ajuda de antigo inimigo, o ativista negro Daryle Jenkins, (Mike Colter).
Baseado em história real, o longa, disponível no Telecine, estreou em 2018 (no Brasil, em 2019),
tendo boa avaliação da crítica pela atuação do elenco e pela excelente história de superação e redenção.
Uma boa dica, em tempos de necessárias revisões de discursos de ódio e de urgentes reconciliações.
Referência: NATTIV, Guy (Dir.). Skin: a flor da pele. EUA: Maven Picutres, 2018.
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* Acadêmico de Comunicação Social Jornalismo pela UNIFTC.
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Agenda alia...
Em 2012, três grupos de pesquisa da
Universidade do Estado da Bahia se juntaram a
parceiros da sociedade civil organizada para
formar o Coletivo de Pesquisa e Extensão
Leituras de África, nome também de evento
desde então promovido bianualmente, numa
semana no mês de novembro. Neste ano, o
evento conta com três novidades: sua primeira
edição remota; a inserção de novo grupo de
pesquisa; formato contínuo, de maio a dezembro.
Inscrições gratuitas e permanentes pelo site:
www.doity.com.br/leiturasdeafrica
Transmissão: Canal “Leituras de África” do
YouTube:
https://www.youtube.com/channel/UCECdhIPMRi
W03CUTH3koLvg (Sugerimos que se inscrevam
no canal e acionem o sininho de notificações.)
PRÓXIMAS MESAS/LIVES:
Mesa/Live 2
Data: 10/06, 19h.
Tema: Intelectualidade negra no Brasil
Palestrantes: Profas. Ms. Carla Liane
Nascimento dos Santos (UNEB); Profa. Ms. Érica
Souza de Oliveira (Rede Pública Estadual)
Mediadora-palestrante: Profa. Danielly dos
Santos (Rede Privada de Ensino)
Mesa/Live 3
Data: 17/06, 19h.
Tema: Da representação à auto-representação
de corpos negros e ciganos na literatura
Palestrantes: Profas. Ms. Lorena Oliveira
Tavares (UNEB) e Érica Souza de Oliveira (Rede
Pública Estadual)
Mediador-palestrante: Prof. Gilberto Santos de
Souza (Giba Melo)
Mesa/Live 4
Data: 19/06, 17h.
Tema: Recital de poesia periférica
Convidado(a)s: poetas a confirmar
Mediador-participante: Poeta Gilba Melo
HOLOFOTES
SANTOS, Elisabete T. Galvão dos. Políticas,
performance e identidades em expressão
musical do DVD da banda Quilombo do Rio
das Rãs. 2021. Dissertação Mestrado em
Letras: Cultura, Educação e Linguagens.
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia,
Vitória da Conquista, 2021.
Documentado e divulgado por recurso tecnológico
digital, o trabalho da banda Quilombo do Rio das
Rãs elucida as condições de existência da
comunidade e suas práticas socioculturais e
direciona o olhar para um cenário de diversidade,
exclusão e racismo que afeta seus habitantes.
Fundamentada em princípios da etnomusicologia
brasileira, a análise de sentido e formas da
expressão musical dessa banda leva em conta as
informações e trabalhos acadêmicos sobre a
comunidade referida, bem como os dados
concernentes aos processos de produção e
difusão da mídia digital, em um contexto de
apropriação das identidades étnicas pelo
mercado e de promoção de políticas culturais de
fomento a produções artísticas calcadas em
noções de diversidade, território e identidades.
Por meio dos elementos musicais e performativos
afirmativos da identidade étnica quilombola
constantes no DVD da banda Quilombo do Rio
das Rãs é possível estabelecer um diálogo com
as memórias sociais mobilizadas no contexto de
produção e difusão do espetáculo musical,
nomeadamente aquelas memórias relacionadas
ao processo histórico de luta pela conquista e
posse da terra, por reconhecimento e liberdade.