A
EVOLUÇÃO
LINGÜÍSTICA
DE
UM
PONTO
DE
VISTA
DARWINIANO
Aldo Luiz Bizzocchi
(Universidade
de
Santo Amaro)
Introdução
“As
línguas
são
organismos
que nascem, se
desenvolvem, se reproduzem e morrem.”
Esse
lema,
instituído
pela
lingüística
histórico-comparativa, fundou-se na
semelhança encontrada
pelos
historiadores das
línguas
entre a
evolução
lingüística e a biológica.
A
teoria da
evolução das
espécies,
proposta
por
Charles
Darwin
em 1859,
influenciou
profundamente
o
pensamento
científico do
século XIX,
com
reflexos
evidentes na
lingüística,
que
então dava
seus
primeiros
passos. Na
verdade, foi
esse o
momento
em
que a
filologia,
que
até
então partia
do
conhecimento
de
língua
para
reconstituir
textos, passou
também a
partir dos
textos
para
reconstituir as
línguas, numa
espécie de “arqueologia”
ou “paleontologia”
lingüística.
Essa
metáfora
biológica, considerada uma
heresia
durante a
maior
parte do
século XX,
mais voltado
aos
aspectos
sociais,
culturais,
enfim, “humanos”
da
língua,
hoje
volta
com
toda a
força
graças aos
avanços
tanto da
lingüística
quanto das
biociências e
das neurociências.
Enquanto a
lingüística do
século XIX foi
essencialmente
evolutiva e a
do
século XX,
essencialmente
estrutural,
hoje o
que se
busca é a
articulação
das
perspectivas
sincrônica e
diacrônica na
compreensão
holística da
linguagem
como
fenômeno ao
mesmo
tempo cultural
e biológico.
Os
mesmos
enfoques
estrutural e
evolutivo
também
são
dados ao
estudo das
espécies
biológicas. É o
que fazem
respectivamente
a
paleontologia
de
um
lado e a
anatomia e a
fisiologia do
outro.
Mas
também há uma
disciplina
que faz a
ligação
entre a
evolução e a
estruturação das
espécies
biológicas: é a
genética. Essa
disciplina
explica
como ocorrem
nos
espécimes e se
transmitem aos
descendentes
as
mutações
que a
longo
prazo
acarretam a
mudança da
espécie. E
ela pode
fornecer várias
ferramentas
úteis
para compreendermos
também de
que
maneira a
estrutura
lingüística evolui
enquanto
funciona e funciona
enquanto
evolui.
Nas últimas
décadas,
estudos de
lingüística evolucionária
vêm ocupando
cada
vez
mais o
interesse de
especialistas,
e
novas
teorias,
como a da
protolinguagem e a da
Torre de
Babel têm sido
propostas,
sobretudo
devido às
contribuições
mútuas
entre
disciplinas
humanísticas e biológicas,
como a
filologia, a
arqueologia, a
paleoantropologia, a
genética e a
ciência
cognitiva.
Além disso, a
iminente
extinção
em
massa de
línguas e
conseqüente
perda da
diversidade
lingüística,
análoga à
perda da
biodiversidade,
tem precipitado a
intensificação
do
processo de catalogação e
descrição de
línguas
ágrafas,
em
especial
africanas, ameríndias e polinésias, o
que tem
contribuído
para
reavivar o
interesse
pelo
estudo da
origem das
línguas
naturais.
Exemplos disso
são os
estudos de
Cavalli-Sforza (2000),
dentre
outros,
visando ao
estabelecimento
da
correlação
entre
dados
genéticos e
culturais,
especialmente
a
língua.
Para Cavalli-Sforza, a
transmissão
lingüística faz
parte da
transmissão
cultural.
Segundo
sua
teoria da Eva
Africana, se,
analogamente aos
genes, se
transmite a
língua de uma
geração a
outra (embora,
evidentemente,
por
meios
diferentes), é
possível
que todas as
línguas
atuais
descendam de uma
língua
falada na
África há
cerca de 200
mil
anos.
Na
concepção de
Dawkins (1989), construtos
mentais –
que
ele
chama de memes
– transmitem-se aproximadamente
conforme a
mesma
dinâmica da
transmissão
dos
genes. Os
fatos
lingüísticos e
a
própria
língua seriam
então
um
caso
particular de
memes,
objeto de
estudo da
memética.
Na
realidade, o
modelo biológico
evolucionário de
sistema é
universal,
isto é, pode
ser aplicado,
com as devidas
restrições e
adaptações, a
qualquer
sistema
autopoiético:
línguas,
sociedades,
civilizações,
economias,
sistemas
semióticos não-verbais e cibersemióticos,
sistemas
computacionais, comunicacionais,
geológicos e
mesmo
cosmológicos. A
noção de
autopoiese,
proposta
por Maturana e
Varela (2001), da
qual falaremos
mais
adiante, pode
assim
ser estendida a
qualquer
sistema
complexo
adaptativo.
Portanto,
não surpreende
que a
língua seja
passível do
mesmo
tratamento
metodológico de
estudo
que é aplicado
aos
sistemas
complexos
adaptativos
naturais.
Surpreende
apenas
que, no
campo da
linguagem
verbal,
esse
procedimento metodológico
ainda esteja
em
fase
inicial
enquanto
em
outros
domínios do
conhecimento
já estejamos
presenciando
grandes
progressos.
Ocorre
que
durante
muito
tempo a
ciência se
dedicou a
estudar e
explicar os
sistemas
naturais,
deixando de
lado os
sistemas
criados
pelo
homem. Havia a
crença de
que os
fenômenos
humanos
não eram
passíveis de
sistematização e,
portanto, os
estudos
em
humanidades
não eram
considerados
ciências. A
lingüística
sempre foi uma
exceção a essa
regra,
pois
muito
cedo
percebeu-se
que a
língua é
um
sistema regido
por
leis
bastante
claras,
que,
como
hoje se sabe,
são
fruto da
natureza
biológica da
linguagem. O
que perturbava
os
estudiosos
eram as inúmeras
exceções,
que punham uma
certa
dose de
caos na
aparente
ordem da
gramática. De
fato, as
normas
lingüísticas e
a
gramática normativa
representam a
ordem, a
estabilidade,
ao
passo
que a
inovação
corresponde a
um
momento de
liberdade
criativa
dentro da
língua. É
um
certo
momento de “caos”
ou
instabilidade.
A
língua se
sustenta
dialeticamente
entre a
necessidade de
uma
certa
estabilidade
ou
ordem
para
funcionar e a
necessidade de
criatividade
para
evoluir e adaptar-se. Uma
compreensão
mais
profunda dos
sistemas
naturais
permitiu
perceber
que as
irregularidades
também
são
previsíveis e
explicáveis
racionalmente.
A
teoria dos
sistemas
permitiu
agregar a
lingüística ao
rol das
ciências ditas
“positivas”.
Com
isso, a
metáfora
biológica
que abre
este
trabalho
volta a
fazer
sentido.
Feita a
única ressalva
de
que os
lingüistas
histórico-comparativos e filólogos do
século XIX
erraram ao
comparar a
língua a
um
organismo,
isto é, a
um
espécime.
Como Saussure
(2003) demonstrou, os
fatos
lingüísticos
estruturam-se
em
dois
níveis,
língua e
fala.
Assim, a
língua
corresponderia à
espécie, e os
atos de
fala dos
inúmeros
falantes,
vivos
ou
mortos,
presentes
ou
passados,
corresponderiam aos
espécimes
que compõem a
espécie.
Com
efeito,
não existem
línguas
mortas, existem
falas mortas.
As
línguas
não morrem,
mas evoluem
para outras
línguas
ou
então se
extinguem,
quando
não deixam
descendentes.
O
equívoco
em
comparar uma
língua a
um
organismo
biológico está
em
que
espécies
não morrem,
quem morre
são os
indivíduos,
sejam
eles
animais,
plantas
ou
falantes. Do
mesmo
modo
como uma
espécie
animal
ou
vegetal é o
resultado de
uma
abstração e
categorização
feitas a
partir da
análise dos
indivíduos
isolados – os
espécimes –
para reconhecer-lhes os
traços
morfológicos e
genéticos
em
comum, as
línguas
também
são
abstrações
realizadas a
partir dos
atos de
fala,
única
realidade
palpável e
observável
pelo
lingüista. O procedimento
taxonômico
de
classificar
animais,
plantas e
microorganismos
em
espécies,
gêneros,
famílias,
etc., é o
mesmo
que dá
origem às
árvores
genealógicas das
línguas. E, o
que é
mais
curioso e
ilustrativo, a
comparação
entre a
árvore da
evolução
genética e a
da
evolução
lingüística do
ser
humano
demonstra uma
forte
correlação
entre ambas (Cavalli-Sforza,
2000, p. 189 ss.).
A
linguagem
como
sistema
autopoiético
Maturana e Varela propuseram o
termo
autopoiese
para
designar
...uma
forma de
organização
sistêmica, na
qual os
sistemas
como
um
todo produzem
e substituem
seus
próprios
componentes,
numa
contínua
articulação
com o
meio. Os
sistemas
autopoiéticos
são
autocatalíticos,
isto é,
não
apenas
estabelecem,
mas
também mantêm
uma
fronteira
peculiar
com o
mundo
circundante –
fronteira essa
que
simultaneamente os separa do
meio
ambiente e os
conecta
com
ele. (Dimitrov
& Ebsary, 2000: 51)
Como dissemos,
bem
como decorre
dessa
definição, as
línguas
são
sistemas
autopoiéticos. Maturana e Varela explicam
assim a
noção de
autopoiese.
Numa
máquina,
tal
como numa
bicicleta, as
peças foram
planejadas, fabricadas e,
em
seguida,
reunidas
para
formar uma
estrutura
com
componentes
fixos. Num
sistema
vivo, ao
contrário, os
componentes
mudam continuamente, há
um
incessante
fluxo de
matéria
através de
um
organismo
vivo.
Cada
célula
sintetiza e desenvolve
estruturas
continuadamente, e elimina
produtos
residuais.
Tecidos e
órgãos
substituem
suas
células
em
ciclos
contínuos. Há
crescimento,
desenvolvimento
e
evolução. A
máquina possui
padrão e
estrutura,
mas o
organismo
vivo possui
padrão de
organização,
estrutura e
processo
vital. Uma
vida é
autocriadora (autopoiética), uma
máquina é
projetada e montada.
O
vivo tem a
ver
primeiramente
com a
conservação,
não
com a
mudança. Os
seres
vivos
são
sistemas
moleculares,
redes de
elaboração e
transformação de
moléculas. A
organização,
os
processos,
não mudam; o
que
muda
são as
moléculas
particulares,
os
componentes
que entram no
processo. A
isto
que se
modifica, chamo de
estrutura.
Por
exemplo,
alguém fica
doente e enfraquece, perde
moléculas;
depois,
melhora,
recupera
seu
peso,
sua
musculatura.
Aí ocorreu uma
série de
mudanças estruturais,
mas
conservou-se a
organização, o
viver. Os
seres
vivos
são
máquinas
que se definem
por
sua
organização,
por
seus
processos de
conservação e
que diferem
das outras
máquinas
por
sua
capacidade de
se auto-reproduzir.
Essa
perspectiva de
compreensão do
fenômeno da
vida,
decorrente do
pensamento
sistêmico e
complexo,
em
voga
sobretudo a
partir da
década de
1990,
nos remete,
sem
dúvida, à
formulação do
conceito de
língua
por
meio da
metáfora do
xadrez de
Saussure.
Este
já intuía e
sinalizava
em
princípios do
século
passado o
caráter
complexo e,
portanto,
dinâmico da
língua.
Igualmente,
podemos
dizer
que a
visão
pancrônica da
lingüística
pós-estruturalista
já havia
incorporado o
pensamento
complexo
avant la lettre
nos
anos 1970.
O
homem é
um
ser biopsicossocial,
isto é,
formado simultaneamente
por uma
natureza
biológica (em
termos
computacionais, o
hardware),
psicológica (o
software)
e
social (o
contexto). O
hardware
(isto
é, o
cérebro) foi
capaz de
gerar
um
software
(a
linguagem)
que se
autoproduz e interage
com a
sociedade da
mesma
forma
como
um
organismo
interage
com o
meio. De
forma
mais
detalhada, a
linguagem
permite o
pensamento
simbólico,
que
desencadeia a
ação,
que
por
sua
vez produz a
mudança
social. Esta
acarreta a
mudança
lingüística,
ou
mutação
lingüística,
que ensejará
novos
pensamentos, e
assim
sucessivamente
num
ciclo
interminável.
Dito de
outro
modo, a
linguagem
muda a
sociedade,
que
muda a
linguagem. É
por
isso
que a
língua
muda
enquanto
funciona (isto
é, interage
com o
meio,
com os
falantes) e
funciona
enquanto
muda. Se
parasse de
evoluir, a
língua cairia
em desuso,
pois
não daria
mais
conta da
mudança
social.
Por
outro
lado,
quando uma
língua cai
em desuso,
ela
deixa de
evoluir e permanece
fossilizada
nos
registros
que deixou.
A
dinâmica
da
evolução
lingüística
Falamos no
parágrafo
anterior
em
mutação
lingüística.
Esse
termo
não é de
todo
estranho à
terminologia
das
ciências da
linguagem,
como se pode
constatar no
seu
emprego
em
relação à
mudança
fonética (cf.
a
mutação
consonântica do
germânico, a
mutação
consonântica do
alemão e a
mutação
vocálica do
inglês). No
entanto,
toda
inovação
lingüística é,
efetivamente,
uma
mutação, a
exemplo da
mutação
genética.
Para
que
esse
ponto fique
mais
claro, convém
explicarmos
primeiramente
como ocorre a
mutação
genética.
As
moléculas de
DNA (ácido
desoxirribonucléico) têm a
capacidade de
auto-replicar-se,
ou seja,
elas produzem
cópias de
si mesmas, na
medida
em
que as
bases
moleculares adenina (A), citosina (C), guanina (G) e
tiamina (T) se
combinam duas a duas, formando
pares. A
falha
fortuita
nessas
combinações
produz uma
cópia
imperfeita da
molécula
original.
Conforme o DNA
prossegue se auto-replicando, essas
falhas (mutações)
vão se
acumulando, de
modo
que,
após algumas
gerações,
alterações significativas
nos
traços
mórficos
ou
funcionais do
organismo
já podem
ser notadas.
A
imitação
lingüística é
bastante
similar à
replicação do DNA. Na
verdade, o
conceito de
língua é,
como
já dissemos,
uma
abstração
que se faz a
partir de
um
conjunto de
fatos
concretos
que
são os
atos de
fala.
Mas
como se
passa da
fala à
língua? Os
seres
humanos
só podem
conviver
em
sociedade e
só conseguiram
construir
para
si uma
sociedade formada de
relações
complexas
graças à
comunicação e,
portanto, à
linguagem. Os
biólogos da
atualidade
reconhecem
que,
sem uma
aptidão simbólica
sofisticada,
capaz de
representar
coisas
presentes e
ausentes no
espaço e no
tempo,
bem
como
noções
concretas e abstratas, o
estágio
evolutivo de
nosso
intelecto
ainda seria o
do Homo erectus
ou do
neandertal. O
que
diferenciou o Homo sapiens das
espécies
que o
antecederam foi
exatamente a
aptidão
para
falar,
isto é,
para
utilizar
um
código
articulado, dotado de uma
gramática.
Isso implica
que os
falantes
atribuem
um
sentido
consensual aos
signos de
que se servem
para
expressar os
seus
pensamentos e
sentimentos,
sem o
que
não haveria
comunicação,
apenas
ruído.
Isso
nos levaria a
crer,
em
primeiro
lugar,
que o
indivíduo
que
fala consegue
transformar de
forma
precisa
seus
pensamentos,
sentimentos,
sensações e
intuições —
numa
palavra,
suas
cognições —
extremamente
pessoais
em
informações
objetivas,
exprimíveis
por
meio de
um
número
finito e
relativamente
pequeno de
palavras;
em
segundo
lugar,
que
ele é
capaz de
transmitir todas essas
informações
numa
mensagem
verbal e,
em
terceiro,
que o
ouvinte, tendo
supostamente
recebido essa
mensagem
sem nenhuma
distorção de
qualquer
natureza,
especialmente
física, é
capaz de
recriar
em
sua
mente
pensamentos,
sentimentos,
sensações e
intuições
mais
ou
menos
correspondentes
aos do
seu
interlocutor.
Para
que
esse
processo ocorresse de
modo
perfeito,
seria
necessário,
além de uma
série de
outros
requisitos,
que
ambos os
interlocutores
atribuíssem aos
signos usados,
os
quais
não têm
em
si nenhuma
relação
necessária
com
seu
significado,
fundamentalmente
o
mesmo
valor.
Para
complicar as
coisas,
devemos
lembrar
que o
valor dos
signos –
isto é, as
cognições
específicas
que
eles
representam a
cada
momento – é
diferente a
cada
novo
ato de
fala, e
que,
em
contrapartida,
os
signos de
que o
falante dispõe
em
seu
repertório
são
aqueles
extraídos dos
atos de
fala
precedentes, sejam os dele
ou os dos
outros
indivíduos
com
quem convive e
de
quem sofre
influência.
Como os
signos servem,
a
cada
novo
ato de
fala,
para
exprimir
novas
cognições,
novas
vivências e
novos
dados da
experiência
subjetiva,
eles
não podem
jamais
ter
um
valor
idêntico ao do
modelo
em
que se
basearam. Surge daí a
inovação
lingüística,
ou
mutação
lingüística: uma
tentativa do
ouvinte de
copiar a
expressão e o
conteúdo da
mensagem do
falante,
tentativa de
que resulta,
porém, uma
cópia
sempre “falha”,
já
que
diferente,
ainda
que
mínima e
imperceptivelmente, de
seu
original. Na
realidade, podemos
ter
aí uma
dupla
mutação, na
medida
em
que há
modificação
do
valor
semântico,
mesmo
que se
reproduza de
maneira
substancialmente
igual a
forma fônica do
modelo,
assim
como pode
haver
também
modificação
dessa
forma fônica.
As
formas
correntes e as
mutantes
sofrem o
mesmo
processo de
seleção
que as
espécies
biológicas.
Só
que
não se
trata neste
caso de
seleção
natural,
mas de
seleção
cultural.
Em
suma, a
forma
nova (mutante)
compete
com a
velha.
Inicialmente,
elas convivem
durante
algum
tempo,
depois uma
delas suplanta a
outra.
Isso significa
que uma
nova
palavra,
por
exemplo, pode
com o
tempo se
impor a
mais e
mais
falantes,
aumentando de
freqüência,
assim
como
palavras
correntes
podem tornar-se
arcaísmos.
Mas uma
nova
palavra pode
também
ser abandonada
pouco
tempo
após
ter sido
criada.
São os
modismos.
Finalmente,
uma
palavra pode
permanecer restrita à
fala do
seu
criador,
sem
conseguir a
adesão dos
demais
falantes. O
que dissemos a
respeito de
palavras
vale
igualmente
para
pronúncias,
construções
sintáticas,
significados,
expressões
idiomáticas, etc. A
grande
diferença
entre a
mutação
genética e a
lingüística é
que a
primeira se
transmite de
forma unicamente
vertical, de
genitor a
descendente,
ao
passo
que a
segunda se
transmite
vertical e
horizontalmente,
isto é, de uma
geração a
outra,
bem
como
entre
membros
contemporâneos
de uma
mesma
sociedade.
Por
isso, podemos
dizer
que a
mutação
lingüística se transmite
tanto
por
contágio
como
por
herança.
O
mecanismo biológico
consiste na
existência de
genes
que se
combinam
por
meio da
relação
sexual.
Alguns desses
genes sofrem
mutação no
espécime,
originando
descendentes
com
determinada
característica. A
pressão exercida
pelo
meio
ambiente
produz a
seleção
natural,
mediante a
adaptação ao
não a
esse
meio: os
mais “aptos”
sobrevivem e se reproduzem, legando
seus
genes aos
seus
descendentes;
os
menos “aptos”
acabam
por
morrer
sem
deixar
descendência.
Dessa
seleção
natural
resultam a
evolução
ou a
extinção das
espécies.
Analogamente, o
mecanismo
lingüístico
consiste na
existência de
traços
distintivos
(femas,
fonemas,
morfemas,
palavras,
semas, sememas, noemas)
que se
combinam
por
meio da
relação
comunicativa.
Na
interação
entre
falantes (e
mesmo na
interação do
falante
consigo
mesmo,
isto é, na
comunicação
intrapessoal
ou
diálogo
interno)
ocorrem as
mutações (criações,
eliminações e
deslocamentos de
formas de
expressão
ou de
conteúdo)
que chamamos
de
inovações
lingüísticas.
A
pressão do
meio
social é
quem vai
produzir uma
seleção
lingüística
entre o
que deve
passar da
fala
individual
primeiramente
à
norma grupal e
a
seguir à
língua
social e o
que deve
ficar restrito à
fala
individual,
podendo
aí
mesmo
desaparecer.
Em outras
palavras, é a
melhor
ou
pior
adaptação da
inovação
lingüística às
necessidades
sociais de
comunicação o
que vai
determinar a
sobrevida
ou
não da
forma inovadora.
O
surgimento de
uma
nova
forma
lingüística é
como a
mutação de
um
gene,
que
passa a
concorrer
com o
gene
original. A
lei da
seleção
natural e a
lei da
seleção
cultural desempenham papéis
análogos.
Para entendermos
bem essa
analogia,
devemos
inicialmente
lembrar
que uma
espécie
biológica é,
em
primeiro
lugar,
um
conjunto de
raças, e
estas,
um
conjunto de
espécimes.
Com o
passar do
tempo, o
acúmulo de
muitas
pequenas
mutações
em
populações
geograficamente – e
portanto
geneticamente isoladas –
leva
inicialmente
ao
surgimento de
novas
raças e, num
segundo
momento, ao
surgimento de
novas
espécies.
Analogamente, a
língua pode
ser compreendida
como
um
conjunto de
dialetos,
resultado da
superposição
de isoglossas, os
quais
são
evidentemente
um
conjunto de
falares
semelhantes.
Pequenas
mudanças
fonéticas,
gramaticais,
semânticas
ou
lexicais
criam, ao se
acumular
com o
tempo,
diferentes
dialetos; o
acúmulo dessas
mudanças,
sobretudo
por
força do
distanciamento
físico
ou
social dos
falantes,
leva, ao
fim de
um
longo
período, ao
surgimento de
novas
línguas.
Portanto,
com a
evolução
temporal e o
aumento da
diferenciação
dialetal,
alguns
dialetos se
tornam
línguas
independentes.
Às
vezes é
difícil
determinar se
dois
falares
são
dois
dialetos de
uma
mesma
língua
ou
são duas
línguas
diferentes. Os
critérios
utilizados
para
diferenciar
línguas
são
semelhantes
aos utilizados
para
diferenciar
espécies
biológicas.
Embora algumas
espécies sejam
muito próximas
(por
exemplo, o
cão e o
lobo), sabemos
que
são duas
espécies e
não duas
raças da
mesma
espécie. Da
mesma
forma, é
isso
que permite
dizer
que o
português e o
galego
são duas
línguas e
não
dois
dialetos da
mesma
língua,
embora tenham
um
ancestral
comum, o
galaico-português. O
mesmo
raciocínio é
válido
para o
alemão e o
iídiche,
por
exemplo.
Esquematicamente, podemos
confrontar
ambos os
processos na
tabela a
seguir.
Mecanismo biológico |
Mecanismo
lingüístico |
·
genes
·
combinação
sexual
·
mutação
(ocorre no
espécime)
·
seleção
natural
·
adaptação
ao
meio
·
evolução
(ocorre na
espécie)
·
extinção
(ocorre na
espécie)
·
espécie:
pertence a
família,
evolui, se divide
ou se
extingue
·
espécime:
nasce, cresce, se reproduz e morre |
·
traços
distintivos
·
relação de
comunicação
(locutor
A +
locutor B
=
síntese,
isto é,
influência
recíproca)
·
inovação
lingüística (ocorre na
fala)
·
seleção
lingüística
(competição
entre
formas,
aumento de
freqüência,
norma,
arcaísmo)
·
adaptação
à
sociedade
·
evolução
(ocorre na
língua)
·
desuso, “morte”
da
língua
(ocorre na
língua)
·
língua:
pertence a
família,
evolui, se divide
ou se
extingue
·
fala:
“nasce”, “cresce”, se comunica – e se modifica – e “morre” |
Princípios
básicos
da
teoria
da
evolução
A
evolução
histórica,
seja
ela biológica
ou
lingüística, constitui-se
de
alguns
princípios
básicos:
1.
evolução
passo a
passo:
pequenas
mutações
aleatórias
com
freqüência
baixa;
2.
seleção
natural:
variantes
mais “aptas”
têm
maior
chance de
reprodução;
3.
ramificações sucessivas na
linhagem, o
que implica
aumento da
diversidade
(multiequilíbrio);
4.
atuação de
atratores (como
a
lei de Zipf no
léxico
ou a
lei do
menor
esforço na
fonética);
5.
evolução
permanente.
6.
coextensividade
espécie/meio
(no
caso das
línguas
naturais,
temos a coextensividade
língua/cultura/sociedade,
materializada na
tese de
Whorf-Sapir: as
três evoluem
simultaneamente e é
impossível
determinar
qual provoca a
evolução de
qual).
Podemos,
por
outro
lado,
reconhecer
que
todos
esses
princípios
podem
ser reduzidos à
ação de
quatro
forças
evolutivas básicas:
mutação,
seleção (natural
ou cultural),
deriva (genética
ou
lingüística) e migração.
No
caso
específico das
línguas (com
os
seres
vivos o
raciocínio é
análogo),
isso significa
que
mutações (isto
é,
inovações)
ocorrem o
tempo
todo. Pode
ser o
surgimento de
uma
nova
pronúncia,
que
com o
tempo dará
origem a
algum
metaplasmo
fonético; a
criação de uma
nova
palavra
ou o
emprego de
palavra
já existente
em
contexto
inédito, provocando
um
novo
efeito de
sentido; uma
nova
construção
sintática, e
assim
por
diante. Pode
ser
igualmente o
abandono
definitivo de
uma
forma
ou
estrutura
que
já
vinha caindo
em desuso (desaparecimento
de uma
pronúncia, de
uma
palavra, de
um
significado,
de uma
construção
sintática).
Enfim, o “erro”,
tão condenado
pelos
gramáticos
normativos constitui, na
verdade, uma
mutação.
Essa
mutação pode
se
espalhar
ou
não.
Quando se
espalha, o faz de duas
maneiras:
por
difusão
cultural (ou
contágio),
ou
por
difusão dêmica
(ou
migração). A
difusão
por
contágio é
aquela
em
que
apenas a
forma
mutante se
transmite de uma
região a
outra
sem
que haja
deslocamento
físico do
falante
portador dessa
mutação.
Ela obedece
aos
princípios
enunciados
pela
teoria das
ondas (Wellentheorie)
de Johannes Schmidt e
pela
teoria da
tensão
intercurso
lingüístico
x
espírito
de
campanário
de Saussure. (Hoje,
também se
transmite
pelos
meios de
comunicação de
massa, podendo
dar “saltos”
territoriais.)
A
difusão dêmica
ocorre
quando o
falante
vetor da
mutação migra
para
um
novo
território,
onde vai
disseminar a
forma
mutante
por
contágio.
Uma
vez
estabelecida, a
mutação tende
a
afetar de
forma
regular
todos os
elementos
que se
encontrem num
mesmo
contexto
lingüístico
tido
como
favorável ao
desenvolvimento
dessa
mutação (por
exemplo, a
passagem das
consoantes
surdas a sonoras
em
português
medieval
toda
vez
que
elas se
encontrassem
em
posição
intervocálica). As
exceções a uma
lei
evolutiva
surgem da
oposição
entre a
evolução
cega e o
nivelamento
analógico (por
exemplo, o “e”
inicial
átono do
latim
errare
não passou a
“a”
em
português
nem caiu
em italiano,
como seria de
esperar,
por
causa da
analogia
com as
formas
rizotônicas
erro,
erra,
etc.).
O
fenômeno da
seleção
cultural consiste na
disputa
entre a
forma estabelecida e a
forma
mutante. A
forma
que
melhor se
adapta ao
meio,
isto é, a
que
melhor atende
às
necessidades
da
comunicação
entre os
falantes e ao
contexto
social acaba
por
triunfar, seja suplantando
uma
forma estabelecida, seja
ocupando
um “vácuo”
lingüístico (como
ocorre
quando se
cria
um
novo
termo
para
dar
conta de
um
novo
fenômeno
social
ou cultural).
A
deriva
lingüística consiste na
mudança
arbitrária na
freqüência de
mutação
por
efeito de
um atrator
externo.
Por
exemplo, a
influência
que
certos
falantes
dotados de
grande
prestígio
social exercem
nos
hábitos
lingüísticos
de
toda uma
população.
Vejamos
alguns
casos
ilustrativos
de
processos
evolutivos
lingüísticos
muito
similares a
processos
genéticos.
1. A
substituição
do
pretérito
perfeito
chegamos
por
cheguemos (ou
cheguemo) no
dialeto
caipira
por
analogia
com
verbos da
segunda
conjugação
representa uma
vantagem
evolutiva na
medida
em
que restaura a
distinção
entre
presente e
pretérito.
2. A
substituição
de deve
ser
por
deve de
ser na
fala
popular é
um
efeito
colateral da
evolução,
resultado da
contaminação de tem de
ser.
Esse
efeito
colateral às
vezes é
inócuo e às
vezes pode se
tornar
nocivo,
como neste
caso,
em
que introduz
uma complicação
sintática.
3. A regularização das
formas do
futuro do
subjuntivo dos
verbos
em
português
popular.
Por
exemplo, o
uso de
pôr
em
lugar de
puser é o
resultado da
analogia
com
verbos
como
colocar,
cujo
futuro do
subjuntivo
também é
colocar. Trata-se
de uma
tendência a
regularizar a
flexão
verbal.
Todos
esses
fenômenos
evolutivos
combinados explicam a
diversidade
lingüística de
maneira
análoga à
biodiversidade.
Mais
interessante
ainda,
apresentam
certas
analogias
inusitadas
com
problemas de
natureza
biológica.
Por
exemplo,
em
seu
romance
Jurassic Park, Michael Crichton sugere a possibilidade de
clonar
espécimes
animais
extintos,
como os
dinossauros, a
partir do DNA retirado de
material
fóssil
preservado.
Ora, a
ressurreição
de
línguas
como o
hebraico,
extinto
como
língua
viva na
Antigüidade, mantido “fossilizado”
nos
textos
sagrados do
judaísmo e
reavivado
por
ocasião da
fundação do
Estado de
Israel
em 1948, pode
ser comparada ao
processo
genético da
clonagem de
dinossauros.
Um
outro
exemplo de
analogia
entre a
filologia e a
paleontologia
é o
fenômeno do
preconceito
lingüístico
contra a
fala de
certos
grupos (regionais,
culturais,
sociais,
etc.),
bem
como
contra
tudo
que é
estranho (ou
“estrangeiro”)
ao
grupo
dominante,
que
não
deixa de
ser uma
forma de
seleção
cultural, uma competição
em
que o
mais
forte (dominante)
vence o
mais
fraco (excluído)
e impõe a
sua “genética”
(isto
é, o
seu
linguajar).
Conclusão
A
percepção de
que os
mecanismos da
evolução
biológica e da
evolução
lingüística
são
análogos,
embora
não
idênticos, é
bem
antiga e
remonta
mesmo aos
primórdios da
lingüística,
quando esta
ciência
ainda
era
chamada de
gramática comparada
ou
filologia
comparada.
Nos
dias de
hoje, a
gramática, a
filologia e a
lingüística
são
disciplinas
distintas e
bem delimitadas,
em
que pesem as
suas mútuas
relações. No
entanto, o
termo
filologia
se aplica,
ainda
hoje, aos
estudos da
história das
línguas
por
meio dos
textos, o
que
não é
incompatível
com o
estudo dos
textos
por
meio das
línguas. E,
nesse
tocante,
também podemos
assinalar uma
curiosa
analogia
com o
estudo das
espécies
biológicas: a
paleontologia
é, ao
mesmo
tempo, o
estudo e o
processo de
reconstrução
da
história dos
seres
vivos
por
meio da
análise do
substrato
geológico
em
que
seus fósseis
foram gravados, e o
estudo e o
processo de
reconstrução
da
história dos
substratos
geológicos da
Terra
por
meio da
análise dos
fósseis
que neles se
encontram.
Portanto,
assim
como a
paleontologia
é uma
via de
mão
dupla e uma
disciplina de
fronteira
entre as
ciências da
Terra e as
ciências da
vida, a
filologia
realiza o
mesmo
trajeto
entre as
ciências do
texto e as
ciências da
linguagem.
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lingüística e
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