O LEGADO DE JERÔNIMO SOARES BABOSA[1]

 

Hilma Ranauro

 

 

A GRAMÁTICA DE PORT-ROYAL

 

          A publicação da Gramática de Port-Royal (1660) representa um corte epistemológico e uma ruptura com o modelo latino. Surge como resposta às insatisfações com a gramática formal do Renascimento.  Inicia-se a busca do rigor científico, na ruptura com o método das gramáticas anteriores.

                    Com fundamento no racionalismo francês, com base em princípios aperfeiçoados por René Descartes (Discours de la méthode), surgem as tentativas de elaboração da gramática filosófica, a partir do princípio de que a língua é a expressão do pensamento e que o pensamento é governado pelas mesmas leis em todos os seres humanos, daí concluir-se que deveria a língua refletir essas mesmas leis, sendo possível, pois, a elaboração de uma gramática geral, comum a todas as línguas.

          A esse período da história da Lingüística Noam Chomsky vem a classificar de “lingüística cartesiana”.

          O auge da orientação lógica nos estudos gramaticais encontra-se na Gramática de Port-Royal. Há que lembrar, porém, que, anteriormente, no século XVI, Escaligero (1540), Ramus (1559) e Sanchez (1587) igualmente romperam com a tradição humanística e procuraram dar bases filosóficas ao estudo da linguagem. (cfr. Padley, 1976, p.58).

          Julius Caesar Escaliger (De causis linguae latinae) procurou aplicar à língua as categorias lógicas de Aristóteles. Francisco Sánchez  de las Brozas (Minerva seu de Latinae linguae causis et elegantia) buscou a estrutura lógica comum a todas as línguas. É por alguns considerado o verdadeiro fundador da gramática geral clássica. Lembra Fávero que, segundo R. Donzé (1970, p.XII), o contato de Lancelot com a obra de Sanchez teria ocorrido aproximadamente em 1654. (Fávero, 1997, 107).

          À gramática não caberia ser somente o registro de regras, normas e preceitos com base no uso simplesmente: não mais o uso como o único mestre das línguas, como apregoava Vaugelas (Remarques sur la Langue Française – 1647), idéia que predominou até a primeira metade do séc. XVII, em que a gramática era concebida como o registro dos usos, dos “bons usos”, a serem estabelecidos com base na “qualidade” ou qualificação dos usuários; não mais o uso por si mesmo, mas a procura de seu fundamento racional.

          Numa análise sobre a importância da Gramática Geral, lê-se, no Dicionário as Ciências da Linguagem:

 

“Se essas regras podem aspirar a um tal poder explicativo, é porque, apesar de fundadas na lógica, não se concentram com repeti-las: exprimem a sua transparência possível através das condições naturais da comunidade humana”. (Ducrot & Todorov, 1775, p.220).

 

          Quanto à  sua importância histórica, afirmam:

 

“Primeiro que tudo, ela marca, intencionalmente pelo menos, o fim do privilégio reconhecido, nos séculos precedentes, à gramática latina, que tendia a apresentar-se como modelo para qualquer gramática: a gramática geral é tanto latina, quanto francesa ou alemã, mas transcende a todas as línguas”. (Ducrot / Todorov, 1975, p. 220).

 

          Sobre o assunto, vem a afirmar Said Ali:

 

“Regras comuns às línguas conhecidas ou a um grupo de língua congêneres, costumam-se chamar, exageradamente (grifo nosso), regras ou princípios de Gramática Geral”. (Ali, 1966, p.15).

 

          Cabe lembrar que os fundamentos dessa Gramática Geral vieram a ser retomados por Noam Chomsky e que a teoria dos universais lingüísticos é especialmente cara a esse lingüista e seus seguidores.

          Não se pode ignorar a contribuição da gramática filosófica aos estudos lingüísticos. Dela é tributária a própria gramática tradicional, não só na sua divisão e estruturação enquanto compêndio, como na apresentação e descrição de fatos gramaticais, principalmente na classificação e descrição dos sons fundamentais, na distribuição e classificação das partes da oração, na divisão e classificação das orações, nas sintaxes de regência, concordância e construção, etc. Disso dão testemunham os que sobre ela se debruçaram em algum momento de suas pesquisas.

          A Gramática de Port-Royal serviu de base para as gramáticas filosóficas portuguesa e italiana. Em Portugal, esse corte vem a manifestar-se mais tardiamente, no final do séc. XVIII. A Academia das Ciências propõe um prêmio a quem escrevesse a melhor gramática filosófica. Muitos foram os concorrentes. Jerônimo Soares Barbosa é considerado o principal representante do movimento.

 

 

DADOS BIO-BIBLIOGRÁFICOS   

 

          Pe. Jerônimo Soares Barbosa (1737-1816), filólogo português educado no seminário episcopal de Coimbra, ordenado presbítero em 1762, bacharelou-se em Direito Canônico. Foi professor de Retórica e Poética (Colégio das Artes da Universidade). Há notícias de que tenha lecionado Eloqüência Portuguesa.

          Foi visitador das escolas de primeiras letras da língua latina e deputado da Junta da Diretoria Geral dos Estudos. Bateu-se pela renovação dos métodos de ensino de então, contra a pedagogia dos jesuítas, pela qual primeiro se ensinava a gramática latina para, só então, ensinar-se a do português. Preconizava, tal como o iluminista Luís Antônio Verney, que se procedesse primeiramente ao ensino da língua materna para só então ensinar-se o latim.

          Com esse objetivo publica, em 1807, As duas línguas, uma gramática filosófica comparada do português e do latim. Após apresentar os princípios gerais, comuns a todas as línguas - os princípios gerais da linguagem -, formula regras, gerais, que aplica primeiramente ao português, e, depois, ao latim. Com exemplos em português, vertidos para o latim, busca mostrar a conformidade entre essas línguas.

          Publicou ainda Escola popular das primeiras letras dividida em quatro partes (1796), uma gramática elementar do português com instruções destinadas aos mestres-escola. Essa obra tem como fundamentação teórica a da gramática geral e filosófica.

          Sua gramática filosófica (Grammatica philosophica da lingua portugueza ou principios da grammatica geral applicados à nossa linguagem) foi lançada nos primórdios do séc. XIX (1ª edição, póstuma, em 1822, Lisboa, Tipografia da Academia das Ciências), mas estava imbuída do espírito filosófico do séc. XVIII, com base na Gramática de Port-Royal (1660).

          Foi muitas vezes reeditada. Apesar de publicada, em 1.ª edição, em 1822, é de se deduzir que foi concluída em 1803, uma vez que sua Introdução data de 24 de junho desse ano.

          As reformas pedagógicas pombalinas, e mesmo pós pombalinas, vêm a promover, nos fins do século XVIII e princípios do século XIX, um retorno às obras dos teóricos clássicos latinos, recomendados como base para o ensino da Retórica. O saber latinista de Soares Barbosa em muito contribuiu para a consulta a essas obras. Devem-se a ele Instituições Oratórias, de 1778, uma das versões das Instituições de Quintiliano, que eram de leitura obrigatória e de que S.B. foi um grande propugnador, e Poética de Horácio, traduzida e explicada (Coimbra, 1791). 

          Publicou ainda  Analyse dos Luziadas

 

 

GRAMÁTICA E ENSINO DA LÍNGUA

 

          Soares Barbosa dedicou-se ativamente ao ensino e à pesquisa. Suas lições revelam profundo saber aliado a um notável juízo crítico, em constante diálogo com suas fontes de estudo e pesquisa. Na GFLP, revelam-se não somente o lógico, mas também e principalmente o gramático, o pedagogo e o crítico de idéias atualizado e afinado com seu tempo.

          É constante em seu discurso a preocupação didático-pedagógica. Em Escola popular das primeiras letras, apresenta, ao final de cada lição,  orientações aos mestres-escola. Na Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza, após a exposição dos seus princípios e regras, passa à sua aplicação (Livro IV, Capít. VI “Applicação dos principios d’esta Grammatica ás duas primeiras estanças do Canto I dos Lusíadas de Camões”, p.303-304; “Analyse Geral”, p.304-306 e “Analyse Particular”, p.306-315).

          O primeiro estudo indispensável “a todo homem bem creado”, esclarece, seria o da gramática da língua nacional, posto que “ainda que não aspire a outra litteratura deve ter ao menos a de fallar e escrever correctamente a sua lingua (...)”. (BARBOSA, 1881, p.XIII). Considera que “o meio unico, e o mais geral, para emendar ao povo” dos “vicios da linguagem, e rectificar a sua pronunciação é o das escolas publicas das primeiras lettras”, “sob a direcção de bons mestres”. (Barbosa, 1881, p.38).

          Nas gramáticas, pondera, 

 

“há coisas que so os mestres devem estudar para expplicar a seus discipulos; outras que estes devem apprender, como os usos particulares e idiotismo da lingua; e muitas que devem decorar, como são os paradigmas todos das partes da oração e regras de suas terminações, conjugações e syntaxe.” (Barbosa, 1881, p. XV e XVI).

 

          Condena o ensino da língua fundamentado na memorização pura e simples das regras com base no uso. Tal ensino deveria compreender “as razões das practicas do uso”. (BARBOSA, 1881, p. XIV), daí  conceber a gramática como “um systema methodico de regras que resultam das observações feitas sobre os usos e factos das linguas”. (Barbosa, 1881, p. XI).

          Defende o método da gramática filosófica porque “as regras propostas por este methodo reduzem-se a menos, porque se unem ao mesmo principio; percebem-se melhor, porque se sabe a razão d’ellas; e afixam-se mais na memoria, porque se ligam umas com ás outras”. (Barbosa, 1881, p. XV).

          Com base no princípio de que todas as línguas seguem os mesmos princípios gerais, diferenciando-se somente nas formas que cada uma escolheu para indicar e combinar as mesmas idéias, argumenta que mais facilmente se aprenderia uma língua estrangeira se se aprendesse dessa maneira a língua materna.

          A instrução primeira nos usos gerais, comum a todas as línguas, apregoam os defensores desse método, facilitaria a aprendizagem de toda e qualquer língua. A compreensão do porquê dos fatos lingüísticos motivaria o discípulo para o estudo e a aprendizagem da sua  língua.

          Argumenta que “sendo a grammatica de qualquer lingua a primeira theoria que principia a desenvolver o embrião das idéas confusas da edade pueril; e dependendo da exactidão de seus principios e bom progresso nos mais estudos”, deveria  ser “uma verdadeira logica, que, ensinando a fallar, ensine ao mesmo tempo a discorrer”. Por isso, conclui, fora ela sempre reputada, pelos antigos filósofos, principalmente os estóicos, como parte da lógica, “pela intima connexão que as operações do nosso espirito tem com os signaes que as exprimem”. (Barbosa, 1881, p. XII).

          “Deixada pelos philosophos nas mãos de homens ou ignorantes ou pouco habeis”, argumenta, a gramática “se reduziu a um systema informe e minucioso de exemplos e regras, fundadas mais sobre as analogias apparentes que sobre a razão”. (Barbosa, 1881, p. XII).

          Termina por concluir:

 

 “D’aqui nasceram todas artes enfadonhas de Grammatica latina, cheias de mil erros e de tantas excepções quantas são as regras. O que tudo repetido e copiado cegamente de edade em edade, sem nunca ter sido submetido a exame, sem elle também foi servilmente applicado ás grammaticas das linguas vulgares”. (Barbosa, 1881, p. XIII).

 

          Cita Sánches, entre os espanhóis, Arnauld, na língua francesa, Wallis e Starris, na inglesa, e Lancelot, nas espanhola e italiana, como sendo os que teriam introduzido na gramática latina “as luzes da philosophia”. “Portugal”, lembra, “conheceu grammaticas portuguezas ainda antes que outras nações civilisadas tivessem uma na sua lingua”. (Barbosa, 1881, p. XIII).

Acrescenta:

 

“Quando Ramos em 1572 publicou a primeira grammatica da lingua franceza, já Portugal tinha a de Fernão de Oliveira dada á luz em 1536 e a de João de Barros em 1540. Estas foram seguidas do Methodo Grammatical, de Amaro de Roboredo, impresso em Lisboa em 1619, a Grammatica, de P. Bento Pereira, em Lyão, no ano de 1672, a de D. Jeronymo Contador d’ Argote, em Lisboa 1721, e a de Antonio José dos Reis Lobato em 1771”.  (Barbosa, 1881, p. XIII).

 

          Todas, porém, “alem de muitos erros e defeitos particulares”, teriam o defeito comum “de serem uns systemas meramente analogicos, e fundidos todos pela mesma fôrma das grammaticas latinas”. (Barbosa, 1881, p. XIII).

          Parte dos defeitos que aponta em Fernão de Oliveira, João de Barros e outros gramáticos que os seguiram teria sido corrigida, pondera, pelo autor de Rudimentos da Grammatica Portugueza, impressos em Lisboa, em 1799, que, esclarece, tomou como base, “quase em tudo”, a Grammatica da Lingua Castelhana (Gramática de la Lengua Castelhana, de António Nebrija, composta pela Real Academia Hespanhola em 1492).

          Nenhuma delas, porém, observa, “se faz cargo de Orthoepia e Orthographia, partes essenciaes e importantes a qualquer grammatica vulgar”. (Barbosa, 1881, p. XIV). Pecariam ambas pelos mesmos vícios encontrados nas anteriores, quais sejam:

 

-  “multiplicam demasiadamente as regras que poderiam ser reduzidas a idéas mais simples e geraes.”

 

-        “não se preocupam com a Orthoepia e Prosodia, partes essenciaes e importantes de qualquer grammatica vulgar”. (Barbosa, 1881, p. XIII e XIV).

 

          Apesar de reconhecer que, entre as gramáticas das línguas vulgares, a gramática de Nebrija merecia “um distinto louvor”, argumenta, que, “desamparando os principios luminosos da grammatica geral e razoada”, embora reforme muitos dos abusos das gramáticas antigas, segue-lhes contudo a mesma trilha, qual seja, a de “multiplicar (grafou-se multiplicr) em demazia as regras que poderia abbreviar mais reduzindo-as a idéas mais simples e geraes”. Seria a gramática da língua castelhana, “mais um systema analogico, de regras e exemplos do que logico”. (Barbosa, 1881, p. XII).

          Soares Barbosa não só discute os fundamentos da gramática como também estabelece juízos de valor sobre a utilidade e/ou conveniência desta ou daquela noção gramatical, desta ou daquela análise, deste ou daquele enfoque, sempre apoiado em suas várias fontes de consulta, às quais constantemente remete.

          Compendiou o melhor da ciência lingüística de seus dias. Embora siga os princípios de Port-Royal, adaptando-os à descrição do português, por vezes se afasta de algumas de suas propostas.

          Legou-nos uma descrição, minuciosa e por vezes exaustiva, dos fatos do português. E o fez a partir de observações de fatos da estrutura de superfície, que é lingüística, e não a partir da estrutura mental ou lógica, que nem mesmo cabe confundir com a estrutura profunda, ou mesmo subjacente.

          Para muitas de suas considerações, divisões e subdivisões ou mesmo classificações, parte de critérios vários (morfológicos, sintáticos, funcionais), muitas vezes combinados entre si. Não parte de pontos de vista lógicos, apriorísticos, como se lê em alguns de seus críticos no Brasil.

 

 

O LEGADO DE SOARES BARBOSA

 

          Para Leonor Lopes Fávero a obra de Soares Barbosa é especial e precursora: especial, “porque propõe o diálogo: expõe suas posições, mas espera a adesão do interlocutor”, e precursora “porque seu autor vê a língua como um cientista: pressente, discerne, apresenta posicionamentos que a lingüística vem privilegiando em nossos dia". (Fávero, 1996, p.258)).

          O modelo de descrição do português por ele apresentado foi  considerado por João Malaca Casteleiro como um dos melhores modelos de descrição gramatical existentes sobre o português. (Casteleiro, 1980, p.103). Isso, porém, não foi reconhecido por muitos de nosso estudiosos.

          Não sabemos quanto aos gramáticos portugueses, mas, até onde nos levaram nossas leituras e pesquisas, pudemos perceber, em filólogos e estudiosos brasileiros, uma certa má vontade em relação a Soares Barbosa. A rara menção a seu trabalho, em muitos de nossos mais representativos estudiosos, é, quase sempre de maneira “depreciativa”, digamos assim.

          As críticas, iradas no mais das vezes, se concentram no tratamento por ele dado ao infinitivo pessoal, flexionado. Chega-se a falar em regras inventadas e sem valor (regras cerebrinas, no dizer de Said Ali).

          Quanto a essas regras, cabe lembrar as ponderações de Theodoro Maurer  Jr., que considera fundamentais os trabalhos de Jerônimo Soares Barbosa e Frederico Diez “cujas regras sobre o uso do infinito têm sido freqüentemente consideradas básicas, embora todos reconheçam a sua insuficiência para uma solução completa do problema”, e as de João Malaca Casteleiro, para quem “J.S. Barbosa faz intervir com acerto e originalidade a noção de co-referência de sujeitos (noção tão consagrada em trabalhos de Gramática Transformacional)” para o estabelecimento do emprego deste ou daquele infinito. (Maurer,1968, p.125; Casteleiro, 1980, p.106, respectivamente).

          Por esse princípio  vieram a nortear-se os que o sucederam, malgrado criticarem-no.

          Chamou-nos a atenção em especial a constatação de que o que se fez, no mais das vezes, foi repetir a crítica feita a Soares Barbosa sem sequer tê-lo consultado. Curiosamente, até mesmo a adjetivação "cerebrinas" para as regras por ele estabelecidas se repete em seus críticos, como registramos em nosso trabalho. Não procede sequer a crítica à falta de base documental de que o acusam, que também se repete nos que o criticam. Isso é também por nós documentado.

          Na maioria das vezes, seus críticos sequer o relacionam em suas referências bibliográficas. Negam-lhe qualquer autoridade ou destaque, malgrado toda a sua contribuição para a descrição do português, de que dão testemunho muitos dos que o estudaram. Trata-se, na realidade, o que constatamos em vários momentos de nosso trabalho, de um pré-conceito em relação, a princípio, à própria gramática filosófica em si, freqüentemente acusada de basear-se em princípios estatuídos a priori, com base na ciência da Lógica, o que não corresponde à realidade principalmente quanto se trata de uma gramática de uma língua particular, que parte exatamente dos fatos dessa língua, como não poderia deixar de ser.  

          No final do séc. XVIII, tinha-se desenvolvido uma insatisfação geral com as explicações apriorísticas e, assim, chamadas ‘lógicas’, acrescida de uma  “preferência pelo raciocínio histórico” não somente em relação ao estudos da língua, uma vez que a mudança de perspectiva foi geral. (Lyons, 1979. p.22-23).

          Essa ojeriza ou aversão aos estudos classificados de “lógicos” ou “filosóficos” levou a que se cogitasse somente dos aspectos formais, concretos, na análise dos fatos da língua, desligados dos aspectos semânticos, considerados “abstratos”, não lingüísticos, o que levou a um processo de mero registro e apresentação desses fatos, abstraindo-se sua significação geral por ser considerada “do pensamento” e não “da língua”.

          A negação de uma significação geral levou a um sistema gramatical semelhante ao criticado pelos “filosóficos”, qual seja, ao registro das entidades lingüísticas, distribuídas, relacionadas, sistematizadas a partir de aspectos formais e/ou funcionais, sem que se atentasse para a razão ou porquê disso, que, logicamente, parte de uma significação geral, que se adapta e/ou modifica em seus vários contextos de aplicação

          A GFLP de Jerônimo Soares Barbosa, cabe dizer e divulgar, apresenta posicionamentos que a ciências lingüísticas vem privilegiando em nossos dias. Nela se encontram teorias, ponderações, propostas ou enfoques que vieram a ser modernamente defendidos por estudiosos que passaram a ser tomados como referência.

          A divisão e classificação das preposições do português a partir das noções de espaço e tempo; movimento e situação (ou repouso), num tipo de abordagem vulgarizado modernamente por Bernard Pottier (preposições do francês) e Maria Luiza Lópes (preposições do espanhol), são nela apresentadas, com minúcias de análise, quanto às  preposições do português.

          Celso Cunha, um de nossos filólogos e gramáticos mais conceituados, ao aplicá-las às preposições do português cita como fonte de consulta somente aqueles dois autores[2]. Não leu Jerônimo Soares Barbosa?

          Algumas das colocações e propostas de Joaquim Mattoso Camara Jr., eminente representante do Estruturalismo no Brasil, já se encontravam na Gramática de Soares Barbosa. Estão lá, por exemplo, a discussão sobre ser ou não o artigo o determinador básico do gênero, a proposta de uma reinterpretação da noção gênero gramatical, por exemplo.

          Nela se apresenta igualmente um levantamento de “regularidades”, digamos assim, entre os verbos irregulares, de modo a agrupá-los em paradigmas, para o que apresenta seus critérios de sistematização. Esse estudo “ideal”, defendido com propriedade por Camara Jr., está na GFLP de Jerônimo Soares Barbosa, salvaguardando-se naturalmente as limitações e equívocos a que terá sido induzido como homem estudioso de seu tempo.

          Os estudos estruturalistas, embora objetivassem conferir autonomia ao estudo da linguagem,  desvinculando-o do estudo do pensamento, apresentam momentos em que, na busca de reinterpretar algumas questões, lançam mão de argumentos e princípios já discutidos e/ou apresentados pela gramática filosófica, com base nos princípios cartesianos.

          Apesar de apresentar-se como discurso oponente à corrente dita filosófica, o Estruturalismo muito dela se fez tributário na análise dos fatos da língua. A visão de Arnauld e Lancelot na Gramática de Port-Royal constitui um dos implícitos básicos de produção da lingüística estrutural.

          Cabe resgatar essa corrente de estudos e dar-lhe o justo lugar no desenvolvimento da ciência lingüística. Para isso deram contribuição decisiva Noam Chomsky e seus seguidores. E todos, cabe sempre lembrar, são tributários de Escaligero (1540), Ramus (1559) e Sanchez (1587).

          É comum, nos estudos lingüístico-filológicos, fazer tábula rasa dos estudos dos precursores na corrida aos modismos que, no mais das vezes, nada mais são que retomadas de fases anteriormente abandonadas por outras tantas novidades. Perdem com isso a ciência Lingüística em geral e a Filologia em especial. Nesse embate, a tensão dialógica entre discursos que se querem, ou se supõem, oponentes, quiçá excludentes, subjaz às incoerências ou contradições manifestas.

          Cada doutrina foi, a seu tempo, e no seu tempo, revolucionária, e foram igualmente abraçadas com entusiasmo pelos que vieram a adotá-las. O equívoco está na negação do que se fez anteriormente. Negá-lo, ignorá-lo é negar a própria concepção de ciência como tal.

          A gramática filosófica fez história em Portugal. Fez também história no Brasil. A Gramática Filosófica de Jerônimo Soares Barbosa, que constitui um marco na gramática filosófica em Portugal, posto que muitos seguiram seu caminho, serviu de modelo a muitas gramáticas, filosóficas ou não, brasileiras. Dela é tributária a nossa gramática tradicional, posto que deixou  marcas nos modelos de descrição do português, malgrado o desconhecimento a que foi  relegada.

          Deixou também vestígios no ensino da língua, especialmente na chamada Análise Sintática, durante muito tempo cavalo-de-batalha das aulas de português. Para esse tipo de análise (Análise Sintática) partiu-se do Capítulo IV - "Applicação dos principios d’esta grammatica ás duas primeiras estanças do Canto I dos ‘Lusíadas’ de Camões” (p.303-315) do Livro IV - Da Sintaxe e da Construção, apresentado como conclusão da GFLP. Nele, Soares Barbosa aplica os princípios apresentados em sua gramática às duas primeiras estâncias do Canto I de Os Lusíadas, de Luís Camões: Análise Geral, p. 304-306, e Análise Particular, p. 306-315.

          As duas estâncias escolhidas, justifica, “formam a proposição geral de todo o poema”. (barbosa, 1881, p.304). esclarece que “para proceder com méthodo”, considerou aquelas duas estrofes primeiramente em seu todo, “dividindo-o em seus principaes membros, e subdividindo estes nas orações de que consta cada um”, e, depois, analisando cada uma das orações em particular. (Barbosa, 1881, p.304).

          Na análise geral, após esclarecer que "estas duas estanças não formam senão um período de dois membros ou "proposições totaes", salienta aspectos quanto à estruturação do período e dos membros, ou proposições e os analisa quanto à classificação das proposições dentro dos preceitos apresentados quanto à sintaxe e construção (tipos, qualidades) e quanto à identificação e classificação dos sujeitos e complementos verbais.

          Em alguns momentos, pontua aspectos morfossintáticos, estudados no Livro III - Etimologia ou partes da oração: emprego de artigo definido,  de pronomes pessoais, etc. na análise particular, procede à análise de cada uma das orações.

          "Para melhor se perceber a analyse de cada uma d'estas orações", toma-as "em sua ordem direita, principiando pela ultimas, e destas subindo ao principio da primeira estança para d'aqui discorrer outra vez até o fim". (Barbosa, 1881, p. 306).

          Procede ao que se vulgarizou entre nós sob o denominação de "Análise Sintática", hoje, indevidamente, nosso entender, abandonada.

           Em seu "Soares Barbosa e os gramáticos do século XIX", João Alves Pereira Penha afirma, dentre outras coisas, que "o aproveitamento da GPLP por muitos gramáticos de Portugal e do Brasil vem mostrar que essa obra bissecular exerceu muita influência na tradição gramatical da língua portuguesa". (Penha 1989,  p.51).

          Muitos foram os gramáticos brasileiros que lhe seguiram as pegadas. "Não foi fácil", constata João Penha, "deixar a orientação de JSB", mesmo após Epifânio Dias (Gramática Prática da Língua, 1870) já ter introduzido novas luzes à gramática em Portugal e Júlio Ribeiro (Gramática Portuguesa, 1881) tê-lo feito no Brasil, ainda se publicam entre nós compêndios sob a influência da gramática de Soares Barbosa.

          Luiz Carlos Cagliari afirma ser a GPLP a melhor gramática da língua portuguesa que conhece e diz ser uma pena que "uma obra tão bem feita e tão importante tenha ficado à margem da nossa tradição gramatical e acadêmica" (Cagliari, 1985, p.93 e p.96, ).

          Para Cagliari a gramática de Soares Barbosa fica, hoje, "como um marco histórico isolado, como o primeiro tratado de lingüística da língua portuguesa, na acepção moderna do termo, e uma das mais importantes gramáticas já escritas". (Cagliari, 1985, p.97).

          Lembramos João Malaca Casteleiro a dizer que, “com a progressiva implantação do Romantismo e o nascimento da Filologia, a G.F. de J.S. Barbosa foi esquecida e esquecida se mantém até ao presente”, concluindo que “ela aguarda ainda a sua oitava edição e um estudo crítico aprofundado do respectivo conteúdo”. (Casteleiro,1980,p107-108).

          Para o que se propõe, a Gramática Filosófica da Língua Portuguesa de Jerônimo Soares Barbosa é uma gramática completa: vai desde a exposição das regras (sempre das gerais para as particulares, princípio por que se norteia) até a sua aplicação.

          “Há muito que se aprender consultando os autores mais antigos, dentre eles Soares Barbosa”, terminamos por concluir no “Breve estudo crítico da Gramática Filosófica de Jerônimo Soares Barbosa”, monografia apresentada ao Prof. Dr. Sílvio Elia para avaliação na Disciplina “A doutrina dos gramáticos portugueses pós-renascentistas”, PUC/RJ, do Curso de Mestrado (1.º semestre de 1977, 80p. datilografadas). A esse comentário apôs, com sua letrinha miúda, o saudoso filólogo: "Opinião sensata”[3].   

          Há que resgatá-lo, reconhecendo sua contribuição não somente para a  descrição gramatical do português, como também para a análise e discussão dos fatos da língua. Ao concluir nossa  análise crítica e comparativa da GFLP, que tomou como base aquele primeiro trabalho, reforçamos nossa opinião, agora apoiada em pareceres de estudiosos do Brasil e de Portugal. Ousamos crer que, com nosso projeto de uma análise crítica e comparativa de toda a sua Gramática, num estudo minucioso, exaustivo no mais das vezes, de cada um dos seus quatro Livros[4], estaremos dando uma contribuição para o resgate cobrado por Malaca Casteleiro[5].  

          Ao contribuir para o resgate de uma gramática que representa um período caracterizado pela busca do rigor científico, na ruptura com o método das gramáticas anteriores, e que, malgrado o esquecimento a que a relegaram nossos estudiosos e as críticas  negativas que mereceu de estudiosos e gramáticos de renome entre nós, representa, sem sombra de dúvida, um dos melhores modelos de descrição do português, visamos preencher uma lacuna existente para a necessária  historiografia dos estudos científicos da linguagem no Brasil.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

CAGLIARI, Luiz Carlos. "A escrita na gramática de Jerônimo Soares Barbosa", in Anais de

        Seminários do Gel, Grupo de Estudos Lingüísticos (GEL),Bauru, São Paulo, 1985. p.93-

        97.

 

CASTELEIRO, João Malaca. “Jerônimo Soares Barbosa: um gramático racionalista do século

         XVIII”, in  Boletim de Filologia, n.º 26, Lisboa, 1980, p.101-110

 

DONZÉ, R. La gramática general y razoada de Port-Royal,  Buenos Aires, Eudeba, 1970

 

FÁVERO, LEONOR LOPES. As concepções lingüísticas do séc. XVIII: a gramática

         portuguesa, Campinas,  São Paulo, Editora da UNICAMP, 1996.

 

LYONS, John. Introdução à Lingüística Teórica, tradução de Rosa Virgínia M. e Silva e Hélio Pimentel, Col. Biblioteca Universitária, série 5.ª - Letras e Lingüística, vol. 13, São Paulo, Cia Editora Nacional / Ed. da Universidade de São Paulo, 1979.

 

PENHA, João Alves Pereira. "Soares Barbosa e os gramáticos do século XIX",  in Estudos

Gramaticais, Série "Encontros", organização de Sebastião Expedito Ignácio, Publicação do Curso de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa, ano II, n.º I, UNESP, Campus de Araraquara, 1989. p.49-65.  

 

MAURER JR., Theodoro Henrique. O Infinitivo Flexionado Português: estudo histórico-

          descritivo, São  Paulo, Editora Nacional/Editora da USP, 1968.

 

RANAURO, Hilma Pereira. “Breve estudo crítico da Gramática Filosófica de Jerônimo Soares Barbosa”, monografia apresentada ao Prof. Dr. Sílvio Elia para avaliação na Disciplina “A doutrina dos gramáticos portugueses pós-renascentistas”, PUC/RJ, 1.º semestre de 1977. 80p. datilografadas.

 

_________________. “Os elementos conjuntivos na Gramática Filosófica de Soares Barbosa”, Dissertação de Mestrado, Orientador: Sílvio Elia, Rio de Janeiro, PUC/RJ, 1980. 104p. datilografadas.

 

_________________  . “Contribuição ao estudo semântico da preposição – POR e PER na Crônica de D. João I (1.ª parte) de Fernão Lopes”, Rio de Janeiro, PUC/RJ, 1990.432 p. datilografadas.

 

SAID ALI, Manuel.Gramática Secundária da Língua Portuguesa, 6ª ed., Rio de Janeiro,  

        Edições Melhoramentos, 1965; 7ªed., revista e comentada de acordo com a NGB por

        Evanildo Bechara, São Paulo, Edições Melhoramentos, 1966.

 

_________________. Gramática Histórica da Língua Portuguesa.7ª ed. melhorada e

aumentada de Lexeologia e  Formação de Palavras e Sintaxe do Português Histórico,  estabelecimento do texto, revisão, notas e índices por  Maximiano de Carvalho e Silva, col. Biblioteca Brasileira de Filologia, vol. 19, Rio de Janeiro, Livraria Acadêmica, 1971.

 

____________________


[1] "O legado de Jerônimo Soares Barbosa", pulicado na Revista Portuguesa de Humanidades, n.º 7, fascs. 1-2, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Filosofia de Braga, Braga/Portugal, ano 2003. p.253-265. 

[2] Isso foi por nós estudado em nossa Dissertação de Mestrado e posteriormente ampliado em nossa Tese de Doutorado com apresentação de uma proposta de esquematização em busca de uma distribuição adequada a partir das propostas de Soares Barbosa, Pottier e Celso Cunha). (Ranauro, 1980, p. 62-68 e Ranauro, 1990, p.62-67; 76-82). Esse estudo, revisto e ampliado, constitui um dos capítulos de Significação e relação - a carga semântica dos elementos conectivos,  que demos a público neste ano de 2004, pela Editora Gráfica Universal.

[3] Ao final de nosso trabalho,  registrou Sílvio Elia a seguinte observação: "Talvez a melhor análise da Gramática de Soares Barbosa feita até o momento". Ousamos crer que, com esse projeto, que em muito amplia aquele trabalho primeiro, estamos dando nossa contribuição ao estudo de um período que cabe incluir na gramaticografia e gramaticologia do português, posto que a ele muito deve nossa gramática tradicional.

[4] Projeto: "A gramática filosófica de Jerônimo Soares Barbosa", desenvolvido nos biênios 1999/2000 e 2001/2002 (prorrogação), como membro do Grupo de Trabalho (GT) "Historiografia da Lingüística Brasileira", da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Literatura e Lingüística (ANPOLL). O texto, atualmente com 452 p. digitadas, encontra-se em fase final de redação e revisão. Título provisório: Normas e usos na Gramática Filosófica de Jerônimo Soares Barbosa.

[5] ,Esse estudo, atualmente com quase 600 páginas digitadas, está em fase de revisão

 

Voltar ao índice