Ainda outro dia, um diálogo doméstico e a oitiva de bela canção do grupo português Madredeus me
recordaram evento ocorrido em 2009, na Casa Afrânio Peixoto, na aprazível Lençóis, centro turístico da
Chapada Diamantina, promovido pelo campus XXIII da Universidade do Estado da Bahia, sediado em
Seabra, à época sob direção do dileto colega, amigo e compadre, Gildeci Leite. Boas lembranças de
saudoso tempo de vigor acadêmico e cultural fomentado pela universidade naquela região, de então para
cá e, mesmo antes da pandemia, infelizmente em contínuo descêncio (o vigor, a instituição)!
Durante o evento, em mesa-redonda sobre literatura baiana, um expositor tratou da presença de
deidades do candomblé nagô-ketu (de língua litúrgica iorubana), na prosa de autores baianos, como o
próprio Afrânio Peixoto (1876-1947), Herberto Sales (1917-1999) – ambos naturais da Chapada –, Jorge
Amado (1912-2001), entre outros. No fim da atividade, no diálogo entre palestrantes e público, lançaram
questão curiosa sobre haver alguma identidade entre Oxalá – nome da “divindade suprema do panteão
ioruba, abaixo apenas de Olorum” (HOUAISS, 2001, p. 2095) – e oxalá, interjeição indicativa de “vivo
desejo que determinada coisa ocorra”, sinônimo compacto de frases optativas como “Queira Deus!”, “Se
Deus quiser”, ou de locuções mais coloquiais, como “Tomara” e “Assim seja” (HOUAISS, loc. cit). Como
ninguém soube responder à questão, pedi vênia a todos e esclareci a diferença de significado acima,
acrescendo a informação etimológica sobre oxalá, afirmando desconhecer a do hierônimo iorubano.
Na época, eu apenas começava a percorrer a trilha de pesquisa, ainda hoje em curso, sobre as
diversas religiões afro-brasileiras amalgamadas no termo candomblé, via que acabou me conduzindo, em
2016, aos honrosos postos de Ogã e Obá de Xangô do venerando templo caetiteense Ilê Aṣé Danadana,
mesmo sendo praticante do Budismo Nichiren desde 1988. Essa estupefaciente contradição (que me
rendeu a gracejosa alcunha de budista-macumbeiro, dada pelo citado compadre e confrade no Instituto
Geográfico-Histórico da Bahia) seria real se eu não soubesse separar, no coração e na mente, as
dimensões do devoto e do pesquisador, ou se não nascera na Bahia, local onde, ideal e corriqueiramente,
o diverso não se contradiz ou violenta, exceto em casos lamentáveis de ódio e recalque, mais usuais após
2018, por obscuros motivos que desconhecemos. (Será mesmo?)
Voltando a Oxalá (< ior. orixá-nla < orixá + nla ‘grande’, donde ‘o grande orixá
1
’ (BENISTE, 2011, p.
592), Houaiss (loc. cit.) O define como orixá da (pro)criação, a suprema divindade iorubana, abaixo
apenas de Olorum, por sua vez, o único Deus do candomblé nagô-ketu
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, do qual Oxalá e demais orixás
são emanações. Nesse panteão, o status superior Lhe advém do papel de criador do mundo e da
humanidade – daí a alcunha Babá (< ior. ‘Pai’) –, por incumbência do Deus único, Seu Pai; Sua condição
filial leva-o a ser “sincretizado” – palavrinhas de ideologia bolorenta sincretismo e seus derivados, pois
escondem dissimetrias da formação sociocultural e brasileira – com Jesus Cristo, o Deus-Filho cristão.
Alguns de Seus epítetos destacam traços de Sua personalidade revelados em vários itãs (< ior. ‘narrativa
mítica’): Obatalá (< ior. obá ‘rei’ + ti-o ‘que’ + n’la ‘grande’; donde: ‘o rei que é grande’ ou obá + ti ‘pano’ +
ala ‘branco’; donde: ‘o rei do pano branco’), donde o caráter de orixá da pureza e da paz; Eledá (< ior.
eledá ‘construtor’) (CASTRO; ARAÚJO, 2020, p. 390-391).
Por outro lado, embora de étimo menos controverso, a interjeição oxalá, possui história igualmente
rica e ligada a uma tradição religiosa, no caso, islâmica: provém do ár. in sha allah ~ wa shallah ‘queira
Deus’ (NASCENTES, 1955, p. 371). Segundo Houaiss (loc. cit.), teria chegado ao português via espanhol
(ojalá), tendo o primeiro registro escrito em 1495. Originalmente uma oração subordinada (NIMER, 2005,
p. 593), ela é consagrada no Alcorão, capítulo 18, versículo 23: “Nunca digas: farei isso amanhã, sem
ajuntar: se Deus quiser” (SILVA, 2002, p. 346), v.g. “Se Deus quiser, iremos a Meca” (NIMER, loc. cit.). Da
alta frequência dessa expressão de profunda fé em Deus e no porvir surgiu, paulatinamente, seu caráter
interjetivo (NASCENTES, loc.cit.).
Como se vê, em português, oxalá e Oxalá são vocábulos homófonos (com a mesma sonoridade) e
quase homógrafos (com a mesma grafia), porque o módulo minúsculo ou maiúsculo da letra inicial os
diferencia minimamente, não fazendo deles um caso de perfeita homonímia, menos ainda de polissemia
(vários sentidos de uma mesma lexia), mas de convergência fonética de formas originais divergentes.
A despeito disso, o talento e a sensibilidade do compositor português Pedro Ayres Magalhães
conseguiram juntá-los na canção “Oxalá” (MADREDEUS, 2002), construída a partir da ambiguidade
provocada pela virgulação após a palavra-título que, assim, parece ser, ao mesmo tempo, uma invocação
ao Senhor da Paz (Olorum, Iavé, Jesus Cristo, Alá, Seu nome pouco importa) ou a interjeição que projeta
e submete os votos humanos à Sua vontade. Nos dois casos, uma oração, tão necessária nos atuais
tempos sombrios, desde que não pronunciada em público pelo Presidente da República, que é laica: