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O FILÓLOGO DE PLANTÃO
“Um jornal que teima em buscar a verdade na doce ilusão de encontrá-la”
Publicação do CIFEFIL Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos.
Nova Série, ano 1, n.º 5. Rio de Janeiro, julho de 2021.
Visite www.filologia.org.br para saber das novidades da área de Letras e do CiFEFiL.
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Verba Sapientiae
Aprendi o silêncio com os
faladores, a tolerância com os
intolerantes, a bondade com os
maldosos; e, por estranho que
pareça, sou grato a esses
professores.
Khalil Gibran, escritor libanês (1883-1931)
(PENSAMENTO. 50 frases de Khalil Gibran
que vão mudar sua visão do amor e da vida.
2021. Disponível em:
<https://www.pensador.com/frases_khalil_gibran
_amor_vida/>. Acesso: 8.jun.2021).
EDITORIAL
Neste número, os “Flashes de Lusofonia” se
dirigem a duas expressões idiomáticas
portuguesas calcadas em duas das três datas
referenciais calendário romano: as Calendae e os
Idus. Se não sabe o que são, confira!
Além disso, com a devida vênia, nas “Pílulas
de Brasilidade”, trazemos um artigo sobre tema
situado fora dos limites da Linguística e da
Filologia, mas que, cremos, poderá despertar
interesse do público: a consolidação da
emancipação política do Brasil, conquistada em 2
de Julho de 1823, na Bahia, com a expulsão das
últimas forças militares portuguesas, fato
geralmente desconhecido por não baianos,
relevante para nossa história e identidade.
Inauguramos, ainda, a coluna “Lira Nova”, de
título expressivo em latim e português, destinada
à divulgação de boa poesia, de temática livre, de
autoria do público leitor/escrevente. Iniciamos a
novidade com poema do presidente de nosso
Círculo, o professor e poeta José Mário Botelho.
Chamamos, ainda, a atenção dos colegas
filólogos, estudantes de Letras e interessados, em
geral, para o X Seminário de Estudos Filológicos
da UFBA e divulgado na coluna “Agenda alia”.
Por fim, desejamos ao público uma boa leitura,
pela qual somos sempre gratos.
EXPEDIENTE
CiFEFiL
Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e
Linguísticos
Gestão 2020-2024:
Diretor-Presidente
Prof. Dr. José Mario Botelho
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O Filólogo de Plantão
Próximas Atividades do CiFEFiL
XIV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E
FILOLOGIA
em homenagem a Cilene da Cunha (1952-2019) e
ao Quinto Centenário dos Correios de Portugal
24 e 26 de agosto de 2021
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Editor-geral; autor dos textos não assinados
Prof. Dr. Ricardo Tupiniquim Ramos
Flashes de Lusofonia
AS CALENDAS GREGAS E OS IDOS DE MARÇO
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Expressão idiomática ou idiotismo é um conjunto de vocábulos fixos, fossilizados,
cujo sentido não resulta da junção do significado literal dos termos constituintes (quase
nunca encontrando, por isso, correspondência em outra língua), mas aponta para um
contexto de origem, muitas vezes extrapolado e perdido no tempo, ao qual, portanto, nem
todos os usuários da língua m acesso. Normalmente são elementos da língua sobre os
quais recai bastante a curiosidade e a criatividade etimológica popular.
Entre os vários idiotismos do português, dois remetem ao antigo calendário romano:
“marcar (ou deixar) algo (ou algo ficar) para as calendas gregas” e “os idos de março”.
Marcar ou deixar algo (ou algo ficar) para as calendas gregas parece ter origem
no idiotismo latino ad Calendas Graecas ‘às calendas gregas’ que, como se vê, tem por
núcleo Calendas, forma acusativa de Calendae primeiro dia de qualquer mês’, de calare
proclamar, anunciar’, (PIMENTA, 2002, p. 52), pois, metaforicamente, essa data anuncia o
início do mês. A expressão idiomática portuguesa significa ‘adiar algo indefinidamente,
nunca resolver uma situação’, exatamente porque não eram os gregos que utilizavam as
calendas para marcar o começo de seus meses, mas os romanos. (SILVA, 1997, p. 52)
Assim como as calendas, os romanos tinham duas outras duas datas referenciais
em seu mês: as Nonae ‘nonas’ e os Idus ‘idos’. Estes equivaliam ao 15º dia de março,
maio, julho e outubro e ao 13º dos demais meses (SILVA, 1998, p. 104).
O idiotismo latino ad Idus Martii ‘nos Idos de março’ surge devido ao assassinato,
com 23 facadas, nessa data, do ditador romano Caio Júlio César (100 a.C.-44 a.C.). O fim
daquele líder político e militar, emboscado por 60 senadores, em pleno Senado, marcou
esse como um dia trágico para a história, não apenas romana, mas também de outros
povos por exemplo, os nativos americanos, pois nessa mesma data, em 1492, Colombo
regressava à Espanha, anunciando a “descoberta” de um Novo Mundo (ALCÂNTARA,
2015) , ou mesmo de toda a humanidade, pois, em 15/03/2020 a Organização Mundial de
Saúde anunciou a pandemia de COVID-19 (CARRERAS, 2021) que, como sabemos,
levou à morte mais de meio milhão de pessoas apenas no Brasil. (TITO, 2021)
Por falar nele, em sua história recente, há pelo menos duas referências calamitosas
para os Idos de Março, por sinal, duas posses presidenciais: em 1985, a de José Sarney,
governo de desastrosa política econômica, responsável por um cenário de hiperinflação de
até 81% ao mês; e, em 1990, a de Fernando Collor, desgoverno neoliberal marcado por
escândalos de corrupção com envolvimento direto do mandatário da nação, de seus
principais assessores e de membros de sua família. (Uma reflexão parentética: segundo
Marx (2011, p. 25), a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa”).
Para nós, todavia, março contém outra data nefasta, não exatamente o 15º dia, mas
o último, para alguns intelectuais (RUFFATO et al, 2014) os nossos “idos de março”. É o
caso do 31/03/1964, data da quartelada que depôs o presidente João Goulart (1919-1976)
e impôs ao país 21 anos de monstruosa ditadura a que, nos últimos anos, suas viúvas
esquálidas, moribundas e tresloucadas tentam promover a uma versão subdesenvolvida,
alienada e dependente da Pax Romana
2
ou mesmo a uma fudibunda (criação neológica,
entendam-na, atentando para os formantes) aetas aurea
3
.
__________________
1. As referências citadas ao longo deste texto estão no final desta edição.
2. Os antigos historiadores romanos chamavam de Pax Romana ‘paz romana’ o período de paz
social e crescimento civilizacional correspondente ao governo de seu primeiro imperador, Otaviano
Augusto (63 a.C.-14 d.C.), sobrinho-neto, filho-adotivo e sucessor político de Caio Júlio César.
3
3. Aetas aurea ‘era dourada’ termo usado pelos antigos historiadores ou literatos romanos para
denominar aos remotos tempos descritos nas narrativas cosmogônicas de sua civilização.
Nossos povos, nossas línguas
RESISTÊNCIA INDÍGENA ONTEM, HOJE, SEMPRE
Segundo Rodrigues (1993), quando da chegada de Cabral, em 1500, os índios
habitantes do atual território brasileiro eram 5 milhões, falantes de aproximadamente 1200
línguas. Por sua vez, o IBGE (apud Kouryh, 2008) sugere outros meros: seriam
2.432.000 índios. Contudo, ambas as quantidades são projeções. Não há dados históricos
sobre a demografia indígena anterior à colonização. Os mais antigos são do censo
realizado por Anchieta em 1583, segundo o qual havia 18.500 indígenas integrados à
empresa colonial (KOURYH, 2008); pouco depois, Souza (1879 [1587]), indicava a
existência de 6 mil negros da terra aldeados na Bahia de Todos os Santos.
De qualquer forma, a partir das projeções acima (as históricas e as atuais), em pouco
mais de 520 anos, o descenso da população indígena brasileira teria sido de entre 63% e
82% das cifras originais; o das línguas atingiria o percentual um pouco maior de 85%.
Isto significa não apenas um dos maiores genocídios da história, como, certamente, o
maior gloticídio (deliberada extinção de línguas).
Contudo, ao contrário do que diz a história escrita pela elite branca e ensinada na
escola, nossos ancestrais indígenas resistiram à escravidão e massacres, lutando pela
sua liberdade e sobrevivência. Não fosse essa luta, provavelmente não haveria indígenas
no Brasil hoje, pois todos teríamos sido exterminados ou culturalmente assimilados. Ao
processo de luta e organização dos povos nativos, existente desde a época da
escravidão, em prol de sua liberdade e emancipação e da preservação de suas culturas,
ainda hoje existente e vigoroso, chamamos resistência indígena.
Imaginamos que, ao acessar a esse tipo de informação pela primeira vez, você se
pergunte por que não se fala da resistência indígena à invasão do Brasil e à escravidão.
Bem, são várias as causas: a existência do racismo como elemento estruturante em
nossa sociedade; a crença na ausência de racismo no Brasil, país da democracia racial; a
falta de divulgação de pesquisas e livros sobre o tema; o desconhecimento dos processos
de resistência indígena no Brasil, mesmo por intelectuais.
Para não haver dúvida sobre a existência dessa resistência indígena, no passado,
vamos elencar algumas de suas manifestações. Havia formas mais difusas de resistência,
como a insubmissão às regras de trabalho nas plantações onde trabalhavam; as fugas
dos aldeamentos e fazendas; o suicídio individual ou coletivo; ou, ainda, busca de apoio
de aliados religiosos fossem padres católicos ou missionários protestantes ou militares
(v.g., o marechal Cândido Rondon) ou civis (v.g., os irmãos Villas-Boas e Darcy Ribeiro).
Além disso, sempre houve conflitos armados, dos quais, na era colonial, destacamos:
o movimento da Santidade Jaguaripe (Bahia, 1549); a Confederação dos Tamoios (Rio de
Janeiro, 1554-1567); a Guerra dos Aimorés (Bahia e Espírito Santo, 1555-1673); a Guerra
dos Potiguares (Paraíba e Rio Grande do Norte, 1583-1599); a Confederação dos Kariris
ou Guerra dos Bárbaros (do Ceará a Pernambuco, 1683-1713); as “correrias” indígenas
(Mato Grosso, século XVIII); a Guerrilha dos Muras (Amazonas, Pará e Mato Grosso, ao
longo do século XVIII); a Revolta de Mandu Ladino (Piauí, 1712-1719); a Guerra dos
Manaus (Amazonas, 1723-1728); a Guerra Guaranítica (Rio Grande do Sul, 1753-1756).
Provavelmente, você deverá estar surpreso(a), pois não sabia da existência de todos
esses conflitos, chamados guerras indígenas coloniais. Creio que, igualmente, você
não imaginava envolvimento indígena nos fatos históricos do período imperial (1822-
1889) relacionados abaixo, mesmo tendo estudado alguns deles na Educação Básica:
a Guerra de Independência do Brasil (Bahia, 1822-1823); a Cabanada (Pernambuco e
Alagoas, 1832-1835); a Cabanagem (Amazonas e Pará, 1835-1839); a resistência da
aldeia (hoje cidade) de Escada (Pernambuco, todo o século XIX); os movimentos rebeldes
pernambucanos do período, como a Confederação do Equador (1824); a colonização da
4
região Sul (século XIX); a Guerra do Paraguai (1864-1870).
A resistência indígena no Brasil teve continuidade durante a República, resultando,
ao longo do século XX, no desenvolvimento de políticas indigenistas, ou seja, de ações do
poder público em prol do atendimento às demandas dessa parcela da população, cujas
principais conquistas estão consolidadas na Constituição Federal: a gradual demarcação
de suas terras; a garantia de uma educação escolar indígena com currículo diferenciado e
gestão pela comunidade; a escolarização inicial em línguas nativas; e a criação de
Distritos de Saúde Indígena. (BRASIL, 2016 [1988], art. 22, 201 § 2º, 215 § 1º, 231, 232).
Contudo, boa parte desses e de outros direitos precisam de regulamentação e,
quando esta já existe, de implementação, grande frente de luta dos movimentos indígenas
brasileiros contemporâneos, sobretudo após o arrefecimento da boa vontade do governo
federal dentro do desolador cenário político do país nos dois últimos anos.
Finalmente, cabe-nos afirmar que, do processo de resistência indígena resultou a
contribuição dessas etnias para a construção da sociedade brasileira. São inúmeras as
manifestações culturais brasileiras que têm o pé na taba:
a língua majoritariamente falada no país (será português?), criada a partir de três
bases (o português falado pelo colonizador europeu, as línguas indígenas e as diversas
línguas africanas aqui introduzidas) e difundida em todo país pelos constantes
deslocamentos das populações negras escravizadas (MATTOS E SILVA, 2004);
a onomástica brasileira (nomes próprios de pessoas, lugares e famílias)
a religiosidade popular, em toda sua diversidade, com a encantaria ou pajelança e
os elementos indígenas presentes, por exemplo, no Catolicismo popular (e mesmo,
segundo Prezzia (2007), em movimentos evangélicos contemporâneos), na Umbanda e
no Candomblé (os caboclos e caboclas);
a medicina popular, com o conhecimento da manipulação de ervas, raízes, plantas
e animais;
uma variedade de elementos gastronômicos gerais (a farinha de mandioca) ou
regionais (para além do tacacá e do tucupi amazônicos, a moqueca, entre outros,
inclusive o caruru baiano, receita africana com nome Tupi);
diversas manifestações rítmicas e de expressão corporal, envolvendo música,
dança e luta;
uma estética diferente, um modo diversificado de ser belo(a) e perceber a beleza.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional
promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas
Constitucionais de Revisão n
os.
1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais n
os
. 1/92 a
91/2016 e pelo Decreto Legislativo nº. 186/2008. Brasília: Senado Federal/ CET, 2016.
Disponível em:
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf
>. Acesso: 25.jun.2021.
KOURYH, Jussara Rocha. Histórias do Brasil afro-indígena. Recife: Bagaço, 2008.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Ensaios para uma sócio-história do português do
Brasil. São Paulo: Parábola, 2004.
PREZIA, Benedito. O sagrado nas culturas indígenas. Revista Uniclar, São Paulo, ano 9,
no. 1, p.21-4, 2007.
RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas.
DELTA, São Paulo, v. 9, n. 1, 1993, p. 83-103.
SOUZA, Gabriel Soares de. Notícias do Brasil. 2e. Rio de Janeiro: Typographia de João
Ignacio da Silva, 1879 [1587].
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PÍLULAS DE BRASILIDADE
2 DE JULHO, A BAIANIDADE FUNDANTE DA BRASILIDADE
Orgulha-se a Boa Terra por página de sua história relacionada à emancipação política do
Brasil, que se deu, conforme os relatos historiográficos oficiais e os livros didáticos, graças ao
heroico brado retumbante, às margens do Ipiranga, do príncipe português D. Pedro de Alcântara (1798-1834).
O que não se ensina (exceto entre nós, baianos), nas aulas de História ou na vivência cívica, é que o suposto
grito do Sua mulherenga Alteza, traidor da corajosa consorte
1
, não provocou a Independência a todas as
províncias (atuais estados), pois a Bahia permaneceu reduto português até 2/07/1823, quando soldados de
variadas peles e origens sociais a libertaram, dando ao emergente país território quase idêntico ao atual
2
.
Na Bahia, a luta pela emancipação comou já no início de 1822. Dois anos antes, a Revolução Liberal
do Porto obrigara o retorno de D. João VI (1767-1826) e sua Corte para Portugal, onde, em 1821, iniciaram
assembleia constituinte para a qual a Bahia enviou deputados, saídos de às pressas, quando perceberam
as pretensões portuguesas de recolonizar do Brasil, então Reino Unido a Portugal e Algarve. Em fevereiro,
logo após a denúncia desses planos às câmaras de Salvador e de algumas cidades do Recôncavo Baiano,
eles viram a Corte enviar para o comandante militar Tenente-Coronel Madeira de Melo (1775-1833), logo
rejeitado pelas elites locais, que pediram ao príncipe-regente sua substituição por um brasileiro, sendo
atendidas. Contudo, com um bom número de comerciantes portugueses leais a seu país em Salvador, o
militar luso decidiu reafirmar sua autoridade, inspecionando a infantaria, formada, boa parte, por brasileiros
contrários à sua presença aqui. Essa atitude iniciou conflitos em alguns fortes e suas proximidades, de onde
saíram vitoriosos os apoiadores do comandante que, em comemoração, invadiram casas e atacaram civis.
Com a suspeita de que revoltosos estariam escondidos no Convento da Lapa, alguns desses militares
o invadiram, assassinando a abadessa, Sóror Joana Angélica (1761-1822), que os impedia de entrar. A
demonstração desmedida de força fez dela mártir da Independência e lembrou à população a dura repressão
pela metrópole, em 1798, à Revolta dos Malês, levemente citada nos livros didáticos como Conjuração
Baiana ou Revolta dos Alfaiates, cuja devassa resultou no degredo de seus líderes, africanos e islâmicos, e
no enforcamento seguido de esquartejamento de quatro negros Lucas Dantas, Manuel Faustino, João de
Deus e Luís Gonzaga, dois deles militares de baixa patente, os outros, alfaiates estratégia de intimidação
do povo, sobretudo o negro, para, assim, evitar novas sedições.
Madeira de Melo prosseguia em suas ações de intimidação das municipalidades simpáticas à causa
brasileira, onde parte da população da capital passou a se refugiar após esses acontecimentos. O martírio da
religiosa e a memória do horror da reprimenda ao movimento dos malês, de caráter eminentemente popular,
foram engrossando os brios nativistas do povo e a resistência antilusitana do Recôncavo, sob o comando de
Miguel Calmon (1796-1865), futuro Marquês de Abrantes. Era, portanto, essencial penetrar e dominar essa
região, onde se instalou, provisoriamente, em 22/09/1822, em Cachoeira a capital da Bahia-livre
3
.
Nas vilas interioranas, a elite local arregimentava dinheiro para custear a luta garantia para a futura
concessão de títulos de nobreza, mas, ao mesmo tempo, origem da pobreza da província daí em diante , e
cooptava soldados entre homens livres de baixa condição social, independente da “raça”. Aos escravizados,
prometiam alforria se o final da guerra nos fosse favorável. Assim, desceram tropas multirraciais dos altos-
sertões de Santana do Caetité (posterior baronia), do Rio das Contas e de Jacobina.
Esse mesmo movimento ocorria noutras vilas do Recôncavo. Em São Félix, João Antônio Castro
(1892-1855) montou o Voluntários do Príncipe, mais conhecido como Batalhão dos Periquitos devido aos
detalhes verdes do uniforme, no qual se alistou, disfarçada de homem e com documentos do cunhado, Maria
Quitéria (1792-1853) primeira soldada brasileira, cadete ainda durante a guerra, depois reformada como
alferes (posto equivalente a cabo), atual patrona do Quadro Complementar de Oficiais de nosso exército. De
Santo Amaro, vieram destacamentos de negros escravizados e um pequeno pelotão de indígenas Tupinikins,
liderados por Karamahã (meu tataravô), chegados 15 anos antes, vindos do Espírito Santo (RAMOS,
1999), a que se uniram seus parentes Tupinambás da vila de Olivença (GUERRA FILHO, 2004).
Para organizar as tropas brasileiras, D. Pedro I para enviou, como general, o mercenário francês
Pièrre Labatut (1776-1849), experiente nas guerras napoleônicas, com a missão de organizar esses grupos
armados dispersos, até então sob comando de civis, num exército rígido, disciplinado e, acima de tudo, fiel ao
imperador, posto à prova em outubro de 1822 durante a Batalha de Pirajá, ganha de virada, porque o
corneteiro Luís Lopes que, dizem, estava bêbado desobedeceu a ordem de dar toque de retirada e, em
vez disso, deu o de avanço da cavalaria e degola, apavorando os portugueses, que debandaram (SILVA,
1836), sendo perseguidos e capturados ou mortos pelos soldados indígenas e negros, recém-desmobilizados
por Labatut (que se recusava a comandá-los), mas cujo patriotismo os fez se esconder nas matas das
cercanias elevadas do campo de batalha e acorrer a ele no momento decisivo.
6
Com essa importante vitória, começava o cerco a Salvador, ampliado com a chegada, em maio de
1823, de esquadra comandada pelo nobre britânico Thomas Cochrane (1775-1860), contratado como
primeiro Almirante de nossa Marinha, aliás, o único estrangeiro a assumir esse posto na história. Apesar do
empate ao fim da batalha entre a esquadra brasileira e a portuguesa, esta ficou sitiada no porto de Salvador,
enquanto aquela passou a patrulhar o litoral da cidade, em breves combates de que resultaram, aos poucos a
impossibilidade de comunicação marítima entre a capital e o resto do mundo.
Entre Salvador e o Recôncavo, está Itaparica, foco, a partir de então, do comandante luso, pois,
conquistada, ele avançaria por ela em busca de suprimento e depois, em direção às vilas rebeldes para
também submetê-las. Embora abandonada por toda população livre, fugida para o Recôncavo, a “intrépida
ilha”, assim denominada pelo imperador posteriormente (TAVARES, 2005), foi defendida por mulheres negras
lideradas pela marisqueira Maria Filipa, que, com peixeiras e galhos de cansanção, surravam os marinheiros
portugueses desembarcados na ilha e lhes incendiavam as embarcações.
Abatido pelas derrotas e sem condições de oferecer maior resistência devido à fome, na madrugada de
2 de julho de 1823, com escolta de 13 navios de guerra brasileiros, Madeira de Melo foge Baía de Todos os
Santos afora em direção a Lisboa, com sua 78 embarcações e 4.500 militares. Pela manhã, acompanhados
de mais de mil mulheres que os auxiliaram com serviços de cozinha e enfermagem, 8.700 soldados entraram
na capital a partir da antiga Estrada das Boiadas, rebatizada, desde então, Estrada da Liberdade, marchando
até o Palácio do Ri Branco, sede do governo, onde foi declarada livre.
Desde 1824 exceto neste e no ano passado, devido à pandemia de Covid-19 um desfile cívico-
militar celebra esses fatos, construídos mais pelas mãos populares que pelas ações palacianas. Também
nisso a participação popular distinguem-se os festejos do 2 de Julho dos de 7 de Setembro. Nestes, ainda
mais nos dois últimos anos, predomina o caráter oficial e a rígida marcha das Forças Armadas. Naqueles, as
autoridades políticas repetem o percurso das tropas libertadoras, nem sempre sendo saudadas pela
população, que toma as ruas para celebrar a liberdade, mas também para protestar. Atrás dos políticos, das
bandas militares e das fanfarras das escolas, seguem os mais variados movimentos sociais, apresentando à
sociedade suas pautas, críticas e queixas em busca não mais da liberdade, mas de cidadania plena.
Antiga província que consolidou a Independência e base territorial do país e também seu rincão-natal,
por nela se situarem o velho e seguro porto por onde sua história começou e sua primeira capital, a Bahia
possibilitou ao Brasil a construção de sua identidade nacional. Que, inspirada na luta dos anônimos heróis
construtores de sua data máxima, possa a baianidade ser o berço esplendido da perpétua e necessária
hoje mais do que nunca (re)construção da brasilidade.
Referências
FUNDAÇÃO PEDRO CALMON. 2 de julho: a Bahia na independência nacional. Salvador: FPC, 2010.
FUNDAÇÃO PEDRO CALMON. Do “Grito do Ipiranga” ao sangue na Baía. 2007. Disponível em:
<www.fpc.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=232>. Acesso: 30.jun.2021.
GUERRA FILHO, Sérgio. O povo e a guerra: participação das camadas populares nas lutas pela
Independência da Bahia. 2004. 140 f. Dissertação Mestrado em História. Programa de Pós-graduação em
História Social, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.
PEIXINHO, Liliana. A guerra que orgulha a Bahia. Desafios do Desenvolvimento, Brasília, ano 12, n. 85,
2016. Disponível em: <
https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=3206&catid=28&Itemid=39>
. Acesso: 30.jun.2021.
RAMOS, Ricardo Tupiniquim. Nomes próprios de origem tupi no Brasil do século XIX. 1999. 187 f.
Dissertação Mestrado em Letras e Linguística. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1999.
SILVA, Inácio Acioli de Cerqueira. Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Salvador:
Typographia do Correio Mercantil, 1836, vol. 2.
TAVARES, Luís Henrique Dias. A independência do Brasil na Bahia. Salvador: EDUFBA, 2005.
_________________
1. Na verdade, coube a Leopoldina d’Áustria (1796-1826), esposa de D. Pedro, regente-interina do Brasil, Reino Unido a
Portugal e Algarve, a assinatura do decreto que, formalmente, promoveu nossa emancipação política. Retornando de
viagem a São Paulo em 7/09/1822, o príncipe-regente apenas foi informado desse decreto e da embrulhada política, dele
resultante, com seu pai e as Cortes Gerais de Lisboa, situação só resolvida em 12 de outubro, com sua aclamação como
imperador constitucional e defensor do Brasil. (BAHIA. FUNDAÇAO PEDRO CALMON, 2007)
2. Dizemos “quase idêntico” porque a colônia portuguesa do Grão-Pará origem dos atuais Estados amazônicos, exceto
Rondônia (desmembrado do Mato Grosso), Acre (cedido pela Bolívia) e o Tocantins (desmembrado de Goiás em 1988) ,
só se tornou independente em outubro de 1823, quando, então, optou por integrar o Império Brasileiro, como província.
3. Por conta disso, tradicionalmente, o governador da Bahia, após participar das celebrações cívicas em Salvador, na
manhã de 2 de julho, viaja a Cachoeira, onde despacha por um dia.
7
FICA A DICA
LITERATURA O olho mais azul, de Toni Morrison
Érica Oliveira*
Em seu romance de estreia, O olho mais azul (1970), Toni Morrison (1931-
2019) laureada com o Pulitzer em 1987 (com “Amanda”) e primeira escritora negra
premiada com o Nobel de Literatura (1993), traz a vida de Pecola Breedlove, menina
negra cujo maior sonho é ser tão bonita quanto as colegas brancas de sua escola.
Ambientado numa cidade norte-americana um pouco antes da II Guerra Mundial, o romance se divide
em quatro capítulos as estações do ano , em que diferentes narradores contam a vida da garotinha
violentada pelo pai, negligenciada pela mãe e hostilizada por outras crianças por causa da negritude de sua
pele e da textura crespa de seus cabelos. Tudo o que ela deseja é conseguir os olhos azuis das bonecas de
cabelo amarelo e, com isso, fazer com que alguém a ame.
Com descrições sorrateiras que envolvem, seduzem e obrigam a se humanizar a mais vil das criaturas,
ao longo da narrativa, a autora usa de uma única imagem (os olhos azuis) para falar de raça, gênero, beleza,
das raízes profundas do preconceito de gênero, raça e classe, de violência e exclusão em nossa sociedade.
Romance recomendado a leitores/as de todas as classes e idades, pode chocar um pouco afinal
mostrar que aquelas raízes são mais profundas e ao mesmo tempo mais visíveis do que gostaríamos de
admitir mas, nada além do necessário.
Referência: MORRISON, Tom. O olho mais azul. Tradução de Manoel Paulo Ferreira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019 [1970].
____________________
* Mestre em Estudos da Linguagem pela UNEB.
CINEMA
“A história de um casamento”, de Noah Baumbach
Filipe Tupiniquim*
O casal nova-iorquino Charlie e Nicolle ele, diretor de teatro, ela, sua
principal atriz não consegue mais lidar com as divergências e não veem outra
solução para a vida além da separação. Devido à cumplicidade e aos momentos
vividos, inicialmente decidem não judicializar o divórcio, mas, insegura, ela é
convencida por Nora Fanshow a fazê-lo. Abalados, ambos partem em busca da
reestruturação emocional: profissionalmente reconhecida, ela estreia uma série na TV, mudando-se para
Los Angeles, enquanto ele investe a maior parte do lucro das apresentações no próprio teatro, voltando sua
atenção a novos projetos. Após inúmeras tentativas de diálogo, a tensão do fim do matrimônio gera mais
desarmonia e confusão, chegando ao ponto de o desprezo ser o único sentimento entre eles, não havendo
sequer respeito à história anterior. Contudo, ao longo da trama, o filho Henry os leva a ponderar sobre as
atitudes de um para com o outro.
Sucesso de crítica ao redor do mundo, o longa estreou em 2019 diretamente na Netflix e recebeu seis
indicações ao Oscar melhor filme, melhor roteiro original, melhor trilha sonora, melhor ator, melhor atriz,
melhor atriz-coadjuvante , conquistando a estatueta nesta última categoria graças à atuação de Laura Dern,
também premiada no Globo de Ouro.
Referência: NOAH, Baumbach (Dir.). A história de um casamento. Título original: Marriage story.
EUA: Netflix, 2019.
___________________
* Acadêmico de Comunicação Social Jornalismo pela UNIFTC.
8
HOLOFOTES
TAVARES, Lorena Oliveira. El aliento negro de los romaníes: uma representação literária
de identidades romà. 2021. Dissertação Mestrado em Estudos de Linguagens.
Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens,
Salvador, 2021.
Por meio deste estudo, analisou-se o romance contemporâneo El aliento negro de los
romaníes (2005), escrito por um romà ‘cigano’, Jorge Nedich, a fim de interpretar como o
povo romà e sua cultura são narrados no referido texto literário, pois entende-se que discutir
a literatura romani pode se configurar como modo eficaz de compreender a construção de
estereótipos. Os percursos metodológicos da pesquisa são de caráter qualitativo e
bibliográfico, porque nela se utilizam materiais produzidos para permitir não apenas o
acesso a diversificadas fontes de estudo, mas ainda uma visão mais ampla do tema, com o
objetivo de interpretar os dados e informações que aparecem no romance, analisando as
representações da vida e das práticas culturais dos romà, levando em conta aspectos
voltados para o preconceito e a discriminação não do povo romani, mas também de seu
lugar na literatura, considerado subalternizado. Dentre os autores que influenciaram e deram
suporte teórico à investigação, destacam-se: Sória (2015), com sua tese sobre a redefinição
e afirmação identitária dos romà; Foucault (1992; 1999; 2004), com suas considerações
sobre o conceito de autor; Hall (1996; 1997; 2006; 2009) e Bhabha (1991; 1997; 1998;
2002), com seus fundamentos conceituais e metodológicos para os Estudos Culturais,
aporte teórico mais utilizado; Lippmann (1992; 2008) e Goffman (1982), com seus estudos
sobre preconceito e discriminação; Stivelman e Stivelman (2001), com seus estudos sobre o
holocausto romà; e Klinger (2012), com suas teorias e discussões sobre as tecnologias de si
e a virada etnográfica. Os resultados apontaram para a criação de uma nova categoria o
autor tripartido bem como para o papel da literatura romà na desconstrução de antigos
preconceitos e estereótipos acerca desse povo, de sua história e cultura, muitos
convertidos em fatores intrapsíquicos, de cuja existência as pessoas nem se dão conta.
LIRA NOVA
UMA CASA, UMA REDE E UM CÃO
José Mário Botelho
Quando meu pai se foi, nada deixou para mim
Além da ideia de que o homem é dono do seu fim;
Tudo ele pode, se deseja de coração.
Eu já tinha um sonho naquela época:
Uma casa, uma rede e um cão.
Crescia e me preparava para a vida.
Aos poucos, fazia, como meu pai dizia,
O meu próprio destino por tino.
Até os quarenta, forte e quente como brasa,
Me esforçava, estudando e trabalhando por uma casa.
Não parei, nem mesmo depois de realizado o sonho.
Só que agora, depois de algumas duras horas,
Descanso em minha rede de fios de algodão,
Converso com meu amigo Pingo
E rogo a Deus que todos tenham sua casa, sua rede e seu cão.
9
Agenda alia...
Em 2012, três grupos de pesquisa da Universidade do
Estado da Bahia se juntaram a parceiros da sociedade
civil organizada para formar o Coletivo de Pesquisa e
Extensão Leituras de África, nome também de evento
desde então promovido bianualmente, numa semana no
mês de novembro. Neste ano, o evento conta com três
novidades: sua primeira edição remota; a inserção de
novo grupo de pesquisa; formato contínuo, de maio a
dezembro.
Inscrições gratuitas e permanentes pelo site:
www.doity.com.br/leiturasdeafrica
Transmissão: Canal “Leituras de África” do YouTube:
https://www.youtube.com/channel/UCECdhIPMRiW03CU
TH3koLvg (Sugerimos que se inscrevam no canal e
acionem o sininho de notificações.)
PRÓXIMA MESA/LIVE:
Data: 29/07, 19h.
Tema: Afrofuturismo
Palestrantes: Profa. Dra. Luciana Correia de Oliveira
(UNEB) e outros nomes a confirmar
Mediadora: Profa. Tainara Borges de Carvalho
Evento
Período: de 13 a 17 de setembro de 2021
Local: Universidade Federal da Bahia,
Ambiente Virtual
Público-alvo: estudantes de graduação, de
pós-graduação, pesquisadores, docentes,
profissionais
Contato: sefilologicos@gmail.com
Inscrições
Período: de 26/04/2021 a 17/07/2021
Informações: http://www.xsef.ufba.br/
Referências (do artigo constante da página 2)
ALCÂNTARA, Eurípedes. Os Idos de Março”. Veja, São Paulo, 17/03/2015. Disponível em:
<https://veja.abril.com.br/brasil/os-idos-de-marco/>. Acesso: 30.jun.2021.
CARRERAS, Luís Fretes. “Os idos de março, história política do futuro”. Diário de Notícias, Lisboa,
14/02/2021. Disponível em: <https://www.dn.pt/opiniao/os-idos-de-marco-historia-politica-do-futuro-
13350176.html>. Acesso: 30.jun.2021.
DINES, Alberto. “Cuidado com os Idos de Março”. El país, 14/03/2014. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/14/opinion/1394834375_495709.html>. Acesso: 30.jun.2021.
MARX, Karl. O 18 do Brumário de Luís Napoleão Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana: curiosidades nas origens das palavras, frases e marcas.
Rio de Janeiro: Campus, 2002.
RUFFATO, Luiz. Os Idos de Março: a ditadura militar na voz de 17 autores brasileiros. São Paulo:
Geração, 2014.
SILVA, Deonísio da. De onde vêm as palavras: frases e curiosidades da língua portuguesa. 6e. São
Paulo: Mandarim, 1997, vol 1.; 1998, vol. 2.
TITO, Fábio. Brasil chega à marca de 500 mil mortes por Covid. Bem-estar, 19/06/2021. Disponível em:
<https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/06/19/brasil-chega-a-marca-de-500-mil-mortes-
por-covid.ghtml>. Acesso: 30.jun.2020.