A EVOLUÇÃO LINGÜÍSTICA
DE
UM PONTO DE VISTA DARWINIANO

Aldo Luiz Bizzocchi
(Universidade de Santo Amaro)

 

Introdução

“As línguas são organismos que nascem, se desenvolvem, se reproduzem e morrem.” Esse lema, instituído pela lingüística histórico-comparativa, fundou-se na semelhança encontrada pelos historiadores das línguas entre a evolução lingüística e a biológica. A teoria da evolução das espécies, proposta por Charles Darwin em 1859, influenciou profundamente o pensamento científico do século XIX, com reflexos evidentes na lingüística, que então dava seus primeiros passos. Na verdade, foi esse o momento em que a filologia, que até então partia do conhecimento de língua para reconstituir textos, passou também a partir dos textos para reconstituir as línguas, numa espécie de “arqueologia oupaleontologia lingüística.

Essa metáfora biológica, considerada uma heresia durante a maior parte do século XX, mais voltado aos aspectos sociais, culturais, enfim, “humanos” da língua, hoje volta com toda a força graças aos avanços tanto da lingüística quanto das biociências e das neurociências. Enquanto a lingüística do século XIX foi essencialmente evolutiva e a do século XX, essencialmente estrutural, hoje o que se busca é a articulação das perspectivas sincrônica e diacrônica na compreensão holística da linguagem como fenômeno ao mesmo tempo cultural e biológico.

Os mesmos enfoques estrutural e evolutivo também são dados ao estudo das espécies biológicas. É o que fazem respectivamente a paleontologia de um lado e a anatomia e a fisiologia do outro. Mas também há uma disciplina que faz a ligação entre a evolução e a estruturação das espécies biológicas: é a genética. Essa disciplina explica como ocorrem nos espécimes e se transmitem aos descendentes as mutações que a longo prazo acarretam a mudança da espécie. E ela pode fornecer várias ferramentas úteis para compreendermos também de que maneira a estrutura lingüística evolui enquanto funciona e funciona enquanto evolui.

Nas últimas décadas, estudos de lingüística evolucionária vêm ocupando cada vez mais o interesse de especialistas, e novas teorias, como a da protolinguagem e a da Torre de Babel têm sido propostas, sobretudo devido às contribuições mútuas entre disciplinas humanísticas e biológicas, como a filologia, a arqueologia, a paleoantropologia, a genética e a ciência cognitiva. Além disso, a iminente extinção em massa de línguas e conseqüente perda da diversidade lingüística, análoga à perda da biodiversidade, tem precipitado a intensificação do processo de catalogação e descrição de línguas ágrafas, em especial africanas, ameríndias e polinésias, o que tem contribuído para reavivar o interesse pelo estudo da origem das línguas naturais.

Exemplos disso são os estudos de Cavalli-Sforza (2000), dentre outros, visando ao estabelecimento da correlação entre dados genéticos e culturais, especialmente a língua. Para Cavalli-Sforza, a transmissão lingüística faz parte da transmissão cultural. Segundo sua teoria da Eva Africana, se, analogamente aos genes, se transmite a língua de uma geração a outra (embora, evidentemente, por meios diferentes), é possível que todas as línguas atuais descendam de uma língua falada na África há cerca de 200 mil anos.

Na concepção de Dawkins (1989), construtos mentais que ele chama de memes – transmitem-se aproximadamente conforme a mesma dinâmica da transmissão dos genes. Os fatos lingüísticos e a própria língua seriam então um caso particular de memes, objeto de estudo da memética.

Na realidade, o modelo biológico evolucionário de sistema é universal, isto é, pode ser aplicado, com as devidas restrições e adaptações, a qualquer sistema autopoiético: línguas, sociedades, civilizações, economias, sistemas semióticos não-verbais e cibersemióticos, sistemas computacionais, comunicacionais, geológicos e mesmo cosmológicos. A noção de autopoiese, proposta por Maturana e Varela (2001), da qual falaremos mais adiante, pode assim ser estendida a qualquer sistema complexo adaptativo. Portanto, não surpreende que a língua seja passível do mesmo tratamento metodológico de estudo que é aplicado aos sistemas complexos adaptativos naturais. Surpreende apenas que, no campo da linguagem verbal, esse procedimento metodológico ainda esteja em fase inicial enquanto em outros domínios do conhecimento estejamos presenciando grandes progressos.

Ocorre que durante muito tempo a ciência se dedicou a estudar e explicar os sistemas naturais, deixando de lado os sistemas criados pelo homem. Havia a crença de que os fenômenos humanos não eram passíveis de sistematização e, portanto, os estudos em humanidades não eram considerados ciências. A lingüística sempre foi uma exceção a essa regra, pois muito cedo percebeu-se que a língua é um sistema regido por leis bastante claras, que, como hoje se sabe, são fruto da natureza biológica da linguagem. O que perturbava os estudiosos eram as inúmeras exceções, que punham uma certa dose de caos na aparente ordem da gramática. De fato, as normas lingüísticas e a gramática normativa representam a ordem, a estabilidade, ao passo que a inovação corresponde a um momento de liberdade criativa dentro da língua. É um certo momento de “caos ou instabilidade. A língua se sustenta dialeticamente entre a necessidade de uma certa estabilidade ou ordem para funcionar e a necessidade de criatividade para evoluir e adaptar-se. Uma compreensão mais profunda dos sistemas naturais permitiu perceber que as irregularidades também são previsíveis e explicáveis racionalmente. A teoria dos sistemas permitiu agregar a lingüística ao rol das ciências ditas “positivas”.

Com isso, a metáfora biológica que abre este trabalho volta a fazer sentido. Feita a única ressalva de que os lingüistas histórico-comparativos e filólogos do século XIX erraram ao comparar a língua a um organismo, isto é, a um espécime. Como Saussure (2003) demonstrou, os fatos lingüísticos estruturam-se em dois níveis, língua e fala. Assim, a língua corresponderia à espécie, e os atos de fala dos inúmeros falantes, vivos ou mortos, presentes ou passados, corresponderiam aos espécimes que compõem a espécie.[1]

Com efeito, não existem línguas mortas, existem falas mortas. As línguas não morrem, mas evoluem para outras línguas ou então se extinguem, quando não deixam descendentes. O equívoco em comparar uma língua a um organismo biológico está em que espécies não morrem, quem morre são os indivíduos, sejam eles animais, plantas ou falantes. Do mesmo modo como uma espécie animal ou vegetal é o resultado de uma abstração e categorização feitas a partir da análise dos indivíduos isolados – os espécimes para reconhecer-lhes os traços morfológicos e genéticos em comum, as línguas também são abstrações realizadas a partir dos atos de fala, única realidade palpável e observável pelo lingüista. O procedimento taxonômico de classificar animais, plantas e microorganismos em espécies, gêneros, famílias, etc., é o mesmo que origem às árvores genealógicas das línguas. E, o que é mais curioso e ilustrativo, a comparação entre a árvore da evolução genética e a da evolução lingüística do ser humano demonstra uma forte correlação entre ambas (Cavalli-Sforza, 2000, p. 189 ss.).

 

A linguagem como sistema autopoiético

Maturana e Varela propuseram o termo autopoiese para designar

...uma forma de organização sistêmica, na qual os sistemas como um todo produzem e substituem seus próprios componentes, numa contínua articulação com o meio. Os sistemas autopoiéticos são autocatalíticos, isto é, não apenas estabelecem, mas também mantêm uma fronteira peculiar com o mundo circundante – fronteira essa que simultaneamente os separa do meio ambiente e os conecta com ele. (Dimitrov & Ebsary, 2000: 51)

Como dissemos, bem como decorre dessa definição, as línguas são sistemas autopoiéticos. Maturana e Varela explicam assim a noção de autopoiese.

Numa máquina, tal como numa bicicleta, as peças foram planejadas, fabricadas e, em seguida, reunidas para formar uma estrutura com componentes fixos. Num sistema vivo, ao contrário, os componentes mudam continuamente, há um incessante fluxo de matéria através de um organismo vivo. Cada célula sintetiza e desenvolve estruturas continuadamente, e elimina produtos residuais. Tecidos e órgãos substituem suas células em ciclos contínuos. Há crescimento, desenvolvimento e evolução. A máquina possui padrão e estrutura, mas o organismo vivo possui padrão de organização, estrutura e processo vital. Uma vida é autocriadora (autopoiética), uma máquina é projetada e montada.

O vivo tem a ver primeiramente com a conservação, não com a mudança. Os seres vivos são sistemas moleculares, redes de elaboração e transformação de moléculas. A organização, os processos, não mudam; o que muda são as moléculas particulares, os componentes que entram no processo. A isto que se modifica, chamo de estrutura. Por exemplo, alguém fica doente e enfraquece, perde moléculas; depois, melhora, recupera seu peso, sua musculatura. ocorreu uma série de mudanças estruturais, mas conservou-se a organização, o viver. Os seres vivos são máquinas que se definem por sua organização, por seus processos de conservação e que diferem das outras máquinas por sua capacidade de se auto-reproduzir.

Essa perspectiva de compreensão do fenômeno da vida, decorrente do pensamento sistêmico e complexo, em voga sobretudo a partir da década de 1990, nos remete, sem dúvida, à formulação do conceito de língua por meio da metáfora do xadrez de Saussure. Este intuía e sinalizava em princípios do século passado o caráter complexo e, portanto, dinâmico da língua. Igualmente, podemos dizer que a visão pancrônica da lingüística pós-estruturalista havia incorporado o pensamento complexo avant la lettre nos anos 1970.

O homem é um ser biopsicossocial, isto é, formado simultaneamente por uma natureza biológica (em termos computacionais, o hardware), psicológica (o software) e social (o contexto). O hardware (isto é, o cérebro) foi capaz de gerar um software (a linguagem) que se autoproduz e interage com a sociedade da mesma forma como um organismo interage com o meio. De forma mais detalhada, a linguagem permite o pensamento simbólico, que desencadeia a ação, que por sua vez produz a mudança social. Esta acarreta a mudança lingüística, ou mutação lingüística, que ensejará novos pensamentos, e assim sucessivamente num ciclo interminável. Dito de outro modo, a linguagem muda a sociedade, que muda a linguagem. É por isso que a língua muda enquanto funciona (isto é, interage com o meio, com os falantes) e funciona enquanto muda. Se parasse de evoluir, a língua cairia em desuso, pois não daria mais conta da mudança social. Por outro lado, quando uma língua cai em desuso, ela deixa de evoluir e permanece fossilizada nos registros que deixou.

 

A dinâmica da evolução lingüística

Falamos no parágrafo anterior em mutação lingüística. Esse termo não é de todo estranho à terminologia das ciências da linguagem, como se pode constatar no seu emprego em relação à mudança fonética (cf. a mutação consonântica do germânico, a mutação consonântica do alemão e a mutação vocálica do inglês). No entanto, toda inovação lingüística é, efetivamente, uma mutação, a exemplo da mutação genética. Para que esse ponto fique mais claro, convém explicarmos primeiramente como ocorre a mutação genética.

As moléculas de DNA (ácido desoxirribonucléico) têm a capacidade de auto-replicar-se, ou seja, elas produzem cópias de si mesmas, na medida em que as bases moleculares adenina (A), citosina (C), guanina (G) e tiamina (T) se combinam duas a duas, formando pares. A falha fortuita nessas combinações produz uma cópia imperfeita da molécula original. Conforme o DNA prossegue se auto-replicando, essas falhas (mutações) vão se acumulando, de modo que, após algumas gerações, alterações significativas nos traços mórficos ou funcionais do organismo podem ser notadas.

A imitação lingüística é bastante similar à replicação do DNA. Na verdade, o conceito de língua é, como dissemos, uma abstração que se faz a partir de um conjunto de fatos concretos que são os atos de fala. Mas como se passa da fala à língua? Os seres humanos podem conviver em sociedade e conseguiram construir para si uma sociedade formada de relações complexas graças à comunicação e, portanto, à linguagem. Os biólogos da atualidade reconhecem que, sem uma aptidão simbólica sofisticada, capaz de representar coisas presentes e ausentes no espaço e no tempo, bem como noções concretas e abstratas, o estágio evolutivo de nosso intelecto ainda seria o do Homo erectus ou do neandertal. O que diferenciou o Homo sapiens das espécies que o antecederam foi exatamente a aptidão para falar, isto é, para utilizar um código articulado, dotado de uma gramática. Isso implica que os falantes atribuem um sentido consensual aos signos de que se servem para expressar os seus pensamentos e sentimentos, sem o que não haveria comunicação, apenas ruído. Isso nos levaria a crer, em primeiro lugar, que o indivíduo que fala consegue transformar de forma precisa seus pensamentos, sentimentos, sensações e intuições — numa palavra, suas cognições extremamente pessoais em informações objetivas, exprimíveis por meio de um número finito e relativamente pequeno de palavras; em segundo lugar, que ele é capaz de transmitir todas essas informações numa mensagem verbal e, em terceiro, que o ouvinte, tendo supostamente recebido essa mensagem sem nenhuma distorção de qualquer natureza, especialmente física, é capaz de recriar em sua mente pensamentos, sentimentos, sensações e intuições mais ou menos correspondentes aos do seu interlocutor. Para que esse processo ocorresse de modo perfeito, seria necessário, além de uma série de outros requisitos, que ambos os interlocutores atribuíssem aos signos usados, os quais não têm em si nenhuma relação necessária com seu significado, fundamentalmente o mesmo valor. Para complicar as coisas, devemos lembrar que o valor dos signos isto é, as cognições específicas que eles representam a cada momento – é diferente a cada novo ato de fala, e que, em contrapartida, os signos de que o falante dispõe em seu repertório são aqueles extraídos dos atos de fala precedentes, sejam os dele ou os dos outros indivíduos com quem convive e de quem sofre influência. Como os signos servem, a cada novo ato de fala, para exprimir novas cognições, novas vivências e novos dados da experiência subjetiva, eles não podem jamais ter um valor idêntico ao do modelo em que se basearam. Surge daí a inovação lingüística, ou mutação lingüística: uma tentativa do ouvinte de copiar a expressão e o conteúdo da mensagem do falante, tentativa de que resulta, porém, uma cópia semprefalha”, que diferente, ainda que mínima e imperceptivelmente, de seu original. Na realidade, podemos ter uma dupla mutação, na medida em que modificação do valor semântico, mesmo que se reproduza de maneira substancialmente igual a forma fônica do modelo, assim como pode haver também modificação dessa forma fônica.

As formas correntes e as mutantes sofrem o mesmo processo de seleção que as espécies biológicas. que não se trata neste caso de seleção natural, mas de seleção cultural. Em suma, a forma nova (mutante) compete com a velha. Inicialmente, elas convivem durante algum tempo, depois uma delas suplanta a outra. Isso significa que uma nova palavra, por exemplo, pode com o tempo se impor a mais e mais falantes, aumentando de freqüência, assim como palavras correntes podem tornar-se arcaísmos. Mas uma nova palavra pode também ser abandonada pouco tempo após ter sido criada. São os modismos. Finalmente, uma palavra pode permanecer restrita à fala do seu criador, sem conseguir a adesão dos demais falantes. O que dissemos a respeito de palavras vale igualmente para pronúncias, construções sintáticas, significados, expressões idiomáticas, etc. A grande diferença entre a mutação genética e a lingüística é que a primeira se transmite de forma unicamente vertical, de genitor a descendente, ao passo que a segunda se transmite vertical e horizontalmente, isto é, de uma geração a outra, bem como entre membros contemporâneos de uma mesma sociedade. Por isso, podemos dizer que a mutação lingüística se transmite tanto por contágio como por herança.

O mecanismo biológico consiste na existência de genes que se combinam por meio da relação sexual. Alguns desses genes sofrem mutação no espécime, originando descendentes com determinada característica. A pressão exercida pelo meio ambiente produz a seleção natural, mediante a adaptação ao não a esse meio: os maisaptos” sobrevivem e se reproduzem, legando seus genes aos seus descendentes; os menosaptos” acabam por morrer sem deixar descendência. Dessa seleção natural resultam a evolução ou a extinção das espécies.

Analogamente, o mecanismo lingüístico consiste na existência de traços distintivos (femas, fonemas, morfemas, palavras, semas, sememas, noemas) que se combinam por meio da relação comunicativa. Na interação entre falantes (e mesmo na interação do falante consigo mesmo, isto é, na comunicação intrapessoal ou diálogo interno) ocorrem as mutações (criações, eliminações e deslocamentos de formas de expressão ou de conteúdo) que chamamos de inovações lingüísticas. A pressão do meio social é quem vai produzir uma seleção lingüística entre o que deve passar da fala individual primeiramente à norma grupal e a seguir à língua social e o que deve ficar restrito à fala individual, podendo mesmo desaparecer. Em outras palavras, é a melhor ou pior adaptação da inovação lingüística às necessidades sociais de comunicação o que vai determinar a sobrevida ou não da forma inovadora.

O surgimento de uma nova forma lingüística é como a mutação de um gene, que passa a concorrer com o gene original. A lei da seleção natural e a lei da seleção cultural desempenham papéis análogos. Para entendermos bem essa analogia, devemos inicialmente lembrar que uma espécie biológica é, em primeiro lugar, um conjunto de raças, e estas, um conjunto de espécimes. Com o passar do tempo, o acúmulo de muitas pequenas mutações em populações geograficamente – e portanto geneticamente isoladas – leva inicialmente ao surgimento de novas raças e, num segundo momento, ao surgimento de novas espécies.

Analogamente, a língua pode ser compreendida como um conjunto de dialetos, resultado da superposição de isoglossas, os quais são evidentemente um conjunto de falares semelhantes. Pequenas mudanças fonéticas, gramaticais, semânticas ou lexicais criam, ao se acumular com o tempo, diferentes dialetos; o acúmulo dessas mudanças, sobretudo por força do distanciamento físico ou social dos falantes, leva, ao fim de um longo período, ao surgimento de novas línguas. Portanto, com a evolução temporal e o aumento da diferenciação dialetal, alguns dialetos se tornam línguas independentes.

Às vezes é difícil determinar se dois falares são dois dialetos de uma mesma língua ou são duas línguas diferentes. Os critérios utilizados para diferenciar línguas são semelhantes aos utilizados para diferenciar espécies biológicas. Embora algumas espécies sejam muito próximas (por exemplo, o cão e o lobo), sabemos que são duas espécies e não duas raças da mesma espécie. Da mesma forma, é isso que permite dizer que o português e o galego são duas línguas e não dois dialetos da mesma língua, embora tenham um ancestral comum, o galaico-português. O mesmo raciocínio é válido para o alemão e o iídiche, por exemplo.

Esquematicamente, podemos confrontar ambos os processos na tabela a seguir.

Mecanismo biológico

Mecanismo lingüístico

·          genes

·          combinação sexual

 

 

 

·          mutação (ocorre no espécime)

 

·          seleção natural

 

 

·          adaptação ao meio

·          evolução (ocorre na espécie)

·          extinção (ocorre na espécie)

 

·          espécie: pertence a família, evolui, se divide ou se extingue

·          espécime: nasce, cresce, se reproduz e morre

·          traços distintivos

·          relação de comunicação (locutor A + locutor B = síntese, isto é, influência recíproca)

·          inovação lingüística (ocorre na fala)

·          seleção lingüística (competição entre formas, aumento de freqüência, norma, arcaísmo)

·          adaptação à sociedade

·          evolução (ocorre na língua)

·          desuso, “morte” da língua (ocorre na língua)

·          língua: pertence a família, evolui, se divide ou se extingue

·          fala: “nasce”, “cresce”, se comunica – e se modifica – e “morre”

 

Princípios básicos da teoria da evolução

A evolução histórica, seja ela biológica ou lingüística, constitui-se de alguns princípios básicos:

1.          evolução passo a passo: pequenas mutações aleatórias com freqüência baixa;

2.          seleção natural: variantes mais “aptas” têm maior chance de reprodução;

3.          ramificações sucessivas na linhagem, o que implica aumento da diversidade (multiequilíbrio);

4.          atuação de atratores (como a lei de Zipf no léxico ou a lei do menor esforço na fonética);

5.          evolução permanente.

6.          coextensividade espécie/meio (no caso das línguas naturais, temos a coextensividade língua/cultura/sociedade, materializada na tese de Whorf-Sapir: as três evoluem simultaneamente e é impossível determinar qual provoca a evolução de qual).

Podemos, por outro lado, reconhecer que todos esses princípios podem ser reduzidos à ação de quatro forças evolutivas básicas: mutação, seleção (natural ou cultural), deriva (genética ou lingüística) e migração.

No caso específico das línguas (com os seres vivos o raciocínio é análogo), isso significa que mutações (isto é, inovações) ocorrem o tempo todo. Pode ser o surgimento de uma nova pronúncia, que com o tempo dará origem a algum metaplasmo fonético; a criação de uma nova palavra ou o emprego de palavra existente em contexto inédito, provocando um novo efeito de sentido; uma nova construção sintática, e assim por diante. Pode ser igualmente o abandono definitivo de uma forma ou estrutura que vinha caindo em desuso (desaparecimento de uma pronúncia, de uma palavra, de um significado, de uma construção sintática). Enfim, o “erro”, tão condenado pelos gramáticos normativos constitui, na verdade, uma mutação.[2] Essa mutação pode se espalhar ou não. Quando se espalha, o faz de duas maneiras: por difusão cultural (ou contágio), ou por difusão dêmica (ou migração). A difusão por contágio é aquela em que apenas a forma mutante se transmite de uma região a outra sem que haja deslocamento físico do falante portador dessa mutação. Ela obedece aos princípios enunciados pela teoria das ondas (Wellentheorie) de Johannes Schmidt e pela teoria da tensão intercurso lingüístico x espírito de campanário de Saussure. (Hoje, também se transmite pelos meios de comunicação de massa, podendo darsaltos territoriais.) A difusão dêmica ocorre quando o falante vetor da mutação migra para um novo território, onde vai disseminar a forma mutante por contágio.

Uma vez estabelecida, a mutação tende a afetar de forma regular todos os elementos que se encontrem num mesmo contexto lingüístico tido como favorável ao desenvolvimento dessa mutação (por exemplo, a passagem das consoantes surdas a sonoras em português medieval toda vez que elas se encontrassem em posição intervocálica). As exceções a uma lei evolutiva surgem da oposição entre a evolução cega e o nivelamento analógico (por exemplo, o “e” inicial átono do latim errare não passou a “a” em português nem caiu em italiano, como seria de esperar, por causa da analogia com as formas rizotônicas erro, erra, etc.).[3]

O fenômeno da seleção cultural consiste na disputa entre a forma estabelecida e a forma mutante. A forma que melhor se adapta ao meio, isto é, a que melhor atende às necessidades da comunicação entre os falantes e ao contexto social acaba por triunfar, seja suplantando uma forma estabelecida, seja ocupando umvácuo lingüístico (como ocorre quando se cria um novo termo para dar conta de um novo fenômeno social ou cultural).

A deriva lingüística consiste na mudança arbitrária na freqüência de mutação por efeito de um atrator externo. Por exemplo, a influência que certos falantes dotados de grande prestígio social exercem nos hábitos lingüísticos de toda uma população.

Vejamos alguns casos ilustrativos de processos evolutivos lingüísticos muito similares a processos genéticos.

1. A substituição do pretérito perfeito chegamos por cheguemos (ou cheguemo) no dialeto caipira por analogia com verbos da segunda conjugação representa uma vantagem evolutiva na medida em que restaura a  distinção entre presente e pretérito.

2. A substituição de deve ser por deve de ser na fala popular é um efeito colateral da evolução, resultado da contaminação de tem de ser. Esse efeito colateral às vezes é inócuo e às vezes pode se tornar nocivo, como neste caso, em que introduz uma complicação sintática.

3. A regularização das formas do futuro do subjuntivo dos verbos em português popular. Por exemplo, o uso de pôr em lugar de puser é o resultado da analogia com verbos como colocar, cujo futuro do subjuntivo também é colocar. Trata-se de uma tendência a regularizar a flexão verbal.

Todos esses fenômenos evolutivos combinados explicam a diversidade lingüística de maneira análoga à biodiversidade. Mais interessante ainda, apresentam certas analogias inusitadas com problemas de natureza biológica. Por exemplo, em seu romance Jurassic Park, Michael Crichton sugere a possibilidade de clonar espécimes animais extintos, como os dinossauros, a partir do DNA retirado de material fóssil preservado. Ora, a ressurreição de línguas como o hebraico, extinto como língua viva na Antigüidade, mantido “fossilizado” nos textos sagrados do judaísmo e reavivado por ocasião da fundação do Estado de Israel em 1948, pode ser comparada ao processo genético da clonagem de dinossauros.

Um outro exemplo de analogia entre a filologia e a paleontologia é o fenômeno do preconceito lingüístico contra a fala de certos grupos (regionais, culturais, sociais, etc.), bem como contra tudo que é estranho (ouestrangeiro”) ao grupo dominante, que não deixa de ser uma forma de seleção cultural, uma competição em que o mais forte (dominante) vence o mais fraco (excluído) e impõe a suagenética” (isto é, o seu linguajar).

 

Conclusão

A percepção de que os mecanismos da evolução biológica e da evolução lingüística são análogos, embora não idênticos, é bem antiga e remonta mesmo aos primórdios da lingüística, quando esta ciência ainda era chamada de gramática comparada ou filologia comparada. Nos dias de hoje, a gramática, a filologia e a lingüística são disciplinas distintas e bem delimitadas, em que pesem as suas mútuas relações. No entanto, o termo filologia se aplica, ainda hoje, aos estudos da história das línguas por meio dos textos, o que não é incompatível com o estudo dos textos por meio das línguas. E, nesse tocante, também podemos assinalar uma curiosa analogia com o estudo das espécies biológicas: a paleontologia é, ao mesmo tempo, o estudo e o processo de reconstrução da história dos seres vivos por meio da análise do substrato geológico em que seus fósseis foram gravados, e o estudo e o processo de reconstrução da história dos substratos geológicos da Terra por meio da análise dos fósseis que neles se encontram. Portanto, assim como a paleontologia é uma via de mão dupla e uma disciplina de fronteira entre as ciências da Terra e as ciências da vida, a filologia realiza o mesmo trajeto entre as ciências do texto e as ciências da linguagem.


 

Referências bibliográficas

BIZZOCCHI, Aldo Luiz. O papel da tensão entre evolução lingüística e nivelamento analógico e suas implicações na estrutura gramatical do português moderno. Revista Brasileira de Lingüística, 1997, v. 9, n.º 1, p. 59-71.

CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca. Genes, povos e línguas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

COSERIU, Eugenio. Teoria da linguagem e lingüística geral. Rio de Janeiro: Presença, 1979.

DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

DIMITROV, Vladimir & EBSARY, Robert. A busca da identidade: autopoiese intrapessoal e autoconhecimento. Thot, 2000, n.º 74, p. 51-59.

MATURANA, Humberto & VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento. As bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2003.


 

[1] Coseriu (1979) propôs a estratificação dos fenômenos lingüísticos em três níveis distintos: sistema, norma e fala. Assim, numa analogia entre a lingüística e a biologia, o sistema lingüístico corresponderia à espécie, as diferentes normas dentro do sistema seriam as subespécies ou raças e os atos de fala individuais representariam os espécimes biológicos ou indivíduos.

[2] De fato, um falante erra realmente quando comete um lapso, isto é, quando, por força de estresse físico ou emocional, falta de concentração ou problema fisiológico, produz um enunciado que ele próprio tem consciência de não corresponder ao que pretendia dizer.

[3] Para maiores detalhes sobre a oposição evolução x analogia, cf. Bizzocchi (1997).