Rainha do Lar
Como se fosse a última vez, ela se deixou tocar. Deixou-se levar no afago sem tato, sem sentir. Não mais vibrava, não mais se dava realmente.
Em sua mente, passaram-se coisas, ditas e ouvidas, retidas lá dentro, indo e vindo esse tempo todo: a queixa pelo feijão queimado - afinal as coisas estão vindo pela hora da morte; a cara feia e o comentário irônico ante suas inseguranças; a bronca pelo arranhão no carro... Mas o amassado no paralama, numa manobra apresada, dele, não recebeu o mínimo comentário. O não ter dinheiro para as coisas dela, e os gastos com chopinhos e jantares e jantares com amigos.
Virou-se para o lado, no tédio manso dos que se conformam. E chorou.
Chorou o prazer fingido, a carícia forçada, o grito reprimido. E amaldiçoou o ser mulher, dependente e frágil.
Lembrou do curso interrompido,as cobranças quando a via estudando - era quando queria exatamente o par de meia que estava no cesto de roupa suja, a camisa que estava sem botão. O colarinho a ser repassado porque franzira, a meia furada, o botão a ser pregado. Lá,à sua espera.
O levantar cedo, o dormir tarde - era sempre a última a se deitar; a escolha da comida a ser servida - ele queria sempre uma comida diferente, sempre; as queixas do sal a mais ou a menos; a sobremesa inexistente e cobrada; a poeira do móvel esquecido; as plantas a serem molhadas ...Lá à sua espera, dia após dia.
Algo dentro de si se avolumou e chegou à garganta.
Tentou dormir, não conseguiu. Tentou conversar, ele já dormia. Nunca entendera o seu sono tão fácil, mesmo quando a sabia magoada e sofrida.
E odiou seu ronco espaçado e falho. E teve nojo do seu suor. Causou-lhe náuseas o cheiro acre que lhe ficara no olfato e nas entranhas.
Limitou-se a chorar mansinho, surdamente, na impotência dos que se crêem num poço sem volta, no medo dos que se sentem fracos, na inércia dos que jazem mortos na vida sem horizontes, sem armas e sem fé.
No dia seguinte, o café, o pão comprado na padaria do bairro, a pressa dele no beijo rápido e sem sentido. E a sua certeza do nunca mais.
(in AIÓ. Caderno de Cultura da Revista Lótus, n.º 4, direção e editoração de Rogel Samuel, Rio de Janeiro, Ed. Lótus, s/d. p.05.)