GABRIEL DE SOARES DE SOUSA
E O
SEU TRATADO MAIS QUE
DESCRITIVO DO BRASIL

Luiz Antônio Lindo (USP)

 

Gabriel Soares de Sousa foi o ilustrador que mais primou no uso dos recursos lingüísticos ameríndios para produzir um retrato vernáculo indelével de nossa terra. Os relatos sobre os costumes das diversas etnias ameríndias, a crônica dos assentamentos agrestes, a minuciosa exposição faunística e florística, o delineamento geomórfico oferecidos pelo Tratado lançam em dívida para com ele a nossa antropologia, a etnografia, a botânica aplicada, a geografia e sobremodo a lexicografia. Um livro tão rico de conteúdos poderia ter ficado por como uma fonte de conhecimentos datada e operante dentro do seu propósito ao mesmo tempo descritivo e didático. Mas ele é mais do que isso, por ser obra de um verdadeiro literato, de um artista que soube ornamentar e clarear com seu estilo límpido e musical, castiçamente românico, os momentos aquartelados das origens e os acenos à esperança tão próprios à alma brasileira. Quanto não tem aproveitado o Tratado à literatura brasileira moderna que ocasionalmente incursiona pelos mistérios do sertão e pelas singularidades do viver à cabocla? Questão difícil de responder, cujos balizamentos porém se encontrarão naquelas páginas. O certo é que no clarão que deixou em nossa memória literária ficará para sempre, lembrado por um monumento que lhe ergueu a nossa gratidão. a figura humana, tão pouco conhecida em efemérides, mostra-se através dos seus passos na senda de observador e criador. O seu testamento é de um fidalgo que mostra um sentir de devoto. Os seus relatos preservam os valores morais e econômicos tradicionais, ao mesmo tempo que simpatizam com os imprevistos do novo e do inusitado. Ter tido o dom de saber manter vivos os emblemas do passado enquanto sugeria conhecer os problemas do porvir fez dele um artista que também foi desbravador. Do seu lado conservador, ficou um ar de sobranceria revitalizada na rusticaria, um quê de caráter lustral edificado para o mando, um aceno da consciência de proprietário enraizado cuja atitude, gesto e conselho ornamentam a posse de um dos bens mais prezados que é o da palavra assertiva. Do seu lado inovador, ficou a consciência do dever de descobrir e relatar, de vencer pela adaptação e contribuir para a empreitada de desenrolamento incerto. Dotado do pulso do instituidor fundiário e do olhar do mateiro, ele mostra que sente sobre o terreno as suas virtudes econômicas, a sua potencialidade histórica, ao mesmo tempo que está à vontade para tocar o prosaico e o grave, recolhendo as primícias de todo ser inusitado da América, sob qualquer condição em que se ache, seja ele humano, bicho ou espécime silvestre. Para ele, falar da água de mandioca, da entagapena, das cutias ou dos bizarros tupinambás é simplesmente abeirar-se a um mundo fantástico e tratar de transmitir as suas impressões. E o faz tão bem que parece adivinhar o que desejaria sentir o leitor de dali a quinhentos ou mil anos. A sua serena acolhida aos padecimentos da selva e dos grotões, conquanto espicaçada pelo fascínio da descoberta infinita, põe de manifesto a faceta aborígene que soube incorporar à sua vivência, um rasgo da alma brasileira tal como se veria em diante nas inúmeras gerações de tipos desabridos de todas as classes, carrapichos da sorte que a tacapaços e tribunadas se têm aboletado como podem para cumprir a severa missão de traçar o destino da sua própria ordem social-histórica.

 

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Um exame por mais ligeiro do vocabulário do Tratado Descritivo do Brasil em 1587 revela que o reverso da colonização impingida pelos portugueses à América foi a colonização reflexa da sua própria cultura transplantada, através entre outros da assimilação pela língua portuguesa dos termos necessários à designação das coisas e dos fatos peculiares à vida americana. O volume imenso de vocábulos incorporados ao texto do Tratado e sobretudo a sua propriedade lexicológica, comprovável pela maneira como o tem recebido a sensibilidade de gerações de literatos e cientistas, que o têm admirado e considerado uma fonte de recursos estilísticos e construtivos, são traços reveladores de que a incorporação foi feita com habilidade, sob a égide da necessidade, às instâncias de uma cultura própria que principiava o seu desenvolvimento[1]. Por isso, o Tratado constitui um monumento em língua portuguesa de uma interpretação justa dada às especificidades americanas, figurando ao lado dos espécimes mais notáveis no seu gênero. A plasmação desse modo de representar (o seu aparecimento, seguido da sua consolidação historicamente atestada, isto é, a conservação do seu uso através do tempo, até chegar à atualidade[2]) suscita um problema à história do português no Brasil que vale a pena mencionar. Tal é se a assimilação por uma língua de um vasto vocabulário referente grosso modo a coisas e fatos antes ignorados, quando a língua se impotente num primeiro momento ante o meio que requer uma classificação e uma ordenação, constitui por si um fator de modificação substancial e em que grau desta língua; ou, ao contrário, se a incorporação das novas formas lexicais, por mais numerosas que estas sejam, não passa de mero acréscimo ao repertório patrimonial, se não tiver sido determinada por fatores ligados às relações social-históricas que definem a cultura ativa, única capaz de modificar o modo de viver da sociedade e por conseguinte a própria língua por esta utilizada.

Em relação à essa questão, procurando ser breve, nosso ponto de vista é que somente as transformações operadas pela cultura ativa[3] agindo nas estruturas social-históricas têm o poder de operar uma remodelação radical do sistema lingüístico. Conquanto uma massa de vocabulário incorporada a uma língua constitua um objeto válido de investigação filológica, somente quando se verifica uma reinstitucionalização do sistema lingüístico por motivo de uma reordenação das bases da vida social, é que as alterações do vocabulário tradicional passam a interessar à análise dirigida às transformações vitais do sistema lingüístico.

No caso brasileiro, sabe-se o quanto resistiu e até prosperou a língua geral enquanto foi uma moeda forte para os habitantes que levavam uma vida em meio a um grande número de falantes indígenas. Para abater a sua força foram precisas a intervenção do poder temporal e a imigração maciça de portugueses. Foram estas medidas suficientes para arrefecer e por fim eliminar o bilingüismo espontâneo no Brasil, assim como em outras partes da América latina. Vencidos pelo poder público e pela dinâmica atrevida da cultura adventícia, os falantes das línguas autóctones viram diminuir a sua atuação, que acabou limitada, dentro dos horizontes mais amplos da língua, aos vocábulos considerados indispensáveis. Os primeiros americanismos léxicos representam em parte uma apropriação feita às línguas que viriam a ser dominadas, num momento em que estas mostravam energia para se colocarem na posição de instituto rival. Com o tempo, tendo avançado a língua adventícia, o intercâmbio do vocabulário patrimonial com o autóctone e por extensão da língua dominante com as línguas autóctones não autorizou ir além do que estava suposto numa relação de estratificação lingüística. Entretanto, é possível assim mesmo perceber que a ação do substrato indígena sobre a língua dominante, de que dão prova livros como o Tratado, corrobora a sua influência marcante, manifestada por ocasião dos seus primeiros contatos com a língua adventícia. Pode-se a partir daí supor que as mesmas forças que agiram na incorporação dos americanismos contribuíram para o desenvolvimento de uma língua nacional gramaticalmente heterogênea em face da língua adquirida, por razões ligadas ao desenvolvimento específico social-histórico e por conseguinte cultural do povo brasileiro, de que aquelas formas léxicas são uma expressão, ao lado de outros fatores cuja explicação requer uma análise dos condicionantes históricos e lingüísticos específicos.

Com relação ao vocabulário do Tratado, cremos que se podem advertir na constituição dos campos semânticos referentes à incipiente vida social ali descrita numerosos exemplos dessas transformações de cunho essencial em curso, as quais apontam para uma reelaboração da língua portuguesa no Brasil. Nesse quadro, é preciso reavaliar o papel do numeroso vocabulário faunístico e florístico, com suas qualidades concretas, o qual serve para atestar, pelo seu volume e freqüência, mais do que a “riqueza” do repertório carreada à língua, o impacto que teve sobre a língua ibérica na América, por razões específicas ligadas à construtividade inerente aos semas “concretos”, os quais fornecem as bases de acomodação do comércio lingüístico e que, se bem sirvam sempre, servem especialmente quando está em curso algum processo de transformação real da língua, por motivos naturais ou sociais, ou seja, quando se trata de incorporar elementos de fundo ao sistema vigente para ampliar os recursos necessários ao intercâmbio de idéias, como foi o caso por ocasião da entrada maciça de americanismos léxicos nos idiomas ibéricos.

Embora a grande maioria dos vocábulos do Tratado sejam desse tipo, não faltam nele as indicações de palavras abstratas caracteristicamente americanas, as quais, tendo-se tornado parte ativa da língua, tendem a confirmar a tendência reconfiguradora do idioma como reflexo das novas relações que marcam a vida brasileira.

Quem se der conta do que contém o Tratado terá o roteiro do sistema natural brasileiro explicitado nas suas características essenciais e ornamentado pelo zelo de um seu admirador admirável. O imenso vocabulário autóctone nele incorporado é fruto dessa apercepção de um manancial de fenômenos vitais, de um habitat sui generis do zóön animado que surgia aos olhos do observador como um lugar adequado para o desenvolvimento de uma formação social humana de expressão universal, tal como podia conceber a experiência européia ali entranhada. Por isso, as palavras vão de a a z, avolumando-se a cada parágrafo, à medida que são relatadas as circunstâncias do estabelecimento colonial em curso. Abarcam todas as espécies cabíveis da flora e da fauna e também topônimos, etnônimos, antropônimos: gente, artefatos, técnicas, lugares, plantas, animais, em suma, as características bióticas e abióticas do meio. Nesse sentido, Gabriel Soares de Sousa foi tão curioso e fidedigno nas suas observações como devia ser um homem dotado da consciência humanística que circulava pelos centros de educação universalizante que eram as cortes do seu tempo.

Não temos o espaço aqui para apresentar o resultado de nosso estudo sobre o vocabulário ameríndio constante do Tratado e de obras correlatas em português e espanhol, mas cremos poder oferecer um quadro revelador do espírito que norteou o seu autor mediante a seleção de alguns exemplos. Assim, apenas para ilustrar, faremos um brevíssimo passeio pelo seu vocabulário, destacando produtos comestíveis básicos que dão o sabor característico de cada uma das culturas em contato.

O capítulo XXXVI do Memorial e Declaração das Grandezas da Bahia, no subtítuloEm que se diz as sementes de Espanha que se dão na Bahia, e o como se procede com elas”, tem a curiosidade de mostrar como o cultivo das hortaliças de Espanha[4] transplantadas em terras brasileiras causa maravilhamento em nosso autor. Com muita surpresa ele aponta o progresso experimentado por pepinos, abóboras, melancias, abóboras-de-quaresma, mostarda, nabos e rábanos, couves tronchudas e murcianas, couvinha, alfaces, coentros, endros, funcho, salsa, hortelã, semente de cebolinha, alhos, berinjelas, tanchagem, poejos, agriões, manjericão, alfavaca, beldros e beldroegas, chicórias e maturços, cenouras, celgas, espinafres, cardos. A horticultura lusitana e espanhola avança resoluta na roça brasileira. Os nomes nos são na maioria familiares, bem como os produtos, que continuamos a consumir. O interessante é que não pode faltar a comparação com os similares reinóis, o que é importante para situar a América no melhor dos contextos mundiais. A diferença na produção vem das propriedades hipertrofiadoras do solo e do clima, como o mostram as qualificações dadas ao legumes e verduras: “mais”, “maiores”, “melhores”, “façanhosas de grandes”, “muitas”, “mui gostosas”, “à maravilha”, “se dão tamanhos que”, “se dão tão boas como”, “dão alguns tão grossos como a perna de um homem”, “com um enche todo o jardim”, “fazem grandes árvores”, “nascem pelas ruas”, “se faz mais forte e alto que em Portugal”, “se dá pelos matos tão alta que cobre um homem”, “doces”, “se dão tão alto que”, “se dá com vara tamanha que”, “se dá muito formosa”, “praga”, “infinidade”.

A mandioca (e a carimã, raiz seca daquela, e o aipim, uma sua variedade) é certamente o produto da terra que mais chama a atenção, tanto que ocupa sete capítulos. Gabriel Soares de Sousa dá dela uma descrição precisa, procurando mostrá-la sob todos os aspectos, como alimento, como veneno (a água), como contraveneno (a carimã). Descreve-a pormenorizadamente (“é uma raiz da feição dos inhames e batatas[5]), mostrando as suas variedades, propriedades e utilidades. A riquíssima cultura da mandioca passa a fazer parte do dia-a-dia do colono, sobretudo nas fazendas e no sertão, como até hoje, e é isso que o Tratado considera mais importante. De fato, a raiz era uma das mais cultivadas não pelos índios brasileiros, mas também pelos guaranis, figurando como primordial ao lado do milho[6]. M. A. Morínigo dá a palavra como originária do guarani: mandiog (mandiï + og). Seu significado é “raiz de mandiï”, de mandiï (a planta) e og (ou uma das variantes ot, oc, og, occa, oca), “raiz”. Entretanto, como og e as variantes citadas não constam dos dicionários como sendo “raiz”, masarrancar oucasa”, Morínigo interpreta dessa maneira: mandiï caseiro (Id., ib., p. 47-48).


 

[1] O mesmo processo de reordenação do léxico se repete em toda a América ibérica, como se depreende de obras como as Décadas del Nuevo Mundo, de Pedro Mártir de Anglería; La Crónica del Peru, de Pedro de Cieza de León; Verdadera Relación de la Conquista del Perú y Provincia del Cuzco, Llamada la Nueva-Castilla, de F. de Jerez; Historia General de las Cosas de Nueva España, de Fr. B. de Sahagún; Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España, de Bernal Díaz del Castillo.

[2] O vocabulário quinhentista haveria de perdurar em larga medida, como se pode averiguar nos dicionários atuais.

[3] Por esse termo nos referimos à hipertrofia de certas tendências sociais, não importa se de ordem individual ou coletiva, que, no curso da história ocidental, são portadoras dos princípios de transformação social-histórica pelos quais as diferentes épocas ou fases da história de um povo se diferenciam umas das outras e se sucedem para formar a linha do seu decurso progressivo. O termo preserva a noção de “cultivo” com vistas ao aprimoramento. Como se sabe, ele entra no vocabulário ocidental no século XVI e se torna comum a partir do século XVIII. Sugere um progresso obtido por meio de instrução, exatamente o que os povos das nações modernas procuram se dar através das diferentes políticas de conservação e melhoria dos bens colocados à sua disposição.

[4] O privilégio à Espanha em detrimento de Portugal se explica em parte porque a primeira, naquela altura da vida peninsular, detinha a supremacia política. Da mesma maneira, mas não pelos mesmos motivos, é comum os mesmos autores portugueses usarem “hispânico” em lugar do que hoje comumente chamamos “ibérico”.

[5] “Inhame” é um provável africanismo, e “batata”, voz taína, esta a primeira língua em antigüidade e importância a fornecer empréstimos ao espanhol. Vocábulos taínos tradicionais, incorporados ao espanhol, são encontrados já no Tratado, como “canoa” e “tubarão”, além de “batata”.

[6] Luis Ramírez cita numa carta: “Ay en la tierra muchos mantenimientos de mayz, mandio que son unas raízes de que se hace mucha buena harina blanca, comenla con [como] pan hecha harina tostada...”; Alvar Núñez (Comentarios, cap. XXXI): “... los cuales [guaraníes] les dan en trueque de lo que traem mucho maíz y mandioca, e mandubís que es una fruta como avellanas...”; Léry (Voyage, Indice): “Maniot, racine dont on fait la farine.” Apud M. A. Morínigo, Las Voces Guaraníes del Diccionario Academico, p. 48-49 (Buenos Aires, 1935).