A CONTRIBUIÇÃO DE CELSO CUNHA

PARA A EDIÇÃO DE TEXTOS MEDIEVAIS[1]

                  

Hilma Ranauro (UFF/ABF)

           

Para a fixação dos textos críticos da poesia trovadoresca, para edição crítica reconstrutiva de compilações e de autores singulares ressalta Celso Cunha[2] a necessidade de um paciente trabalho de aproximação do original, precedido de um conhecimento aprofundado do caráter e do significado histórico das compilações, na busca, inclusive, da depreensão das técnicas editoriais da época, com especial atenção quanto à polissemia e à movência do texto medieval. Após considerar que todas as referências a códices trovadorescos anteriores aos apógrafos italianos localizam-nos em bibliotecas de nobres, conclui que naturalmente os autores dessas compilações se terão permitido reelaborar as cantigas segundo o registro lingüístico culto, próximo ao do público refinado a que elas  se destinavam. Com isso, muitas formas teriam sido neutralizadas, eliminando-se a maior parte dos efeitos das variações diatópicas, diastráticas e mesmo diafáticas, próprias de qualquer idioma

Alerta para  os problemas gerados pelos editores modernos a “calafetar” o verso para torná-lo regular . Estariam esses editores-intérpretes” a retocar os textos até mesmo onde os primeiros compiladores, embora buscassem moldá-los a uma norma culta vigente, não lograram fazê-lo. Lembra que editores de textos medievais costumam confundir lição autêntica com lição exata ou correta, o que os leva à construção de arquétipos com a eliminação das variantes, substituindo o gosto e o saber do autor dos textos pelos seus, na negação do próprio conceito de arquétipo, pois que ele se justifica exatamente pelos erros conjuntivos que apresentam os manuscritos.

Para edição dos códices pelos quais se conservaram os textos medievais, recomenda a fac-similar, “que nos apresenta o livro medieval em sua concreta realidade”. (p.47). “O códice”, vem a considerar,  “é o próprio original”. (p. 48). Lembra  que uma edição crítica reconstrutiva é o coroamento de um paciente trabalho de aproximação do original. Essas compilações seriam, por excelência, o livro medieval. Estudá-las, em sua articulação e estrutura fundamental,  é o caminho para a depreensão das técnicas editoriais da época, do funcionamento dos scriptoria, da correlação entre os manuscritos para o estabelecimento dos dados codicológicos básicos com vistasedições críticas de autores individuais.

             Alerta sobre os cuidados na edição de uma obrapartir  do quatro sentidos propostos por Dante (Il Convivio): literal, alegórico, moral (ou tropológico) e anagógico (super-sentido), partindo-se do primeiro (literal) para a depreensão dos demais. Lembra que Dante  afirma ser o sentido da poesia menzona, coisa ficta pelo poeta. Lembremos Fernando Pessoa ao falar do poeta como um fingidor.

Ressalta ser característica fundamental da cantiga de escarnho o fato de ser construída sobre o equívoco e de permitir duas interpretações, como se observa na Arte de Trovar do CBN. (p.  ). Apresenta textos medievais por meios dos quais pode-se depreender a preocupação de seus autores em advertir o leitor sobre os vários sentidos que lhes subjazem. Assim sendo, conclui, não cabe atribuir à Nouvelle Critique francesa “a descoberta da polissemia do texto literário e a conseqüente legitimidade de qualquer interpretação ou leitura por ele sugerida”, como se veio a afirmar nos últimos tempos. (p. 24).

Chama a atenção para a ambigüidade polimórfica presente nos poetas trovadorescos. Cita Paay Gomes Charinho a comparar as inconstâncias do mar ao comportamento do Rei de Castela e Leon e Pero Meogo a representar o namorado e o amigo pelo cervo. Na realidade, alerta, não se estaria diante de um sentido alegórico, mas literal, visto ser o esperado pelos leitores e ouvintes da época. Ao filólogo caberia, preliminarmente, o estabelecimento do sentido literal, sabendo-o rico em suas potencialidades, e, ao editor, conhecer a cultura da época em que se situa o autor escolhido, para que não sejam interpretados como metáforas ou criações suas o que, na realidade, são topus, codificados.

O filólogo clássico trabalharia com a tradição quiescente, a dos scriptoria. Seu trabalho ecdótico se basearia  numa relativa raridade de erros conjuntivos em nível de arquétipo. O filólogo românico trabalharia normalmente com a tradição viva. Seu trabalho ectódico se basearia numa relativa abundância de erros separativos, efeito natural da movência. Ambos, filólogo clássico e filólogo românico, se ateriam a problemas comuns, mas como/com? experiência diversa. Para tanto, há que atentar para os aspectos semânticos do léxico, para a polissemia e movência do texto medieval, seu estudo genético, suas variações, geradas ou pela transmissão oral ou pela indiferença dos escritores medievais quanto à propriedade e à  originalidade da obra, que alteravam.

Lembra que, durante 150 anos, a poesia trovadoresca viveu cantada, o que em muito terá aumentado sua tendência à movência, e que foi no séc. XIII que ela começou a ser coligida. Esse fato, pondera, a predispõe a outras variações, desta vez a cargo dos copistas. A abundância de erros separativos”, afirma, é efeito natural da movência. (p.58). Numa análise filológica sistemática e profunda, com base em minuciosos estudos scriptológicos e codicológicos, caberia detectar e resgatar, subjacente ao formalismo superficial, a língua livre, “no seu concreto operar”. ( p.60). Caberia atentar para o “permanente fazer-se da obra medieval”. (p.36). assim, alerta, ter-se-ia uma segurança maior na fixação dos textos críticos da nossa poesia trovadoresca.

Recomenda que igualmente se atente para os problemas gerados pala pontuação medieval. Lembra que sobre sua finalidade, atébem pouco tempo, quase nada se sabia. E que ela não obedecia à sintaxe, como em nossos dias, mas ao ritmo. Ressalta a necessidade de atenção para os problemas que se relacionam à própria sintaxe, a eterna filha abandonada da filologia medieval”. O estudo da versificação seria etapa essencial da investigação crítica, de modo a detectar fenômenos que, incidindo sobre o suporte fônico, possam ter contribuído para a modificação da estrutura do verso.

Caberia um estudo, prévio, das normas pelas quais se pautavam os encontros vocálicos, intra e interverbais, bem como das possibilidade de escolha dos poetas para resolver tais concorrências vocálicas. Para tanto, esclarece, é necessário que se pesquise, exaustivamente, o comportamento das sílabas átonas, certos fonetismos peculiares a determinados períodos do idioma.  Lembra que certos trovadores e jograis declaravam não saber igualar o verso, nem rimá-los com perfeição, e que o ritmo dos versos por vezes se moldava ao ritmo da música pela qual se faziam acompanhar, o que interferia na distribuição dos acentos e da qualidade das sílabas, alongadas ou reduzidas, para igualar-se ao tempo musical, o que João de Barros o documentava no séc. XVI.

Quanto às questões scriptológicas, levanta um outro problema, “crucialsegundo ele, a ser enfrentado por quantos intentem fazer um estudo de um texto medieval, qual seja, o de, partindo da análise do material grafemático, depreender o subsistema fonéticofonológico  a que estaria obedecendo o autor. , pondera, um outro problema surgiria: que ortografia seguir na apresentação das cantigas trovadorescas, uma vez que nenhum acordo fora possível, até o momento, devido ao “radicalismo de certas posições? (p.81).

Ressalta a necessidade da formação de uma equipe especializada para que se viesse a elaborar o Grande Dicionário da Língua Medieval Galego-Portuguesa. Para tanto, dever-se-ia buscar conciliar o aspecto científico com o econômico, num sistema tanto quanto possível maleável, para que se resguardem as variações fonológicas e se alcance uma superior unidade. Isso facilitaria a divulgação da lírica trovadoresca, que é, salienta, não um patrimônio da cultura medieval galego-portuguesa, mas um patrimônio da Humanidade. Recomenda que, assim como a crítica textual se beneficiou dos progressos da informática, também se busque fazê-lo com referência a algumas teorias e noções da Lingüística, como a teoria da variação, os conceitos de norma, níveis de língua, registro, diassistema, geovariantes, cronovariantes, dentre outros. Tais conceitos, bem como a metodologia que pressupõem, aplicados à crítica textual, pondera, ajudariam a diminuir o campo do ignoramus da Filologia.  


 


[1] Texto apresentado em Mesa-Redonda na Mesa-Redonda nº 3, em 27/08/2002, de 8.00h às 10:00h, do VI  Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, realizado de 26 a 30/08/2002, no Instituto de Letras da UERJ. Promoção: Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos (CiFeFil). Apoio Acadêmico: Academia Brasileira de Filologia (ABF).

[2] CUNHA, Celso Ferreira da, Significância e Movência na poesia Trovadoresca. Questões de Crítica Textual, Coleção Diagrama, n.º 12, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985.

 

 

 

Voltar ao índice