heroico brado retumbante, às margens do Ipiranga, do príncipe português D. Pedro de Alcântara (1798-1834).
O que não se ensina (exceto entre nós, baianos), nas aulas de História ou na vivência cívica, é que o suposto
grito do Sua mulherenga Alteza, traidor da corajosa consorte
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, não provocou a Independência a todas as
províncias (atuais estados), pois a Bahia permaneceu reduto português até 2/07/1823, quando soldados de
variadas peles e origens sociais a libertaram, dando ao emergente país território quase idêntico ao atual
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Na Bahia, a luta pela emancipação começou já no início de 1822. Dois anos antes, a Revolução Liberal
do Porto obrigara o retorno de D. João VI (1767-1826) e sua Corte para Portugal, onde, em 1821, iniciaram
assembleia constituinte para a qual a Bahia enviou deputados, saídos de lá às pressas, quando perceberam
as pretensões portuguesas de recolonizar do Brasil, já então Reino Unido a Portugal e Algarve. Em fevereiro,
logo após a denúncia desses planos às câmaras de Salvador e de algumas cidades do Recôncavo Baiano,
eles viram a Corte enviar para cá o comandante militar Tenente-Coronel Madeira de Melo (1775-1833), logo
rejeitado pelas elites locais, que pediram ao príncipe-regente sua substituição por um brasileiro, sendo
atendidas. Contudo, com um bom número de comerciantes portugueses leais a seu país em Salvador, o
militar luso decidiu reafirmar sua autoridade, inspecionando a infantaria, formada, boa parte, por brasileiros
contrários à sua presença aqui. Essa atitude iniciou conflitos em alguns fortes e suas proximidades, de onde
saíram vitoriosos os apoiadores do comandante que, em comemoração, invadiram casas e atacaram civis.
Com a suspeita de que revoltosos estariam escondidos no Convento da Lapa, alguns desses militares
o invadiram, assassinando a abadessa, Sóror Joana Angélica (1761-1822), que os impedia de entrar. A
demonstração desmedida de força fez dela mártir da Independência e lembrou à população a dura repressão
pela metrópole, em 1798, à Revolta dos Malês, levemente citada nos livros didáticos como Conjuração
Baiana ou Revolta dos Alfaiates, cuja devassa resultou no degredo de seus líderes, africanos e islâmicos, e
no enforcamento seguido de esquartejamento de quatro negros – Lucas Dantas, Manuel Faustino, João de
Deus e Luís Gonzaga, dois deles militares de baixa patente, os outros, alfaiates – estratégia de intimidação
do povo, sobretudo o negro, para, assim, evitar novas sedições.
Madeira de Melo prosseguia em suas ações de intimidação das municipalidades simpáticas à causa
brasileira, onde parte da população da capital passou a se refugiar após esses acontecimentos. O martírio da
religiosa e a memória do horror da reprimenda ao movimento dos malês, de caráter eminentemente popular,
foram engrossando os brios nativistas do povo e a resistência antilusitana do Recôncavo, sob o comando de
Miguel Calmon (1796-1865), futuro Marquês de Abrantes. Era, portanto, essencial penetrar e dominar essa
região, onde se instalou, provisoriamente, em 22/09/1822, em Cachoeira a capital da Bahia-livre
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Nas vilas interioranas, a elite local arregimentava dinheiro para custear a luta – garantia para a futura
concessão de títulos de nobreza, mas, ao mesmo tempo, origem da pobreza da província daí em diante –, e
cooptava soldados entre homens livres de baixa condição social, independente da “raça”. Aos escravizados,
prometiam alforria se o final da guerra nos fosse favorável. Assim, desceram tropas multirraciais dos altos-
sertões de Santana do Caetité (posterior baronia), do Rio das Contas e de Jacobina.
Esse mesmo movimento ocorria noutras vilas do Recôncavo. Em São Félix, João Antônio Castro
(1892-1855) montou o Voluntários do Príncipe, mais conhecido como Batalhão dos Periquitos devido aos
detalhes verdes do uniforme, no qual se alistou, disfarçada de homem e com documentos do cunhado, Maria
Quitéria (1792-1853) – primeira soldada brasileira, cadete ainda durante a guerra, depois reformada como
alferes (posto equivalente a cabo), atual patrona do Quadro Complementar de Oficiais de nosso exército. De
Santo Amaro, vieram destacamentos de negros escravizados e um pequeno pelotão de indígenas Tupinikins,
liderados por Karamahã (meu tataravô), lá chegados 15 anos antes, vindos do Espírito Santo (RAMOS,
1999), a que se uniram seus parentes Tupinambás da vila de Olivença (GUERRA FILHO, 2004).
Para organizar as tropas brasileiras, D. Pedro I para cá enviou, como general, o mercenário francês
Pièrre Labatut (1776-1849), experiente nas guerras napoleônicas, com a missão de organizar esses grupos
armados dispersos, até então sob comando de civis, num exército rígido, disciplinado e, acima de tudo, fiel ao
imperador, posto à prova em outubro de 1822 durante a Batalha de Pirajá, ganha de virada, porque o
corneteiro Luís Lopes – que, dizem, estava bêbado – desobedeceu a ordem de dar toque de retirada e, em
vez disso, deu o de avanço da cavalaria e degola, apavorando os portugueses, que debandaram (SILVA,
1836), sendo perseguidos e capturados ou mortos pelos soldados indígenas e negros, recém-desmobilizados
por Labatut (que se recusava a comandá-los), mas cujo patriotismo os fez se esconder nas matas das
cercanias elevadas do campo de batalha e acorrer a ele no momento decisivo.