VERSÃO DEFINITIVA

 

O ATO E O FATO DE LER

 

Hilma Ranauro

 

Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem

(Mário Quintana)

“...uns se jactam do que escreveram, quanto a mim, me orgulho do que li.”

(Jorge Luis Borges)

 

            A leitura é um fato político por excelência, com toda a abrangência semântica do termo. O temor da leitura, do saber por ela adquirido (e saber é poder) levou a que muitos morressem por escrever livros ou por buscar preservá-los ou multiplicá-los. No campo religioso, lembremos, muitos morreram na Inglaterra por possuírem um exemplar da Bíblia vertida para o inglês (a Bíblia de Wiclif e a de Tindale, ele próprio sacrificado).

            É de se perguntar por que não queriam que se vulgarizasse o texto bíblico. E, aí, se chegaria ao cerne de todo sistema de dominação. A violência com relação ao livro como veiculador de idéias tem vários registros na História. Em todo regime autoritário, sabemos, é grande a perseguição aos intelectuais, aos professores universitários, aos escritores, aos poetas e aos jornalistas de um modo geral. Impedir um povo de ter acesso à informação e à cultura como um todo é a principal forma de dominação e a maneira mais eficaz de manter o estabelecido, o status quo.

            Todo um sistema de dominação foi ameaçado quando Lutero subverteu a ordem religiosa vigente ao traduzir a Bíblia para o alemão. Ao retornar aos textos originais, num processo de (re)leitura, percebeu que a construção do sentido do Novo Testamento apontava para outra direção que não a pregada (explorada?) pela Igreja de então.

            A tão propalada e discutida superioridade do povo judeu é resultado de sua alfabetização. Numa época em que até reis eram analfabetos, os judeus, por sua fé, eram obrigados a ler seus textos sagrados, hoje coligidos no Velho Testamento. Esse fato proporcionou aos judeus a formação de um arcabouço intelectual, este sim reconhecidamente superior.

            Reduzir a cultura, a instrução, o saber – sob a pecha de “eruditismo” – ao nível do supérfluo, do lazer puro e simples, do diletantismo é não só compactuar com isso como também contribuir para condenação de um povo à dominação de uma casta de “iluminados”. Colaboram, como úteis inocentes, os que condenam o “saber do mundo”, sem restrições e em todos os níveis, como “loucura para Deus”. E o fazem por uma interpretação equivocada de uma passagem bíblica.

            Ler, nunca é demais lembrar, é muito mais que a simples decifração de um código. Pela leitura se desenvolve e exercita o pensamento crítico. Por ela se desvendam e se desvelam as artimanhas dos discursos, percebe-se o que lhes subjaz, nas entrelinhas, e se é capacitado para o ato de leitura do próprio mundo.

            Afora o milagre, o sobrenatural, o divino, o próprio ato de ler a Bíblia, no processo de leitura (diferentemente de “dar uma lida”), aponta para a revelação maior do ato de ler no seu processo de desvendamento de sentidos.

            A Bíblia é o grande texto, o grande best-seller sequer relacionado pela mídia na lista dos mais vendidos. Ela chegou até nós, e a duras penas, porque houve quem soubesse ler e escrever. E esse saber foi adquirido, construído e aperfeiçoado ao longo dos tempos. Não surgiu num passe de mágica, ou num milagre absoluto e radical de Deus, que até poderia fazê-lo se o quisesse.

 

 

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