ESTILÍSTICA, SUBJETIVIDADE E AQUISIÇÃO DA ESCRITA

Luciano Novaes Vidon (UNINCOR e UNAR)

 

ESTILÍSTICA: LUGAR DE SUBJETIVIDADES

Sem lugar na teoria gramatical lógico-filosófica do século XVIII, a subjetividade encontra um espaço em outro lugar: na estilística. Nossas gramáticas normativas, herdeiras das gramáticas filosóficas de Port Royal, concentram nessa área os aspectos subjetivos envolvidos na linguagem.

Nem sempre as frases se organizam com absoluta coesão gramatical. O empenho de maior expressividade leva-nos, com freqüência, a superabundâncias, a desvios, alacunas nas estruturas frásicas tidas por modelares. Em tais construções a coesão gramatical é substituída por uma coesão significativa, condicionada pelo contexto geral e pela situação. (Cunha e Cintra, 2001: 619)

Em sua posse no Supremo Tribunal Federal (STF), em 03/06/2004, o Ministro Nelson Jobim usou em seu discurso a seguinte construção frasal: O Brasil precisamos...

Do ponto de vista lógico-gramatical, a sentença (talvez o termo caiba melhor, nesse caso) estaria mal-formada, que a estrutura sujeito-predicado estaria formalmente inadequada, do ponto de vista da sintaxe de concordância sujeito/nome predicado/verbo. Haveria, assim, uma incompatibilidade formal (morfossintática) entre o nome Brasil e a desinência número pessoal “-mos”.

Porém, do ponto de vista semântico-pragmático, o enunciado estaria perfeitamente adaptado à situação. Cunha e Cintra (id.: 631) analisa casos como esse percebendo uma concordância no plano das idéias, a que ele denomina ideológica. Tanto em Cunha e Cintra (op. cit.), como em muitos outros estudiosos da língua não gramáticos esse tipo de dado é tratado como fazendo parte de estudos estilísticos. Ou seja, caberia à estilística concentrar todos esses casos, um tanto quanto, anômalos. Não é por acaso que, tradicionalmente, essa área trabalha, na sua base, com a noção de desvio (lingüístico-cognitivo).

Vê-se, portanto, que os lingüistas pré-saussureanos não deixaram completamente de lado a questão da subjetividade. Apenas trataram de colocá-la à margem do grande objeto teórico que era a língua (langue), enquanto estrutura - para eles - gramatical - e não discursiva, como em, por exemplo, Humboldt.

Esse procedimento (de exclusão) encontra na lingüística saussureana seu lugar definitivo.

O estudo da linguagem comporta, portanto, duas partes: uma, essencial, tem por objeto a língua, que é social em sua essência e independente do indivíduo; êsse estudo é ùnicamente psíquico; outra, secundária, tem por objeto a parte individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonação e é psico-física. (Saussure, 1971: 27)

O próprio Saussure (op. cit.)define a parole como esse lugar teórico. Mas ele mesmo não desenvolve esse lado da lingüística. A ele, o mais importante é assentar a lingüística da língua (langue), lingüística com L maiúsculo. Encontraremos, contudo, em Bally (1951), discípulo de Saussure, o desenvolvimento desse ‘lado obscuro’ da lingüística. Esse lugar tem nome e sobrenome: estilística.

Como uma espécie de ‘patinho feio’, a estilística nunca foi definitivamente assumida nem pela lingüística nem pela literatura. Ao longo do século XX, manteve-se à margem, sempre vista commaus olhos’, desprestigiada e carente de sustentação teórica.

À lingüística parecia restar, assim, três alternativas: assumir, bem ou mal, a subjetividade [casos de Bally (op. cit.), Câmara Jr. (1962), Chomsky (1968), num certo sentido], negá-la [casos de Bloomfield (1933) e os estruturalistas, e Pêcheux (1969) e os analistas franceses do discurso] ou deslocá-la conceitualmente.

 

SUBJETIVIDADE REVISITADA

Não querendo assumir a subjetividade como questão apenas cognitiva, muito menos querendo abandoná-la ‘a Deus dará’, penso ser possível reconceituá-la em outro quadro teórico distinto do lógico-filosófico ou mesmo do lingüístico-cognitivo. Para isso, é preciso considerar com Possenti (1988) que a língua é marcada pela variabilidade de recursos expressivos e que o falante-ouvinte-escritor-leitor é ‘forçado’ a escolher dentre esses recursos, isso sem querer dizer que ele tenha sempre consciência disso. A escolha, portanto, conforme Granger (1968), é constitutiva do estilo. E é , exatamente, que mora o perigo:

Se concebermos essa escolha como ‘livre-leve-e-solta’ e, além disso, intencional, cairemos na perspectiva romântica de estilo.

Ao concebermos, porém, essa escolha como pragmática, ou seja, conjuntural, e dialógica, intersubjetiva, estamos considerando outra perspectiva, que chamarei de discursiva.

Ao abordarmos a questão do ponto de vista pragmático-dialógico, encerramos o sujeito em conjunturas específicas, nas quais o outro tem papel fundamental. O sujeito, então, estaria assujeitado à conjuntura social e histórica e ao outro?

Para nós, não.

Em primeiro lugar, pensamos a subjetividade conforme Benveniste (1995 [1958]), para quem o ato de fala, por ser único, instaura a subjetividade na e da própria linguagem. Em segundo lugar, e principalmente, pensamos o sujeito conforme Bakhtin (1992 [1929]), ou seja, sujeito que não inaugura nenhuma fala mas que a articula, sempre, a outras falas, a outros sujeitos, e outras conjunturas, etc.

É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de “ego”. (...)A consciência de si mesmo é possível se experimentada por contraste. Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha alocução um tu. Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa por eu. (Benveniste, 1995: 286)

A língua existe não por si mesmo, mas somente em conjunção com a estrutura individual de uma enunciação concreta. É apenas através da enunciação que a língua toma contato com a comunicação, imbui-se do seu poder vital e torna-se uma realidade. As condições da comunicação verbal, suas formas e seus métodos de diferenciação são determinados pelas condições sociais e econômicas da época. As condições mutáveis da comunicação sócio-verbal precisamente são determinantes para as mudanças de formas que observamos no que concerne à transmissão do discurso de outrem. Além disso, aventuramo-nos mesmo a dizer que, nas formas pelas quais a língua registra as impressões do discurso de outrem e da personalidade do locutor, os tipos de comunicação sócio-ideológica em transformação no curso da história manifestam-se com um relevo especial. (Bakhtin, 1992: 154)

Esse sujeito que articula possui estilo porque escolhe, dentre os recursos da língua, aquele que considera o mais adequado à situação.

 

SUBJETIVIDADE E PRÁTICAS LINGÜÍSTICO-PEDAGÓGICAS

A perspectiva lingüístico-pedagógica acompanhou (consciente ou inconscientemente) o julgamento de valor dado pelas teorias lingüísticas ao problema da subjetividade. A didática de línguas sempre procurou sistematicidade, objetividade, universalidade, investindo, assim, nas grades curriculares, nos conteúdos programáticos, no ano letivo, objetivando, muitas vezes ao extremo, as práticas, estritamente, escolares. No caso específico de Língua Portuguesa, o programa sempre se voltou mais para o ensino de gramática (aquela gramática lógico-filosófica do séc. XVIII). Soares (1986) aponta em pesquisa que praticamente 80% do currículo de LP do Ensino Fundamental se refere à Gramática. Sobra realmente muito pouco, quase nada, para o sujeito que fala-ouve-lê-escreve a língua. Além disso, creio que, na escola, nem mesmo aquela estilística (de Bally (op. cit.), Câmara Jr (op. cit.), Spitzer (1974 [1948]), etc.), por exemplo, tenha espaço. A subjetividade, portanto, ‘perde feio para o objetividade (lingüística e didático-pedagógica).

 

SUBJETIVIDADE E AQUISIÇÃO DA ESCRITA

Os dados de aquisição da escrita são bons exemplos para se explorar o que aqui está se expondo. Desde o início, o indivíduo que está aprendendo a escrever molda a sua escrita à escrita do outro, como no exemplo a seguir[1], mas, ao mesmo tempo, articula essa escrita do outro à sua maneira:

[1] mamãe fazendo lição

papai fazendo trico

Lia fazendo jantar (20/06/89)

Esse texto foi produzido por LM na 1a série. Trata-se de uma ‘lição de casa em que a aluna deveria descrever algumas atividades realizadas pelos pais e também por ela quando estavam em ambiente doméstico. Nota-se que LM inverte a relação entre as atividades realizadas e seus executantes. Ou seja, a mãe executa a tarefa que caberia à criança executar, o pai executa a tarefa comumente atribuída às mães e a criança realiza a tarefa que, ao que tudo indica, nesse caso específico, seria comum ao pai.

A seguir exemplifico um evento ocorrido em sala de aula, na 2a série, quando LM deveria escrever um texto a partir da leitura do seguinte: “Alberto era um menino esquisito./ Sempre distraído./ Sempre despenteado./ Amarrar os sapatos era para ele uma tarefa difícil.” Após a leitura e a produção do texto, haveria uma troca de textos entre colegas da classe, e cada um teria que escrever um comentário sobre a produção do colega. Vejamos os textos de LM e do colega que trocou de texto com ela:

Texto de LM: O Albert gostava de fazer uma

poesia que era assim. Era uma vez

um gato xadreis que pulou o

telhado de um japoneis e comeu um

tenes de uma vez.

Esa poesia que o albert gostava

de fazer.

 

Comentário do colega de LM: Eu achei muito pouco e não organizou

direito não feis linha e escreveu duas vezes

a mesma coiza.

 

Texto do colega: Albert éra distraído por fora

mas o unico atencioso por dentro

mas com coisas bonitas

da vida.

 

Comentário de LM: Eu não gostei por que ele escreveu

3 linhas. Ele divia tersecrito

7 linhas como eu.

Eu tambemaxo que você istam

escreva muito nese deverdecasa.

Ao trocar de posição, passando de autor(a) para leitor(a)/avaliador(a), o sujeito assume o papel e a voz de um outro. Nessa voz, o número de linhas de um texto, escrever muito ou pouco, ser organizado, não ser repetitivo são lugares-comuns usados para se avaliar positiva ou negativamente um texto. Não resta dúvida que esses topoi vêm de um lugar específico, o didático-pedagógico.

Retornando à posição de aluno, LM pode interagir com o outro de várias formas:

[2] Eu achei um pouco camsativo

mas eu guostei porque, ele e misterioso

e eu gosto muito de misterio.

 

tem uma coisa que eu estranhei

foi o dezenho poresia de criansa soque

e criativo. Eleonora so tem uma coiza

que eu não esei, porque eles escrevem

livro com letra de impremsa e não

eletra de mão

(Dilermano Constantino Albuquerque Rapozo,
o morador misterioso, d
e Lilian Sipriano.)

 

[3] Este livro é bem gostozo de ler,

sóque ele pudia ser maior e o

final pudia ser mais caprichado,

em fim eu gostei do livro a

Cecilia Mereles escreve as estorias e

poezias muito bem, ela escreve de um

geito que todo mundo gosta, soque tambem

tem gente que prefere aventura mais

eu não eu gosto de poezia e contos de/ fada.

(Ou isto Ou aquilo, de Cecília Meireles)

Em [2], esse outro está claramente marcado pela figura/imagem da professora Eleonora e é nela, em princípio, que a aluna se espelha para fazer seu texto. em [3], o outro no espelho não é tão-somente o professor mas um sujeito indeterminado: se, gente, todo mundo... Trata-se não de um indivíduo somente ou de um sujeito individualizado, mas de um sujeito coletivo, um NÓS, com quem dialoga um EU. Nossa hipótese é que se trata de um NÓS-LEITORES dos quais o eu individual de [3] faz parte ou se coloca fazendo parte.

Diríamos que se trata de uma subjetividade discursiva, social e histórica. Não se trata, portanto, de uma subjetividade do indivíduo, individualizada, mas articulada por ele; ou seja, o nós-leitores é articulado por um eu lingüística e discursivamente no texto. Essa subjetividade, nesse sentido, existe dialogicamente.

 

CONCLUSÃO

A escrita, bem como o estilo, parecem se desenvolver nesse jogo de espelhos em que o eu reflete o outro.

Para mim, o sujeito-leitor que é instaurado ali no enunciado de LM não é o sujeito-leitor histórico que se materializa discursivamente no texto como em um passe de mágica. Esse sujeito-leitor histórico é atualizado, articulado, ganha forma e conteúdo a partir de um sujeito-leitor que é ao mesmo tempo único, singular, particular, imprevisível, muitas vezes, mas também universal, plural, previsível, num certo sentido.

Desse meu ponto de vista, há uma construção dos lugares discursivos que é feita pelos sujeitos no momento da enunciação. Essa construção, de forma alguma, é dada a priori. Um discurso pronto não pode prever completamente a sua recepção, o olhar do outro (recriminando, admirando, se surpreendendo, positiva ou negativamente...). Na verdade, não discurso pronto (acabado). O discurso é um acontecimento, como chega à conclusão o próprio Pêcheux em seus últimos trabalhos (cf. Gadet & Hak, 2001). Nesse sentido, por que o sujeito do discurso seria algo dado, construído, pronto (em algum lugar histórico, ideológico, institucionalizado)?


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992 [1929].

Bally, C. Traite de stylistique française. Paris: C. Klincksick, 1951.

Benveniste, E. Da subjetividade na linguagem. [1958] In: Problemas de lingüística geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995.

Bloomfield, L. Language. New York: Holt, Reinhart & Winston, 1933.

Câmara Jr., J. M. Ensaios machadianos. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1962.

Chomsky, N. & Halle, M. The sound pattern of English. New York: Harper & Row, 1968.

Granger, G. G. Filosofia do estilo. São Paulo: Cultrix, 1974 [1968].

Pêcheux, M. Análise automática do discurso.[1969] In: Gadet, F. & Hak, T. Por uma análise automática do discurso – uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001 [1997].

Possenti, S. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

Saussure, F. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1971 [1916].

Soares, M. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1986.

Spitzer, L. Lingüística y história literária. Madrid: Gredos, 1974 [1948].

Vidon, L. N. Individualidade e escolarização: estilos em conflito (análise de dados singulares). Dissertação de Mestrado. IEL/UNICAMP, 1999.

––––––. Dialogia, estilo e argumentação: o trabalho de um sujeito na linguagem. Tese de Doutorado. IEL/UNICAMP, 2003.


 

[1] Esse exemplo e os demais fazem parte do corpus de LM arquivado no Banco de Dados do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e por mim analisado em Vidon (1999 e 2003).