SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO
DOS ESTUDOS FILOLÓGICOS NO RIO GRANDE DO SUL

Ir. Elvo Clemente

O Rio Grande do Sul colonizado duzentos anos depois do descobrimento do Brasil, teve suas primeiras escolas no final do século XVIII e especificamente nas primeiras décadas do século XIX, onde encontramos o Comendador Coruja, Emílio Meyer, Apolinário Porto Alegre e Aquiles Porto Alegre, todos ensinaram a Gramática na tradição lusitana. Os jesuítas, na segunda metade de 1800, iniciaram o tradicional Colégio Nossa Senhora da Conceição em São Leopoldo e depois o Colégio Anchieta em Porto Alegre. No início de 1900 surgiram as escolas dos Irmãos Maristas e dos Irmãos Lassalistas, destacando-se o Colégio Nossa Senhora do Rosário, que seria o berço dos primeiros cursos de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras a partir de 1940, e a partir de 1942 surgiria a coirmã na Universidade de Porto Alegre, mais tarde da Universidade do Rio Grande do Sul.

Currículos e professores

Ao ser criada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em Porto Alegre, em 1940, no currículo de Letras Clássicas aparecia a disciplina de Filologia Românica. Mais adiante a disciplina foi obrigatória aos estudantes de Letras Neolatinas. Por analogia os estudantes de Anglo-germânicas tiveram a Filologia Germânica. O ministrante dos três primeiros anos, isto é, de 1943 a 1945 foi o Prof. Oscar Mombach (Ir. Gelásio), bacharel pela Faculdade de Direito de Pelotas. Os conhecimentos do Latim, do Português e do Francês e do Espanhol ajudaram o professor a navegar com os alunos no mar revolto da filologia. Prof. Elpídio Ferreira Paes, o mestre da Língua e Literatura Latinas, era entusiasta pela Filologia, adentrando algumas vezes em suas aulas de língua nos encantos e belezas filológicas. Sabia despertar a curiosidade e dar ânimo aos alunos a procurarem livros e luzes sobre a matéria. Outro mestre importante, para a turma de Letras Clássicas de 1946, foi Guilhermino César. Com ele fizemos a descoberta e a investigação da obra de Antônio Pereira Coruja, nos meados do século XIX com a Gramática da Língua Portuguesa e Curiosidades da língua falada e escrita na Província de São Pedro, há 150 anos.

Heinrich Adam Wilhelm Bunse a partir de 1950 até 1966 regeu a cátedra de Filologia Românica. Seguia em seus programas os mestres alemães ilustres na investigação e no estudo da Filologia Românica. Haja vista: Carolina Michaelis Vasconcellos, Meyer-Lübke, Joseph Piel, Harri Meier e o francês Bourciez, com os brasileiros: Álvaro Ferdinando de Sousa da Silveira, Serafim da Silva Neto e Antenor Nascentes.

No dia 23 de agosto de 1960, o Prof. Eugênio Coseriu, romeno, professor da Facultad de Letras da Universidade de la República Oriental, iniciou na Universidade, a convite do Ir. Elvo Clemente, o curso de extensão de uma semana, sobre Os caminhos da Lingüística.

Com a alteração do currículo do Curso de Letras, em agosto de 1963, o Prof. Augostinus Staub, após ter feito Mestrado na Georgetown University, iniciou o ensino metódico da Lingüística, com a duração de um semestre letivo.

Em 1964, o Prof. Mario Klassmann auxiliou o Prof. Bunse na Filologia Românica. Nos anos seguintes tornou-se professor titular. Anos mais adiante assumiu a Filologia no Curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde desenvolveu importantes projetos, em especial do Atlas Lingüístico do Rio Grande do Sul.

Em 1964, Ricco Harbich lecionava Filologia germânica para os alunos de Letras e Anglo-germânicas.

Celso Pedro Luft

Em 1962, o Prof. Celso Pedro Luft, que em 1955 e 1956 fizera o curso de Especialização em Filologia com o Prof. Dr. Manuel Paiva Boléo, na Universidade de Coimbra, retirou-se da Congregação dos Irmãos Maristas, passando a lecionar na Faculdade de Filosofia e Letras Porto-alegrense e no Curso de Letras da UFRGS.

Desenvolveu muito o seu trabalho docente e editorial. Em 1976 doutourou-se defendendo uma tese notável no campo da Filologia Portuguesa. Era, outro sim, infatigável leitor e investigador das modalidades sintáticas, morfológicas e ortográficas do vernáculo.

A sua principal produção editorial passo a descrever a seguir:

Em 1954, aparecia pela Livraria do Globo a 1ª edição do Guia Ortográfico, que alcançou numerosas edições, ainda hoje é um livro manuseado por todos os que querem escrever corretamente as palavras. Mudou o nome para o Novo Guia Ortográfico a partir da edição de 1976.

Em 1958, o Instituto Estadual do Livro editava o livro de poemas - ARCOS da SOLIDÃO. Naqueles maravilhosos versos aparece a grande alma do poeta que abre as portas dos segredos do coração e traça o ritmo das inquietudes humanas e seus anseios de amor.

Navegou forte e profundamente nas águas, por vezes agitadas da gramática de nossa língua.

Sucessivamente editou os títulos: Gramática Resumida (1960) e Moderna Gramática Brasileira (1976). O primeiro surgiu da necessidade de explicar para os professores e para o público em geral a chamada “Nova Nomenclatura Gramatical Brasileira”, que teve à época, a finalidade de simplificar e unificar os nomes relativos aos nossos fatos gramaticais. Passados dezesseis anos, não mais poderia vigorar na íntegra a nomenclatura referida, dadas as contribuições da Lingüística Moderna, que, de acordo com o próprio autor, “ia revirando, com seus avanços a Gramática de alto a baixo”. Surgiu então o segundo título - Moderna Gramática Brasileira - obra que acolheu os avanços da Lingüista e da Teoria da Comunicação.

Outro campo que Celso Pedro lavrou e semeou inteligência e saber foi a lexicografia.

Em seus estudos beneditinos dedicou-se à lexicografia, importante ramo da Filologia. Solicitado pela Livraria do Globo, autorizado pelos herdeiros do dicionarista Francisco Fernandes, empreendeu a reedição melhorada e ampliada do Dicionário Brasileiro Globo, com 981 p. Do mesmo autor retomou o Dicionário de sinônimos e antônimos com 850 p. em sucessivas edições.

Dicionário Gramatical da Língua Portuguesa representa trabalho de Celso Pedro, com 188 p., seqüência de seus estudos e investigações na gramática do idioma. Outra obra de importante valor acadêmico é, sem dúvida, o Dicionário de Literatura Portuguesa e Brasileira, com 816 p.

São ainda de sua autoria o Dicionário Prático de Regência Verbal, o Dicionário Prático de Regência Nominal e o Minidicionário Luft, todos editados pela Editora Ática. Os dois primeiros constituem o estudo mais completo e atualizado de regência, apoiados em abonações de fontes diversas, pondo em evidência os usos reais do idioma.

Ao longo de uma década escreveu no Correio do Povo, artigos semanais sob o título O MUNDO DAS PALAVRAS. Em 1982 já eram quatro mil os artigos lidos e comentados pelos leitores. Em todo o Sul do Brasil, a imagem de Celso Pedro Luft ia crescendo e se firmando como mestre da gramática e da filologia.

De repente apareceu, em 1985, um livro que chocou os devotos do Prof. Luft: Língua e Liberdade: por uma nova concepção da língua materna, 112 páginas. Pequeno livro, composto de artigos polêmicos publicados nos jornais de Porto Alegre, procurava indicar outros caminhos para o ensino da língua.

O Prof. Gilberto Scarton em um parágrafo de resenha crítica caracterizou a polêmica obra: “O velho pesquisador apaixonado pelos problemas da língua, teórico de espírito lúcido e de larga formação filológica e lingüística e professor de longa experiência leva o leitor a discernir com lucidez gramática e comunicação: gramática natural e gramática artificial; gramática tradicional e lingüística; o relativo e o absoluto em gramática; o saber dos falantes e o saber dos gramáticos; o ensino útil do ensino inútil; o essencial do irrelevante”.

Aparentemente o autor de gramáticas se insurgia contra a gramática ensinada nas salas de aula, legitimava a maneira de receber e discutir o livro - Língua e Liberdade.

O episódio de insurreição contra a gramática, chave do ensino da língua serviu para ilustrar a visão clara e séria que Celso Pedro Luft teve em toda a vida de mestre de Filologia Portuguesa, bebida em largos haustos na experiência e nas obras do Mestre Paiva Boléo. Celso Pedro Luft que teria completado 80 anos no dia 28 de maio de 2001, é sempre uma referência para os estudiosos da Gramática, da Lexicografia e da Filologia da Língua Portuguesa. Concluiu o peregrinar terrestre no dia 4 de dezembro de 1995, após dois anos de enfermidade.

Homem bom, amoroso e sensível aos apelos do Bem, do Belo e da Verdade, sua imagem modelar perpassa gerações indicando o caminho do ensino e da investigação da Filologia da Língua Lusitana.

Heinrich Adam Wilhelm Bunse

Prof. Heinrich Adam Wilhelm Bunse, natural da cidade de Paderborn, Vestfália, Alemanha, nasceu em 20 de agosto de 1911. Realizou o ginásio clássico na terra natal. Em 1932, aos 21 anos, resolveu aventurar-se ao Brasil, onde havia promessa de trabalho com os padres jesuítas. Após surpreendente e longa viagem chegou a Porto Alegre. Foi enviado a Escola Normal alemã, em Hamburgo Velho, onde em três meses aprendeu o português. Realizou voluntariamente um estágio em uma fazenda em Camaquã, ali aprendeu a ser gaúcho e foi tal por toda a vida. Foi, anos mais tarde, professor na Escola São José, denominada posteriormente Roque Gonzáles, ao lado da igreja da comunidade católica alemã. Praticava desde a juventude o esporte da aviação, freqüentou o aeroclube até aos 75 anos. Em 1940, matriculou-se na Faculdade Católica de Filosofia, Ciências e Letras, no Curso de Letras Clássicas. Bacharelou-se em 1942. Logo a seguir foi contratado para lecionar Filologia Românica até 1966. Em 1943 começou a lecionar na recém-criada Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul, Literatura Latina e Língua Grega. Em 1947, assumiu a Filologia Românica. Em 1952, realizou doutoramento na PUCRS com a tese - CARMEN LXVI, de Catulo. O segundo título do doutor no dizer do Prof. Mário Silfredo Klassmann, foi obtido com a defesa de tese de livre-docência na UFRGS, em 1958, sob a denominação - Uma monografia etnolingüística no Município de São José do Norte. Sua atividade docente foi intensa e multiforme: Língua e Literatura Latina, Língua e Literatura Grega, Didática especial de Línguas Clássicas, Filologia Clássica, Românica e Germânica, Lingüística (a partir de 1963). Tudo isso na Universidade Federal. Foi professor visitante na Universidade de Bonn (Alemanha) e no Instituto de Formação de Intérpretes na Universidade de Viena (Áustria).

A investigação científica foi a grande atividade modelar do Prof. Bunse em Dialectologia, perseguindo os sendeiros de Antônio Pereira Coruja que em 1851, publicara - Coleção de Vocábulos e Frases usados na Província de São Pedro. A Dialectologia científica foi seu campo aberto até a realização do Atlas Lingüístico do Rio Grande do Sul. Sua permanência na fazenda em Camaquã dera-lhe o gosto pela língua do povo. Mário S. Klassmann afirmou: “a descrição da língua e da cultura do povo, através da Etnografia e do Folclore Rio-Grandense representa o grande ideal e a realização do Prof. Bunse”.

Alguns títulos dos trabalhos publicados:

- São José do Norte: aspectos etnográficos - lingüísticos do antigo município - 2ª edição, 1981.

- O Colono Italiano do Rio Grande do Sul, estudo etnográfico - lingüístico em 1975 - Premiado.

- O Vinhateiro, vocabulário da cultura da uva e na fabricação do vinho.

- A mineração do carvão no Rio Grande do Sul, linguajar dos mineiros de São Jerônimo, 1984.

- Estudos Dialectológicos no Rio Grande do Sul: Problemas e métodos.

Numerosos artigos em revistas e jornais traduziram e deram a conhecer o fabuloso trabalho do Prof. Bunse.

Não teve a felicidade de ver o Atlas Lingüístico concluído, pois faleceu em 26 de janeiro de 1990, após rápida enfermidade. O Atlas Lingüístico do Sul do Brasil ficou com os colegas da UFRGS, em especial com o Prof. Dr. Mário Silfredo Klassmann e o Prof. Dr. Valter Koech.

Doutorado em Lingüística e Letras e outros fatos

Á medida em que, a partir de 1963, o estudo da Lingüística ia tomando espaço no currículo dos cursos de Letras, os estudos filológicos iam diminuindo, restringindo-se ao essencial, reservados a um semestre de Mestrado em Lingüística Aplicada na PUCRS, iniciativa do Prof. Ir. Elvo Clemente.

Esse evento representou um marco para os estudos lingüísticos, impulsionando a implementação de novas pesquisas de natureza diversa: sobre as diferentes modalidades de língua falada - quer no plano diastrático quer no diatópico - ; sobre o contato lingüístico verificado na fronteira do Brasil com os países rio-platenses; sobre a variação lingüística observada especialmente nas comunidades étnicas que povoam o Sul do país; sobre o processo de aquisição da linguagem pelas crianças monolíngües e bilíngües; sobre a linguagem escrita pelos escolares e, mais amplamente, sobre aspectos teóricos pertinentes à estrutura e ao funcionamento das línguas em geral e da língua portuguesa em particular.

Nesse diversificado leque de investigação lingüística, onde se observa o deslocamento da ênfase diacrônica para sincrônica, vários pesquisadores de destacaram, a começar pelo Professor José Pedro Rona, de origem tcheca, que, atuando na Universidade da Republica Oriental do Uruguai, realizou seu doutoramento na PUCRS, em 1965, defendendo a tese Voseo: aspectos de la dialectología rioplatense.

Além dos trabalhos individuais como o referido, é imperioso registrar os projetos de pesquisa de caráter regional, desenvolvidos graças à formação de grupos de professores-pesquisadores pertencentes aos quadros de algumas universidades da região Sul do Brasil, destacando-se, entre elas, a UFRGS, a UFSC, a UFPR e a PUCRS. A um desses grupos deve-se a existência do projeto VARSUL (Variação Lingüística da Região Sul), idealizado pela Profª. Leda Bisol e consolidado também por outros pesquisadores, dentre os quais, Paulino Vandresen, Odete P. Menon, Iara B. Costa, Clarice Knies, Edair Gorski e Maria Tasca.

Aos empreendimentos regionais incorpora-se ainda a participação de filólogos e lingüistas do Sul na implantação e desenvolvimento do projeto NURC (Norma Urbana Culta), cujos dados continuam sendo objeto de análise em todo o território nacional. Importa, nessas tarefas, lembrar o nome do Prof. Albino de Bem Veiga, por longos anos dedicou-se à Filologia e à investigação lingüística.

Finalizando, poder-se-ia dizer que, não obstante o caráter eminentemente sincrônico dos estudos realizados nas últimas décadas do século XX, é possível constatar que antes da virada do século, começaram a surgir trabalhos de caráter histórico, retomando algumas postulações filológicas, contudo sob o enfoque da lingüística diacrônica.

A OBRA DE CELSO PEDRO LUFT
- Tensão entre Gramática e Lingüística

Tese defendida pela Profª. Clarice Teresinha Arenhart Menagat defendida a 22 de outubro de 2004, reavivou a memória dos estudos filológicos e lingüísticos.

Celso Pedro Luft foi apresentado como renovador da GRAMÁTICA, síntese de Filologia e Lingüística. Revisitou-se a escola onde se estudava a Gramática Histórica, onde se exercitava a língua na rigidez das normas tradicionais. Foram mencionados os mestres que estruturaram as bases dos programas curriculares dos Cursos de Letras em 1934 em São Paulo e Rio de Janeiro e a partir de 1940 em Porto Alegre. Luft formou-se no primeiro Curso de Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1944, depois descobriu o manancial da Filologia na Universidade de Coimbra com o Mestre Manoel de Paiva Boléo.

Soube partir da tradicional Gramática da Língua Portuguesa da Coleção FTD para os horizontes acadêmicos. Em suas longas horas de estudo e meditação esboçou e apresentou a GRAMÁTICA RESUMIDA que se consolidou na MODERNA GRAMÁTICA BRASILEIRA, obra que continua viva e atuante nas mãos de mestres e discípulos no estudo da Língua Portuguesa.

A referida tese por nós orientada teve aprovação plena da comissão examinadora: Profª. Dr. Leda Bisol, Prof. Dr. Cláudio Moreno, Profª. Maria da Graça Krieger, Prof. Dr. Jorge Campos e do Prof. Ir. Elvo Clemente. A tese concluiu com as palavras:

Se alguém merece o título de mestre é Celso Pedro Luft, porque no dizer de Riobaldo, de GRANDE SERTÃO: VEREDAS - “Mestre não é aquele que ensina, mas aquele que aprende”. Aprendeu com as teorias clássicas e contemporâneas, desenvolveu conhecimento e estilo do aprendizado que vivia a cada época e imprimiu tais traços em sua obra singular da Filologia da gramática à Lingüística e ao ensino. (p. 205 da tese).

Conclusão

Por este relato despretensioso e honesto pode-se ver como o ensino da Gramática exigiu o estudo da Filologia e como desta passou-se aos estudos lingüísticos mantendo-os sempre unidos, por vezes por fracos laços, sendo, todavia, retomados com mais vigor, em outras circunstâncias.