AULO GÉLIO FILÓLOGO?

José Rodrigues Seabra Filho (USP)

Roma antiga, época imperial dos Antoninos. É desse período da história Aulo Gélio, escritor erudito, crítico literário, gramático, autor cuja biografia se revela praticamente quase só pelas informações que ele próprio dá, sobre si mesmo, no seu livro Noites Áticas. Os dados seguintes temos então a partir dessa obra.

Viveu mais em Roma, onde provavelmente tenha nascido. Trabalhou e estudou com eruditos que ele mesmo cita: Sulpício Apolinário, Tito Castrício, Antônio Juliano, Cornélio Frontão. Foi discípulo do filósofo acadêmico Favorino de Arles. Segundo o costume dos jovens de famílias nobres, Aulo Gélio fez também sua viagem a Atenas para completar os estudos. Lá freqüentou Herodo Ático e seguiu também as lições do acadêmico Taurus. É em Atenas que ele começou sua obra, completada depois em Roma.

Parece-nos hoje, pelo que podemos depreender das Noites Áticas, que Aulo Gélio era sobretudo muito ligado ao passado de Roma (à língua, às tradições, aos costumes austeros etc.). É como gramático, às vezes um tanto pretensioso, como crítico de obras literárias, quase sempre empolgado e exagerado, e até como historiador que ele nos demonstra ter lido muitos autores antigos.

Grande parte das Noites Áticas devem ter sido escritas durante o império de Marco Aurélio, de 161 a 180, época que se pode caracterizar politicamente por uma procura de reorganização do poder imperial, e literariamente por certo declínio pós-clássico. A obra toda compõe-se de vinte livros. Apresenta um total de 398 capítulos, mas dos 15 capítulos do livro oitavo temos hoje apenas os títulos.

A partir do estudo dessa obra, vem-nos a questão: seria possível ou pelo menos admissível classificar de “filólogo” o autor ?

De início filo//logoj significa literalmente “aquele que gosta de falar” e daí “que gosta das letras” e também “que gosta de dissertar sobre assuntos literários ou de erudição”. Hoje, sem perder o sentido inicial, o termo se aplica mais especialmente ao estudioso e pesquisador de ciência lingüística baseada em tradição escrita. Daí é possível aplicá-lo convenientemente a Aulo Gélio mais no sentido primeiro do que na acepção moderna. Este autor é antes de tudo um “apreciador de literatura”. Ora, um aspecto de estudo filológico assim considerado transparece desde o prefácio do primeiro livro das Noites Áticas.

Primeiramente o autor indica como elaborou a obra (praefatio 3):

Facta igitur est in his quoque commentariis eadem rerum disparilitas quae fuit in illis annotationibus pristinis, quas breuiter et indigeste et incondite eruditionibus lectionibusque uariis feceramus.

Colocou-se portanto também nestes comentários a mesma variedade de assuntos que havia naquelas anotações primitivas que tínhamos feito brevemente, sem ordem , sem acabamento, de ensinos e leituras diversas.

Em seguida ele nos dá a razão do título (praefatio 4):

Sed quoniam longinquis per hiemem noctibus in agro, sicuti dixi, terrae Atticae commentationes hasce ludere ac facere exorsi sumus, idcirco eas inscripsimus “Noctium” esse “Atticarum”, nihil imitati festiuitates inscriptionum quas plerique alii utriusque linguae scriptores in id genus libris fecerunt.

Mas visto que em longas noites de inverno no território, assim como eu disse, da terra ática começamos a nos divertir e a compor estes ensaios, por isso os intitulamos das Noites Áticas, sem imitar os festejados títulos que quase todos os outros escritores de uma e outra língua deram a livros deste gênero.

Como se classificam então exatamente os capítulos de Aulo Gélio ? Commentationes e commentarii (comentários, ensaios), que são em suma textos redigidos quando não se pretende tratar a fundo o assunto. E ainda annotationes (anotações, notas primitivas de leituras). Descreve-se já no prefácio, com simplicidade, o método seguido. O livro, conforme nos diz o autor, se constitui de notas tomadas a partir de muitas e muitas leituras e a partir também de conversações com filósofos e sábios.

E mais exatamente sobre o conteúdo da obra vamos encontrar as indicações seguintes (praefatio 13):

Quod erunt autem in his commentariis pauca quaedam scrupulosa et anxia, uel ex grammatica uel ex dialectica uel etiam ex geometrica, quodque erunt item paucula remotiora super augurio iure et pontificio, non oportet ea defugere, quasi aut cognitu non utilia aut perceptu difficilia. Non enim fecimus altos nimis et obscuros in his rebus quaestionum sinus, sed primitias quasdam et quasi libamenta ingenuarum artium dedimus, quae uirum ciuiliter eruditum neque audisse umquam neque attigisse, si non inutile, at quidem certe indecorum est.

Porque haverá além disso nestes comentários umas poucas coisas escrupulosas e angustiantes (uns pontos difíceis e delicados), ou de gramática ou de dialética ou até de geometria, e porque haverá igualmente pouquinhas mais remotas coisas sobre direito augural e pontifical, não convém evitar esses pontos, como se ou não úteis de conhecer ou difíceis de perceber. Pois não fizemos altas demasiadamente e obscuras sinuosidades de questões nesses assuntos, mas demos certas primícias e como que ensaios de artes liberais, as quais o varão civilmente erudito nem ter ouvido alguma vez nem ter atingido, se não inútil, mas pelo menos é decerto indecoroso.

Em resumo, o objetivo é levar ao leitor conhecimentos úteis. Aulo Gélio procura tornar mais cultos os homens, mais correto o uso do latim e mais bem firmada a recordação de fatos relacionados com a civilização romana. As Noites Áticas transportam o leitor a um mundo de sábios - ou de pedantes - , para os quais a gramática parece ser o grande exercício intelectual. Apresentam-se em modo de compilação desordenada de ensinamentos e informações sobre assuntos variados: direito, filosofia, língua, literatura e fatos históricos. Trazem extratos de um ou outro autor antigo cuja obra se perdeu totalmente ou em parte, notícias sobre o mundo antigo, anedotas, doutrinas filosóficas, questões morais, questões científicas, crítica literária e discussões gramaticais - enfim, erudição excessiva e desordenada.

A sucessão aí de capítulos sem ligação entre si, em geral curtos, trata pois de assuntos bem variados. Quase todos os ramos do saber interessam a Aulo Gélio. Os capítulos mais numerosos são consagrados a questões de gramática do latim. Também há muitos sobre literatura: citações comentadas de autores arcaicos ou do período clássico (Aulo Gélio cita mais de 250 autores, de alguns dos quais só conhecemos essas citações); comparação entre texto grego e tradução dada por escritor latino; biografia resumida de autores antigos.

Em análises gramaticais ou em citações, nosso autor trabalha com os dois idiomas da antigüidade clássica. Mas o estudo histórico de uma língua, quer da latina quer da grega neste caso, através da análise crítica de textos - ou seja: o que propriamente classificamos hoje como filologia -, não é aí o objetivo consciente. Esta disciplina, a filologia, podemos considerá-la no livro Noites Áticas, mas como a entendiam os antigos romanos: ou como sendo simplesmente o estudo de antigas literaturas ou como crítica literária de modo geral.

E é neste ponto de “estudo das literaturas antigas” que, por exemplo, um ramo do saber, a história, vai estar presente nas Noites Áticas, sem aí tornar o livro propriamente desse gênero bem determinado. Encontram-se na obra aulogeliana numerosos fatos sobre personagens históricas. Os grandes homens, os heróis da história aparecem em muitos capítulos, sobretudo quando se trata de mostrar a virtude cívica dos romanos antigos. A partir dessas considerações, entende-se a preocupação em distinguir exatamente história, anais e efemérides:

Ita historias quidem esse aiunt rerum gestarum uel expositionem uel demonstrationem uel quo alio nomine id dicendum est. Annales uero esse cum0 res gestae plurium annorum obseruato cuiusque anni ordine deinceps componuntur. Cum uero non per annos, sed per dies singulos res gestae scribuntur, ea historia Graeco uocabulo e))fhmeri dicitur (5,18,6-7).

Assim histórias certamente dizem ser dos fatos ou a exposição ou a demonstração ou por qual outro nome isso deve ser dito; anais então dizem haver quando fatos de muitos anos mais, observada a ordem de cada ano, se compõem sucessivamente. Quando porém não por anos mas por dias, um a um, os fatos forem escritos, essa história se diz pelo vocábulo grego e)fhmeri.

Mas qual a razão em apresentar tais distinções ? Embora seu livro não seja obra especificamente de história, Aulo Gélio sente que em muitos passos escreve história ou que pelo menos cita muitos trechos de historiadores. Por conseqüência vemos-lhe a preocupação em definir a disciplina.

Se para a literatura clássica por um lado a filologia é de modo geral crítica literária e estudo de textos antigos, por outro a história é gênero literário e entra no âmbito da literatura artística. Trabalhar com o estudo de textos de história era então trabalhar também no domínio da filologia.

Encerremos esta comunicação com um fato relatado por Aulo Gélio a partir de sua pesquisa, conforme ele diz, em livros de antigas histórias. É exemplo dentre os muitos que esse autor nos apresenta de estudo de texto antigo, mesmo que neste caso por meio de simples citação de leitura; é exemplo pois de trabalho de “filólogo”, entendido aí como trabalho de um “amante da literatura”:

In libris ueterum memoriarum scriptum est Hannibalem Carthaginiensem apud regem Antiochum facetissime cauillatum esse. Ea cauillatio huiuscemodi fuit: ostendebat ei Antiochus in campo copias ingentis quas bellum populo Romano facturus comparauerat, couertebatque exercitum insignibus argenteis et aureis florentem; inducebat etiam currus cum falcibus et elephantos cum turribus equitatumque frenis, ephippiis, monilibus, phaleris praefulgentem. Atque ibi rex, contemplatione tanti ac tam ornati exercitus gloriabundus, Hannibalem aspicit et: « Putasne, inquit, conferri posse ac satis esse Romanis haec omnia ? » Tum Poenus, eludens ignauiam imbelliamque militum eius pretiose armatorum : «Satis, plane satis esse credo Romanis haec omnia, etiamsi auarissimi sunt».

Escreveu-se nos livros das antigas narrativas que o cartaginês Aníbal gracejou de modo muito faceto na presença do rei Antíoco. Esse gracejo foi deste modo: Antíoco lhe mostrava, no campo, a tropa enorme que juntara para guerrear contra o povo romano, e fazia girar um exército que florescia com ornamentos de prata e de ouro; ele introduzia também carros com foices, elefantes com torres, e cavalaria muito resplandecente pelos freios, selas, coleiras e arreios. E aí o rei, cheio de glória pela contemplação de tão grande e tão ornamentado exército, olha para Aníbal e diz: “Pensas que isto tudo pode ser enfrentado ou que é suficiente para os romanos?” Então o cartaginês, zombando da fraqueza e incapacidade dos soldados do rei, preciosamente armados: “Suficiente, creio ser bem suficiente para os romanos isso tudo, ainda que eles sejam tão ávidos”.

Textos latinos: A.Gelli Noctes Atticae (Oxford Classical Texts).