O galego
comparado às
línguas românicas da Ibéria
aspectos do seu vocalismo  oral

Valéria Gil Condé (USP)

 

A língua galega, uma língua românica minoritária, situada ao noroeste da Península Ibérica, faz fronteira lingüística a leste com o asturiano, originado do primitivo astur-leonês ou leonês, falado nas Astúrias, em León e Zamora; e ao sul com o português minhoto e trasmontano. Registra-se ainda o mirandês[1], originado também do astur-leonês, situado no extremo nordeste de Portugal, próximo ao rio Douro, em Miranda.

O galego, assim como as referidas línguas, remodelou o sistema vocálico herdado do latim. O latim clássico possuía vogais longas ou breves; no latim vulgar, as distinções de quantidade vocálica aos poucos passaram para a distinção de abertura. Dessa forma, a vogal ā  e ă fundiram-se em [a], as vogais longas preservaram o seu timbre, a saber,  ī > [i], ē > [e] e ō > [o]; as vogais breves abriram-se em  ĭ > [I ] > [e], ŭ > [U ] > [o], ŏ > [] , ĕ em [E].

Nas línguas românicas, a evolução operada no latim vulgar proporcionou às línguas da Ibéria, da Gália, do norte da Itália, da Récia e da Dalmácia o aparecimento de sete fonemas vocálicos. Esses fonemas apenas na Ibéria se conservaram e assim mesmo, em algumas línguas. No restante da România, houve a redução para seis fonemas, como é o caso do romeno, que manteve a distinção de abertura entre a vogal anterior média alta [e] e a média baixa [E], o que não ocorreu entre as vogais posteriores  que se neutralizaram  em favor média alta [o]; ou ainda, alguns falares da Itália que os reduziram para cinco fonemas. Outras vezes, para suprir essa redução, as línguas romances desenvolveram o fenômeno fonético da ditongação espontânea.  Das línguas ibéricas, o galego, ao lado do português, do catalão e do mirandês, manteve os sete fonemas vocálicos. O castelhano e o asturiano, também chamado bable, reduziram-nas a cinco não preservaram as vogais médias abertas, pois, realizaram a ditongação espontânea. Em galego, os sete fonemas aparecem em posição tônica.

[Descrição]

[Transcrição]

grafia

Alta posterior

[Èbula]

bula

Alta anterior

[Èbila]

vila

Média alta posterior

[Èos°o]

oso

Média alta posterior

[Èko]

co

Média alta posterior

[Èpola]

pola

Média alta posterior

[Èbos°]

vos

Média baixa posterior

[Ès°o]

óso

Média baixa posterior

[Èk]

Média baixa posterior

[Èpla]

póla

Média baixa posterior

[Èbs°]

vós

Média alta anterior

[Èpela]

pela

Média alta anterior

[Èvela]

vela

Média alta anterior

[Èpelo]

pelo

Média alta anterior

[Èpresa]

presa

Média baixa anterior

[ÈpEla]

pela

Média baixa anterior

[ÈvEla]

vela

Média baixa anterior

[ÈpElo]

pelo

Média baixa anterior

[ÈprEsa]

présa

Baixa Central

[Èkas°a]

casa

Em posição pretônica, o galego apresenta cinco fonemas, pois, neutraliza as médias baixas em favor das médias altas. As vogais médias baixas que se mantêm, são condicionadas pela derivação, pois, conservam a vogal da primitiva. Mato(1988:97) nos exemplos dessa ocorrência:

Rocha [rÈtSa], rochedo [rÈtSeD4o],  rochoso [rÈtSos°o].

Pobre[ÈpBRe], pobreza [ÈpBReTa] ,empobrecer[eøpBReÈTeR], empobrecemento [eøpBReTeÈmeøto].

Terra [ÈtEra], terrestre[tEÈrestRe], terreal[tEreÈal].

Em oposição fonológica registra-se cordeiro[kRÈDejRo] derivado de corda e cordeiro(anho) [koRÈDejRo].

Os diminutivos em -iño  também são condicionados pela  abertura da sua primitiva: home [Ème], homiño[Èmiøo].

Comparando-se o galego com as outras línguas da Ibéria que preservaram os sete fonemas vocálicos  temos:

No português do Brasil e Europeu, há os sete fonemas em posição tônica;  há  as vogais médias  altas, como em pôlo  (gavião), pega  (ave), pôde  (v. pret. perf.); para as médias baixas, pega (v. pres. ind.), polo (cada um dos eixos da terra), pode (v. pres. ind.). O português Europeu apresenta ainda a variante [?]  diante das palatais, veja-se em telha[Èt?´?].

Em mirandês, em posição tônica há os sete fonemas vocálicos para as vogais médias baixas há  més (mês) [ÈmEs], [ÈsE] (), agora [aÈÄRa] (agora), abó [aÈB ] (avó), e para as médias altas xordo [ÈxoRDo], saber [saÈBeR] (saber).

Em catalão, em posição tônica  há os sete fonemas vocálicos. Encontramos as vogais médias abertas em cafè [kaÈfE] (café) e repòs [reÈps] (repouso),  pobre [ÈpbRi] (pobre), e as fechadas em llebre [È´ebRi] (lebre) e sobre [ÈsobRi] (envelope). Apesar de nessa posição haver oposição entre médias abertas e fechadas nota-se, entretanto, no catalão moderno, uma tendência inovadora em reduzir para cinco vogais as médias altas em favor das médias baixas[2].

Em posição pretônica, os fonemas reduzem-se para cinco, no português do Brasil,  pois, perdem as vogais médias baixas [E] e []; registra-se, porém, como dialetalismo, presente na fala do nordeste brasileiro, a manutenção das vogais médias altas posteriores e anteriores. Nas palavras derivadas, há em posição subtônica a manutenção da abertura da vogal primitiva ( fenômeno registrado também no galego). O português europeu, entretanto, ampliou,  a partir do séc. XVI ( Mattos e Silva: 1995 ) o seu vocalismo pretônico. Verificamos em seu sistema, devido à sincope das consoantes mediais latinas e a conseqüente crase nos hiatos, os fonemas [] e [E],  como em coorar > c[]rar; preegar > pr[E]gar ( predizer ). Veja-se, a partir de exemplo colhido em Teyssier ( 2001), a oposição distintiva em pr[e]gar ( fixar ).

Em posição pretônica, o mirandês equipara-se ao português do Brasil e apresenta cinco fonemas. Não realiza, dessa forma, a  inovação registrada no português europeu, pois, manteve os cinco fonemas vocálicos.

No galego, em posição postônica não final,  há uma redução para cinco fonemas vocálicos, pois há a neutralização das médias baixas em favor das médias altas:

a) Postônica não final

 

posterior

grafia

alta

[Èkalkulo]

cálculo

média alta

[ÈplBoRa]

pólvora

 

 

central

grafia

baixa

[es°Ètomaåo]

estómago

 

 

anterior

grafia

alta

[ÈmEDiko]

médico

média alta

[ÈnumeRo]

número

Nessa posição, o português,  o mirandês e o catalão apresentam a mesma neutralização que o galego operou. O castelhano e o asturiano desconhecem essa redução por não possuírem as vogais médias baixas; apresentam,  portanto, os mesmos cinco  fonemas da posição tônica.

Em posição postônica final, o galego simplificou seus fonemas vocálicos para três, a saber, [a], [e] e [o], sendo que [a] é proveniente das vogais latinas ā e ă; [o] é o resultado da redução das vogais ŏ, ō e ŭ, como também de  ū > [u] que depois resultou em [o];  [e]  provém de ī > [i] > [e], de ĕ, de ē e de ĭ. Assim, temos:

a) Postônica final

 

posterior

grafia

média alta

[Èakto]

acto

 

 

 central

grafia

baixa

[Èbala]

bala

 

 

 anterior

grafia

média alta

[ÈdeBe]

debe

O castelhano, a exemplo do galego, operou a mesma simplificação. O português do Brasil apresenta na sua grafia [a], [e] e [o] mas há uma flutuação dialetal na pronúncia [e] ~ [i] e [o] ~ [u]; o mirandês reduz para [a], [i] e [u] e mantém as grafias [a] [e] [o]. O português europeu apresenta inovaçõe. Segundo Mattos e Silva ( 1995: 56 ), as mudanças ocorreram a partir do séc. XVI. Dessa forma, além de [u], apresenta as vogais, média alta central [?], como em pont[?], e vogal baixa central [?], como em cas[?]. O catalão preserva apenas a vogal baixa  [a] na variante ocidental; há a palatalização de [a] para [«] na variante oriental. As demais vogais sofrem apócope, em geral, assim, do latim fame > fam, do lat. oculu > ull, lat. caru > car. alguns contextos especiais em que há a realização de algumas dessas vogais, que não serão descritas aqui por fugir ao escopo desse trabalho. O asturiano oriental e o central apresentam os mesmos cinco fonemas vocálicos da posição tônica; o ocidental neutraliza para [a], [i] e [u].

Outra inovação românica foi a ditongação espontânea. Esse recurso consiste no desdobramento  de uma vogal breve ou longa latina, em posição tônica, em um ditongo; se essa ditongação se dá em função de uma vogal breve, resultar-se-á  em um ditongo crescente; se, por outro lado, originou-se de uma vogal longa  resultar-se-á em um ditongo decrescente. Conforme foi dito anteriormente, as línguas que reduziram para cinco os seus fonemas vocálicos, realizaram a ditongação espontânea. Na Ibéria, são o castelhano e o asturiano. O mirandês além de conservar os sete fonemas, desenvolveu também esse fenômeno; cujas soluções devem-se ao contato lingüístico com o português, assim como com a herança astur-leonesa. Dessa forma, no mirandês tem-se suôgra [ÈswoÄra] (sogra), niêta [Ènjeta] (neta) e ciêgo [ÈsjeÄo] (cego), abuôlo [aÈbwola], abuôla [aÈbwola][3]; no cast. e no astur. têm-se nieta [Ènjeta] (neta), suegra [Èsweåra] (sogra) e ciego [Èsjeåo]. Esse fenômeno é desconhecido dos sistemas do galego, do português e do catalão.  A ditongação espontânea é um  traço muito importante, pois, no noroeste peninsular, delimita uma isoglossa, estabelecendo fronteira lingüística entre o galego e o asturiano. Para Fernández  Rei ( 1991: 23 ), esse fenômeno tem origem no substrato: o rio Navia  que demarca a área de ditongação da não ditongação foi, na época romana, fronteira  entre os galaicos lucenses (oeste) e os asturianos (a leste).

 

Referências bibliográficas

ALVAREZ, R. REGUEIRA, X.L. MONTEAGUDO, H. Gramática galega. Vigo: galaxia, 1995.

CONVENÇÃO ORTOGRÁFICA DO MIRANDÊS.         www.bragancanet.pt/sendim/scripts/convecaomirandes.doc

CUNHA, C. & CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

BADIA I MARGARIT, A. M. Katalanisch: interne spraschgeschichte. I gramatik. In: Lexikon der Romanistischen linguistik (LRL). Tübigen: Max Niemeyer, 1992.

FERNÁNDEZ REI, Francisco. Dialectoloxía galega. Vigo : xerais, 1991.

MATO, X. R. Freixeiro. Gramática da lingua galega. Fonética e fonologia, Morfossintaxe, semântica. Vigo: A nosa terra, 1998.

MATTOS E SILVA,  Rosa V. O português arcaico: fonologia. São Paulo: contexto, 1995.

TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 


 

[1] Ao contrário do galego, o mirandês, falado em Portugal, descrito pela primeira vez no séc. XIX por Leite de Vasconcelos; e o asturiano, falado na Espanha, não conseguiram a condição de línguas oficiais nos seus respectivos países.

[2] Para informações mais detalhadas:  Badia i Margarit (1992:132)

[3] Nota-se, no entanto,  a flutuação da forma  genérica abó ~ abuôla, abuôlo, fato facilmente explicável pela influência do português.