poesia, da narrativa ficcional e do drama, mas também da filologia, da historiografia, da antropologia, da
sociologia, da ciência política” (CARDOSO, 1994, p. 390).
Em outro texto (RAMOS, 2021), a partir do levantamento dos traços da literatura clássica, nos
aproximamos dos das línguas que as expressam: antiguidade; caráter erudito (em oposição ao popular) e
superior (hierarquização da arte e das variedades linguísticas); excelência ou grau máximo de
desenvolvimento; (ideal de) perfeição estética, universalmente válido e reconhecido; caráter referencial
(autoridade) já em seu tempo; perpetuação muito após seu surgimento; caráter modelar, com
aprendizagem em ambientes formais; renovação periódica, a partir do engenho individual.
As práticas de ensino, pesquisa e extensão consolidadas em algumas das principais universidades do
país bem como do consenso geral da academia permitem a identificação de 16 línguas clássicas (grego,
latim, hebraico, árabe, sânscrito, chinês, japonês, coreano, tupi-antigo, tâmil, persa, egípcio, antigo eslavo,
gaélico, nauatle, maia), seus usos, inclusive o intelectual-artístico, apontando, em sua literatura, as obras
com a mesma caracterização. Além disso, metade delas (grego, latim, hebraico, árabe, sânscrito, persa,
egípcio, antigo eslavônio) têm uso litúrgico, ou seja, são usadas nos rituais de religiões a elas associadas
ao longo da história, um fenômeno geral de todas as culturas. Nessas línguas ocorreu o registro escrito de
textos sagrados de cada tradição religiosa (o Novo Testamento cristão, a Vulgata, o Antigo Testamento
cristão ou Bíblia Hebraica, o Alcorão, os Vedas, etc.), base para os ritos – atuação e atualização das
narrativas religiosas contidas nos textos – de cada tradição, celebrados nessas línguas clássicas, vale
dizer, antigas, só faladas nesse contexto. Segundo Bagno (2017, p. 252),
O emprego de línguas arcaicas confere às religiões um caráter esotérico de antiguidade e
de decorrente autoridade, além de restringir o conhecimento íntimo e profundo da teologia
a um grupo seleto de iniciados [...], o que faz desses idiomas um dos muitos instrumentos
de controle social e ideológico, um capital simbólico, portanto. (grifos do autor)
Esse capital simbólico se compõe de alguns elementos e suas relações entre si (BAGNO, 2017):
gestos, movimentos corporais e comportamentos linguísticos, equivalentes de eventos anteriores e
vinculados a tempos e/ou lugares remotos, com base na (crença de) repetência e permanência do rito,
capaz de recriar ou imitar “mundos sociais por meio de atos de fala” (TAVÁREZ, 2014); texto com
construções estrutural, semântica e estilística paralelas e repertório vocabular específico, com palavras
esotéricas, estrangeiras, arcaicas ou ininteligíveis, logo, intensamente metafórico e frequentemente opaco;
qualidade de voz, entonação e prosódia especial, fluente e estilizada, barreira para a expressão da
personalidade do(a) celebrante do rito e determinante da isenção de sua responsabilidade quanto às
palavras proferidas, já que ele(a) é apenas um canal transmissor de texto oriundo de fonte externa a si.
Essa fonte externa tanto pode ser o documento concreto, instituinte da forma e conteúdo do rito – v.g.
o Missale Romanum ‘Missal’ católico, que, inclusive, põe em partitura, os aspectos melódicos da fala
estilizada do celebrante (SANCTA SEDES APOSTOLICA, 1922, p.119-21) –, quanto “a personificação de
divindades e entidades não humanas por meio de atos de fala” (TAVÁREZ, 2014), algo típico, entre nós,
das celebrações da Umbanda, da Encantaria e do Candomblé, entendidos esses últimos como os termos
genéricos respectivos das religiões indígenas e afro-brasileiras (exceto a Umbanda).
Cada nação de Candomblé utiliza uma língua litúrgica africana: a nação Nagô/Ketu, o ioruba; a Jêje-
Mahi, o fon (fongbé); a Angola, o quimbundo ou o quicongo. Contudo, o uso ritual dessas línguas – que as
leva a serem chamadas línguas-de-santo (CASTRO, 2002) – se dá desde um estágio pretérito, vale dizer,
antigo (seguramente do século XIX, talvez anterior) delas, que continuaram sua natural trajetória histórica
de variação e mudança nos espaços de origem, porque deixou de haver comunicação regular entre as
comunidades de usuários dos dois lados do Atlântico, com o fim do tráfico negreiro e, depois, com a
Abolição. A cristalização de estágios antigos dessas línguas, em uso ritual, faz delas fósseis linguísticos
(CASTRO, 2009). Temos, então, dois traços de línguas clássicas nessas línguas: uso ritual e antiguidade.
Além disso, originalmente, todas elas possuíam uma rica oratura, formada por narrativas míticas (os
itãs e odus iorubanos), cânticos às divindades, elementos esses registrados, sobretudo por etnólogos e
antropólogos desde pelo menos o final do século XIX, mas, mais recentemente, também pelos próprios