GURAU


 

 

             Não, não era nada. Era o vento, só. Pensou ter ouvido algo. Assustou-se. Há muito era assim na sua solidão. Desde pequeno, o barulho do mar de encontro às pedras. A mãe, o pai, o irmão. Perdeu todos. Mais mulher e filhos. Desastre. De trem? Nem lembra mais. Hoje, só. Sobressaltado e só. Só e sobressaltado. Que importa? Só, simplesmente.

            Já que acordou, vamos a um café. Vício. Nada que fazer. Beber café então.

            Queda-se ante o nada fazer. Se não lhe falha a falha memória, houve, há muito tempo, muito que fazer. Que era mesmo? Lembra-se de carros, pasta, papéis amontoados numa mesa. Que mais? Que havia, havia. Muita coisa por fazer. Muita gente ao redor. Vagamente se lembra. Que será?

            Dor na cabeça. Tenta de novo. Idéias confusas. O café o acordara de vez. E agora?

            De repente, isso, um como que de consciência, laivos de lembranças opacas embrumadas de passado.

            Tenta dormir. Não, não consegue. Tenta lembrar. Inútil. Tenta esquecer de vez. Apagar os vestígios salpicados na memória. Como?

            Quer morrer o morto-vivo.

            Amanhã, novamente a inconsciência do nada ser. O esmolar. O comer de favor. A paz da loucura. Ah! mas esse querer lembrar! Esse saber que há algo por trás das brumas do inconsciente! Algo terrível, triste, sombrio. Só pode. Pressente. Mas o quê?

 

* * *

 

            Manhã amanhecida, lá vem ele. Esqueceu-se de que tinha que lembrar.

            Os moleques: Gurau! Gurau! Não o atacam. Ele não agride, nem diz palavrão. Parece que foi gente fina. Dizem que perdeu todo mundo num desastre. De trem?

            Estava alegre. Parecia adivinhar passarinho verde. Que seria? O que, dentro de si, o faria sorrir o sorriso descontraído e bêbado dos loucos e esquecidos?

            Foi desastre. De trem?

            Crianças brincam num lago. Viram-no. Gurau! Gurau! De onde tiraram esse apelido? Sai lá, coisa de criança.

            Duas crianças na janela de um trem, acenando... Que coisa é essa? Tenta prender isso na mente. Já se foi. Duro isso. Duro querer lembrar.

            Ah! o cachorrinho do Toninho... gosta dele. Ele o segue sempre até a esquina e volta. Lá está ele. Vão juntos. Nada a ser dito ou abanado. Nem é preciso se olharem. Um ao lado do outro, até a esquina. Um segue e o outro volta para seu dono. Só de empréstimo... amizade por momentos, todos os dias.

            Lá vai José Francelino da Silva Prado - Gurau, agora.

            De uns tempos para cá, esse querer lembrar. Matutando, matutando.

            Lá vem o menino bonito e sua babá. Dá adeus para ele.

            As casinhas de papelão que constrói, distribuiu-as pela garotada. A estação de trem, deu-a para ele, o menino bonito. Está linda, até trem parado tem. Trem... de novo o trem. Como vagões que se engatam, as lembranças se tocando.

            Bom dia, José Francelino! Dona Corina o cumprimenta e lhe dá a garrafa de café. Ele lhe varre o quintal.

            Dizem que foi gente fina. Agora varre o quintal de dona Corina.

            Como foi parar ali, naquele lugar perdido? Dizem que era da cidade.

            A comida, seu João, do armazenzinho, lhe dá em troca de algumas entregas.

 

* * *

 

            De novo, a noite, a solidão, as lembranças batendo palmas para entrar no consciente. Algo não deixa. Defesa. Se perdeu a memória por elas, é melhor esquecê-las, para não enlouquecer de vez.  Que o deixem em paz, então.

            Na manhã seguinte, tudo igual. Fizera uma casinha de papelão. Essa é da Zulmira, a menina paralítica. Ela lhe oferece uma flor e lhe empresta a sua boneca, por instantes. Uma boneca como aquela terá visto antes. Aquela menina lembra outra. Que outra? Por que me olha assim, Gurau? Não sei, Zulmira, não sei, não sei, não sei... Aperta a cabeça. Dói lá dentro. Corre. Joga-se na areia da praia. Jaz esquecido por tempos, até escurecer.

            De novo o barraco, a solidão, o querer lembrar, o café, o tentar dormir, o café... Por que, de uns tempos para cá, não consegue dormir?

            Vá lá que seja, vamos olhar o céu. Dormir no quintal.

 

* * *

 

            De manhã, a cidade em festa. Que será? Na estação, todo mundo, até o Dr. Ziraldo, que lhe dá amostra grátis de umas vitaminas, além dos trocados para fazer a barba.

            Corre, boné na mão. Ah! tinha um boné que nunca largava, desses de propaganda. Noca, da loja de materiais de construção, o mandara fazer. Lá ia ele, propaganda ambulante e gratuita de H. M. Materiais de Construção Ltda.

            Todo mundo na estação. Passa, hoje, pela primeira vez, o expresso novo, igual aos da cidade. Crianças com flores nas mãos para saudar o trem. Corre-corre, novidades, vantagens... Tudo sai, enquanto se espera. Gurau ali. Uma tensãozinha dentro dele, uma angústia, um peso no coração.

            De longe, o apito. Todos se chegaram. Cuidado, crianças! Gritam as mães. Gurau lá, tenso. Nem sabe por quê. Ao longe, o trem. Apito prolongado saudando a cidade. Angústia. Flores sacudidas. Lenços, vivas. Gurau lá, que medo de repente. Cabeça explode. Passam vagões. Numa janela, uma mulher e duas crianças, uma com uma boneca. Marina! Marina! Grita Gurau. Ela nem olha. Não é Marina. Mas para ele é. Mas é para ele. Marina e seus filhos, dele e dela. Todos riem de Gurau. Na euforia, nem notaram seu rosto de angústia e dor aguda, retida, escondida, enlouquecida.

            O trem movimenta-se. Já se despede da cidade. Todos o vêem sair, devagar, depois acelerando mais e mais. Para José Francelino ele descarrilou... uma boneca no trilho. Corre como um louco. Tenta entrar no trem, que vê descarrilado.

 

* * *

 

            Gurau... uma massa humana disforme e vermelha.

            Que será que deu nele? Se jogar assim, embaixo do trem!

            Quem era ele? Dizem que foi gente fina. Perdeu a família, mulher e filhos, num desastre. De trem?

 

  

(in O Conto e o Dono do Conto, org. Heli Samuel e Hélio Moraes, Prefácio de José Louzeiro, Coleção “Contistas do Brasil”, Rio de Janeiro, Editora CODPOE/SERJ,1987, p.107-112.)

    Sobre este texto veio a dizer Ciro dos Anjos: “Bela página.. Mas como dói!”

 

 Voltar ao índice