REFLEXÕES ACERCA DO SENTIDO DA HISTÓRIA
NA HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA

Maurício Silva

I

Apesar de a Historiografia Lingüística travar, naturalmente, uma relação intrínseca e necessária com a História, numa perspectiva que pressupõe - em sintonia com o que consideramos metalinguagem, no âmbito lingüístico - a ocorrência de uma espécie de metahistória, faz-se urgente a observância de princípios teóricos que dêem conta, nos próprios limites da Historiografia Lingüística, da relação acima aludida. Uma das possibilidades, neste sentido, é buscar as contribuições que outros campos de pesquisa podem oferecer ao estudo historiográfico da lingüística.

Desse ponto de vista, tal estudo historiográfico da lingüística não se deve apoiar num discurso identificado com saberes predeterminados e redutores, mas numa mais abrangente e complexa rede discursiva que pressuponha, por assim dizer, uma indefectível prática interdisciplinar na consideração do ideário lingüístico de uma época (KOERNER, 1996).

No que diz respeito especificamente à intersecção entre a Historiografia Lingüística - entendida em seu éthos científico como um conjunto de princípios teóricos e procedimentos metodológicos suficientemente autônomos - e a Historiografia propriamente dita, ressaltamos a pertinência em aliá-la a duas vertentes historiográficas distintas, porém em muitos sentidos complementares: a História Intelectual, de extração anglo-saxã, mais especificamente norte-americana, e a História Cultural, de origem francesa.

II

A partir da crise do paradigma historiográfico de natureza progressista vivida pelos norte-americanos na primeira metade do século XX, impõe-se uma nova abordagem da História que passa a se interessar pelo estudo de sistemas formalizados de conhecimentos, crenças, comportamentos e modos de vida, vindo a inaugurar o que, posteriormente, se convencionaria chamar de História Intelectual.

Buscando compor um quadro explicativo da realidade levando em conta procedimentos que não prescindem de conceitos como os de mitos, símbolos e imagens, a História Intelectual compartilha com outras abordagens historiográficas igualmente inovadoras - como, por exemplo, a História Social - interesses legítimos pelo cotidiano das pessoas na “reconstrução” do passado a partir de fontes até então pouco exploradas (MOURA, 1995). Ao se preocupar essencialmente, mas não exclusivamente, com a contextualização de fatos e idéias, a História Intelectual privilegia a perspectiva individual do sujeito - talvez devêssemos dizer sujeitos - na ação histórica, sugerindo a existência de uma intencionalidade que lhe é inerente, dando um novo sentido à atividade historiográfica e buscando o significado das obras em um novo quadro de referências históricas, o qual pressupõe a existência de um complexo cultural que requer, na falta de uma designação melhor, tanto uma abordagem internalista quanto externalista.

De vocação multidisciplinar, a História Intelectual, portanto, possibilita práticas que consideram não apenas os agentes promotores de um ideário específico da época, mas também as fontes, os contextos, as atividades produtivas e receptoras desse complexo de idéias, encontrando sua razão de ser na própria intersecção das mais diversas disciplinas. Em resumo, trata-se de um fazer historiográfico que, de acordo com Maria de Fátima Mendes, pauta-se em dois procedimentos analíticos: a análise do “conjunto de funcionamento de uma sociedade intelectual, ou seja, suas práticas, seu habitus”; e a análise das “características de um momento histórico e conjuntural que impõe formas de percepção e de apreciação, ou seja, modalidades de pensar e de agir de uma comunidade intelectual” (MENDES, 2004: 25).

Não é difícil perceber a contribuição que semelhante procedimento pode oferecer ao campo da Historiogrfia Lingüística, seja pelo fato de a História Intelectual privilegiar, como sugerimos, fontes de pesquisa pouco exploradas, indo ao encontro do que Cristina Altman afirma num de seus trabalhos, quando diz que

Colocar o processo de produção do conhecimento lingüístico em perspectiva histórica significa buscar, na medida do possível, uma documentação paralela ao texto publicado que nos serve de fonte, que pode incluir desde a correspondência (inclusive eletrônica) entre dois autores, até anotações de leitura, notas de aula, de conferências, e assim por diante (ALTMAN, 2001: 28);

seja pelo fato de a dinâmica historiográfica que busca resolver a equação entre as visões internalista e externalista da História estabelecer um parentesco - a nosso ver - com o que Pierre Swiggers, num contorno mais prático e aplicado à Historiografia Lingüística, chamou de uma descrição content-oriented, isto é, que se volta para as particularidades internas da linguagem e “focusses on the specific way in which a particular linguistic insight was brought about and formulated”; e uma descrição context-oriented, ou seja, que envolve a linguagem em seu contexto social e cultural, abordagem na qual “we study the types of models which carry linguistic knowledge” (SWIGGERS, [s/d.]: 23).

III

Partindo agora para a outra vertente da historiografia por nós eleita como constructo no qual a Históriografia Lingüística deve se apoiar em sua inclinação científica e ao qual pode se filiar em sua atividade dialética de desconstrução/reconstrução do passado, a História Cultural, destacamos a necessidade de o historiógrafo ir além da consideração do passado factual da lingüística, revelando principalmente seu passado mental, no que isso pode conter de resgate do contexto social e cultural no qual ela se inscreve, um vez que, como afirma Swiggers, “the description of the history of linguistic thought is a reconstruction of mental contents, more or less explicitly stated, and taking their place in a social and cultural context” (SWIGGERS, [s/d.]: 21).

Traçando, em rápidas linhas, o caminho percorrido pela História Cultural, pode-se dizer que sua gênese encontra-se na própria concepção - vigente na historiografia do século XX - de Nova História, segundo a qual o pesquisador deve procurar substituir a idéia de uma história historicizante, centrada no documento escrito, por teorias que se apoiam em conceitos como os de probabilidade, relatividade e afins, promovendo ainda um alargamento das fontes da história, as quais passam do documento stricto sensu para uma série de fenômenos da realidade (da paisagem aos objetos pessoais); trata-se, enfim, de um processo de substituição da noção de história-relato pela de história-problema que sugere a necessária intersecção entre a perspectiva historiográfica e as diversas disciplinas que compõem o cabedal de conhecimento humano, como a literatura, a lingüística ou a iconografia. (DOSSE, 1992; ROJAS, 2000; SILVA, 2001). Dessa percepção inovadora da historiografia depreende-se uma noção mais refinada de mentalidade, dando abertura a um vasto campo de pesquisa e observação empírica e alargando ainda mais o universo de atuação do historiador moderno (VOVELLE, 1987; SALIBA, 1992; VAINFAS, 1997). Este percurso encerra-se com a incidência, no campo da historiografia, da História Cultural, a qual coloca em relevo o estudo sobre o mental, valorizando manifestações culturais das massas anônimas e, por conseguinte, afirmando-se verdadeiramente como uma história plural que, no limite, pode até se voltar para aspectos mais minuciosos inscritos na micro-história (PESAVENTO, 2004; VAIFAS, 2002).

Assim sendo, no rastro dos conceitos epistemológicos e atitudes metodológicas elaborados pela História Cultural, o estudo historiográfico da lingüística pode ser pensado a partir do equacionamento entre o conhecimento lingüístico e as representações culturais que a ela se filiam, buscando ressaltar a ampla rede de relações sociais e individuais que perfazem determinado ideário lingüístico, que vai das intenções pedagógicas de um autor ao status que ele ocupa na sociedade, das formas de produção de um dado texto aos canais de veiculação que o legitimam, das estratégias de institucionalização de uma obra aos modos de recepção que, inclusive, podem condicionar sua fatura.

Daí podermos afirmar que a gênese, o desenvolvimento e a consolidação de determinado conhecimento lingüístico depende de uma série de fatores para cujo entendimento se requer, em última instância, uma atitude historiográfica mais permeável à instabilidade/volubilidade da dinâmica cultural e menos refratária ao fatores reconhecidamente heteróclitos que compõem o contexto de uma época, na medida exata em que um texto é sempre algo além dele próprio, isto é, pressupõe um cruzamento de práticas socioculturais (CHARTIER, 2003; CHARTIER, [s/d.]) que perfazem um sistema lingüístico complexo.

Não parece ser outro o sentido do fazer historiográfico que se encontra pressuposto, por exemplo, na observação de Neusa Bastos - quando a autora trata dos procedimentos metodológicos que regem a atividade do historiógrafo da lingüística - de que se faz necessário

Deslocar a observação para os acontecimentos do cotidiano, dos seres humanos sem qualquer proeminência, das mentalidades, dos grandes movimentos sem sujeito - movimentos de massa, classes sociais, clima de opinião em que se insere o documento a ser analisado (BASTOS, 2004: 80).

Privilegiando, finalmente, ao lado da História Intelectual, a História Cultural e outras práticas epistemológicas que lhe são afins, buscamos promover um deslocamento do olhar histórico factual para o fenomenológico, do enfoque analítico restrito à instância textual para aquele que dialoga, multidirecionalmente, com as instâncias contextual, intertextual e paratextual, instaurando uma hermenêutica que se constrói a partir de uma prática historiográfica onde o sujeito interpretante passa a ser tão importante quanto o objeto interpretado.

Referências Bibliográficas

ALTMAN, Cristina. Historiografias Lingüísticas. Três Questões em Produção Lingüística Brasileira. Tomo I: Texto Crítico. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2001 (Tese de Livre Docência).

BASTOS, Neusa Barbosa. “O Fazer historiográfico em Língua Portuguesa”. In: BASTOS, Neusa Barbosa. Língua Portuguesa em Calidoscópio. São Paulo: Educ/Fapesp, 2004.

CHARTIER, Roger. A História Cultural entre Práticas e Representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand, [s/d.].

CHARTIER, Roger. Formas e Sentidos. Cultura Escrita: entre Distinção e Apropriação. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: ALB, 2003.

DOSSE, François. A História em Migalhas. Dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio; Campinas: Unicamp, 1992.

KOERNER, Konrad. “Questões que persistem em Historiografia Lingüística”. Revista da Anpoll, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996, n° 02: 45-70.

MENDES, Maria de Fátima do Céu. Estruturação da Frase do Português Brasileiro em Lobato e Ruth Rocha: Um Estudo Historiográfico. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 2004. (Dissertação de Mestrado).

MOURA, Gerson. História de uma História. São Paulo: Edusp, 1995.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

ROJAS, Carlos Antônio Aguirre. Os Annales e a Historiografia Francesa: Tradições Crítica de Marc Bloch a Michel Foucault. Maringá: Eduem, 2000.

SALIBA, Elias Thomé. “Mentalidades ou História Sociocultural; a Busca de um Eixo Teórico para o Conhecimento Histórico”. Margem, São Paulo: Faculdade de Ciências Sociais da PUC, 1992, n° 01: 29-36.

SILVA, Rogério Forastieri. História da Historiografia. Capítulos para uma História das Histórias da Historiografia. Bauru: Edusc, 2001.

SWIGGERS, Pierre. “Reflections on (Models for) Linguistic Historiography”. In: HÜLLEN, Werner (ed.). Understanding the Historiography of Linguistics Problems and Projects. Münster: Nodus, [s/d.], p. 21-34.

VAINFAS, Ronaldo. “História das Mentalidades e História Cultural”. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO, Ciro Flamarion (orgs.). Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Campinas: Campus, 1997, p. 127-162.

VAIFAS, Ronaldo. Os Protagonistas Anônimos da História: Micro-História. Rio de Janeiro: Campus, 2002.

VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.