I
Vivi todo o tempo alheia a mim, num mundo fechado, cercado, tolhido. Eu que, querendo ver, de tão distante, me vi alijada de tudo. Eu, corpo estranho em mim. Eu, avestruz, cabeça escondida, fingindo não ver que não era.
Quedo-me ante essa constatação... Deixei que me impedissem de ir,
enquanto, trôpega, lutava por ir. Violentei-me, deixei de ser, simplesmente.
Que fiz eu?
Como me agüentei esse tempo todo não sendo? Como pude privar-me de mim?
E hoje?
Entro na vida trôpega realmente. Atrofiei-me deveras, deixei-me amputar, mas quero andar e quero ir e quero correr. Daí meu paradoxo constante, doído, surpreendente, que é, na realidade, meu bem maior e que me faz amada, porque dócil e brava, meiga e ríspida, branda e áspera – eu em mim, eu nascida do meu eu forjado.
Eis-me. Tal qual num lamento, me ouvi. Lá dentro. E me parei. E me vi.
Em agonia. Buscando crescer, transmudando-me em força e gritando por mim.
Revi-me.
Refiz-me.
Refaço-me.
Resvalo ainda pelo meu eu forjado.
Meus dois eus se confrontam, se medem, se estudam e se querem. São
puros: o sido e o deixado de ser. Querem-me. Quero-os juntos. Unidos no meu eu
verdade, no meu eu certeza, no meu eu que é
afinal. Meu eu seguro, meu eu firmeza, meu eu que quer e faz e meu eu
sofrido, crucificado em dor, temendo abrir-se. Quero-me eu, plena em mim, sem
remendos ou cerziduras. Eu porção-partícula do Eu maior.
Eu me lastimo. E me amo, por me ver força, embora tendo sido atrofiada, impedida de expandir-me. Com que direito me afastaram de mim?.
Respeito-me por me ver reagindo, refazendo, querendo ir, embora ficando.
Desorganizo-me ante a dor e me organizo e cresço por ela. Nada de pensá-la,
nada de entendê-la. Sofrer e crescer com ela. Sem conformismo. E sem desespero.
Quero parar de ver porquês e causas em tudo. Necessito um pouco da inconseqüência
do não ver e da irresponsabilidade do nem sequer tê-lo tentado. Quero lançar-me,
cega e surda, de cabeça. Mas meu eu trabalhado, instruído, me refreia e tolhe,
e poda e reprime. Eu o sou, afinal.
Onde o melhor de mim? Quando me dirijo ou quando me deixo fluir
livremente? Ou em ambos está o meu encanto?
De repente, ante uma dor maior e a atitude mais adulta da minha vida
rompo bloqueios, desato cordões, quebro tabus, derrubo barreiras e descubro-me
entre os escombros... medrosamente escondida, trêmula por ver-me tão capaz de
derrubar, e reagir, e refazer. Ou eu trêmula com medo do “E agora?”?
Eis que tento levantar-me. Soergo-me das ruínas, a perna trôpega
ainda.
Espanto-me comigo. Eu decidi a minha vida! Eu sai para ela por um furor há
muito embotado e ensurdecido. Percebo-me instigando-me a ir. Não mais me será
permitido esquivar-me, deixar de ser.
Vejo-me em atalhos. Vejo-me em caminhos tortuosos e trilhas. Antes, nem
me permitiam vê-los. Setas indicativas do ir e vir, eis o que tive. Indico-me
aonde ir agora, embora manual condicionado ainda. Cuidado, curvas perigosas,
pista escorregadia!
Dirijo-me. Às vezes, pegam carona em mim e me desviam do caminho. E
novamente meu eu antes dormindo se rebela e faz saltar quem me tenta desviar. Não
mais vou permitir que não me deixem buscar-me. Onde estacionarei?
Derrotei-me por mim mesma no deixar que me induzissem a não ser. Tendo
exorcizar-me do meu eu feito de castração e negaças. Mas não posso. Ele sou
eu. Sou ele.
Fundo-me em ambos. E renasço. E refaço-me. E tento ir. Caio. Levanto-me
cambaleante.
Como ser eu agora? Como ser-me em mim?
Inquiro-me, vasculho-me. Evidencia-me a constatação de que nunca fui
eu, realmente eu, querente e plena, automatizada que fui no “não
posso” “não devo”, “não é bonito”.
Foi preciso me ver só, não conduzida, para ver que sempre estive só,
deixando que se impusessem a mim como companhia.
Existo em mim agora. Acompanho-me.
Mas como ser livre?
Responsabilizo-me e regozijo-me por minha solidão. E agora? Que fazer
com ela e dela? Buscar-me, trazer-me de volta para mim. Só a mim me pertenço.
Coube-me o que sobrou de mim. Do meu espólio ficou minha melhor parte,
que, reagindo, ressurgiu dos escombros e busca crescer. Jaz dividida, macerada,
multifacetada, surpresa ante si mesma por desconhecer-se - nem se sabia.
Meus filhos... minha prova de que cresci, apesar de tudo. Meus adultos
que ajudam a criança que permanece em mim. Minhas crianças que me fazem
sentir-me adulta e forte.
Eu... viva em mim.
Eu... constatando-me.
Valha-me Deus, eu sou!
II
Contactei-me no espaço de mim. Foi preciso ser só para rever-me, para
ver-me talvez pela primeira vez.
Eliminei-te do meu espaço. Retirei-te. E só então pude encarar-me e
merecer-me. Sou-me grata por isso.
Quedo-me por instantes meditando nisso que acabei de dizer. Pude dizê-lo
sem mágoas ou fel. Sou maior agora. A maioridade do ver-se tal como se é. Nada
a ver entre nós. Nenhum dos dois era. Não nos soubemos tão distantes, díspares,
excludentes.
Cumpro-me. Tenho de ser, na orfandade de pai, mãe e amor. Nenhum cordão.
Há um acúmulo de amor em mim. Até que eu realmente cresça, ele estará
mal distribuído às vezes, ou reprimido em vão. Não me foi permitido ir o
suficiente para saber vacinar-me contra o eu errado. Vou-me agora. Quantas vezes
for necessário. Quanto se precisa decepcionar para crescer?
III
Há algo subjacente ao meu eu sendo. Sendo-me em mim. Valho-me dele para
lutar, para vencer, para ir, para cair e levantar, para sorrir apesar de tudo,
para viver apesar da morte do dia-a-dia.
Não me vejo sincronizada ainda. Falta o encaixe perfeito do meu eu
comigo. Falta regular o fotômetro de mim..
Quero-me toda, inteira, harmonia de pensar, agir e sentir. Pensei e não
fiz, fiz sem pensar-me, sem sentir, sem fazer, deixei fazerem-me.
Fragmentei-me. Fui em pedaços, aos pouquinhos, por trás das cortinas,
pelo buraco da minha fechadura, pelas frestas das minhas janelas.
Quero escancarar-me em portas e janelas e deixar-me ver. E ver-me.
Bendito descobrir-se, olhar-se no espelho de si mesmo!
E quando olhar-me de frente? Desconfio-me agradável de ser vista, mas e
se me agredir pelo que me castrei no mais das vezes? E se devassar-me e
sobrar-me o que não fui? Ou me envolverei no abraço agradecido por ver-me
liberta?
Vamos ver, quero-me como for. Preciso amar-me para ajudar-me a unir as
duas partes de mim. E me amarei. E só então serei capaz de amar realmente.
Quero ir e, no entanto, esquivo-me, embora tentando alçar vôo e ser
livre. Asas atrofiadas de mim, sejam fortes! Será que estarei sempre tentando?
Ou me verei no cume, asas ruflantes e leves?
Sacudo as asas. Tento sacudir o passado. Ele pesa em mim.
O espaço me chama. E eu aqui, presa a mim.
IV
Sou apenas uma fração de mim - imprópria e indecisa -,
mais razão que instinto. Quero animalizar-me um pouco.
Fizeram-me racional demais.
Espera-me e recebe-me um dia. Te busco como busco meu eu completo, em razão,
sentimento e instinto.
Por que me proibiram de mim? Por que me dirigiram e orientaram,
instintos, tendências e desejos? Viciei-me em racionalizá-los.
Vejo-me em duas partes assimetricamente dispostas. Não busco a desordem
do eu só instinto, nem a perfeição do eu dirigido. Busco o eu pleno -
a desordem do instinto e a harmonia do dirigir-se pensando.
V
Transponho meus umbrais. Vejo-me nebulosa ainda. Mas já me vislumbro.
Tenho medo. Temo ir-me. Temo ver-me toda.
Resto-me aqui. Meus fantasmas se acercam de mim e, à medida que os
afasto, mais nítida fico-me.
Emociono-me ante minha visão. Nó na garganta.
Vou dar um bafo de mim nessa imagem enevoada e esfregá-la. Talvez a veja
mais nítida. Quantos bafos de mim me neguei deixando-me bafejar pelos outros.
Deixei-me levar, bocejante, esse tempo todo! Como fiquei em abstinência de mim
tanto tempo?
Já se tentou ver no escuro, diante de um espelho, com uma vela acesa do
lado? É como me vejo agora. Iniciação de mim - eu neófita.
Estive no muro de mim esse tempo todo. Quero pular para o meu lado
verdadeiro. Mas me contaram que há lobos ferozes e ameaçadores à espreita.
Quero pular.
Ralo-me.
Chego ao chão num baque surdo.
Não há lobos...
Que pena de mim no meu muro esse tempo todo...
Tra-la-lá, que gente é essa.
Tra-la-lá, que gente má...
Não havia lobos?!
E eu me prendi à estrada esse tempo todo?!
VI
Retomo-me. Ainda é tempo. Tentarei eu mesma me criar, deixando-me ser e
ir.
Ei, você aí, de cima do muro, como gostaria de ajudá-lo a pular!
Quantos morrem acreditando nos lobos!
Gozado, minha imagem se torna mais nítida -
tal qual num espelho embaçado que se limpa, aos poucos, após abrir-se a porta
do banheiro e desligar-se o chuveiro.
Silêncio, não me impeçam de ir ao meu encontro.
(in Antologia do II Concurso de Contos DEFI, org. Fábio José, São Paulo, Impressão OESP, s/d, 122p. p.47; in Arte Plural, Rio de Janeiro, Fundação RIO ARTE, mar./abr./1991. p.11.)