FONTES TEXTUAIS PARA ESTUDO
UMA
PROPOSTA DE TRABALHO

Rosa Borges dos Santos (UNEB e UFBA)

 

INTRODUÇÃO

Neste ano de 2005, apresentamos à Universidade do Estado da Bahia o Projeto EDIÇÃO E ESTUDO DE TEXTOS LITERÁRIOS E NÃO LITERÁRIOS BAIANOS[1]. Com este projeto de pesquisa, pretendemos selecionar textos literários e não literários para a constituição de um corpus informatizado – Banco de Textosque servirá de objeto para a elaboração de edições para posteriores estudos, como o filológico, o lingüístico, o literário e o histórico.

Valendo-nos dos pressupostos teóricos da Crítica Textual, buscaremos, com a realização desta pesquisa, reconstituir o texto fidedigno, texto-fonte, para embasar as investigações lingüísticas, literárias ou de outra natureza qualquer, apontando, por meio de uma postura crítica, aspectos que possam ser analisados por nós e/ou por outros especialistas.

A metodologia empregada é aquela que se constitui das etapas do método filológico: recensio, collatio, emendatio, constitutio textus e, por fim, a apresentação do texto crítico, acompanhado do aparato, quando assim se justificar. Conforme os textos encontrados, definiremos os tipos de edição: fac-similar, paleográfica, semidiplomática, crítica, crítico-genética, bem como os estudos a serem desenvolvidos.

Os conteúdos desses textos serão discutidos à luz das disciplinas com as quais se relaciona ou identifica a Filologia, fato que provoca a especialização e conseqüente diferenciação dos labores filológicos.


 

A FILOLOGIA
E SUA RELAÇÃO COM OUTROS CAMPOS DO SABER

Como ponto de partida, consideraremos o que afirma Rafael Cano Aguilar (2000: 16-23), em Introducción al análisis filológico, ao explorar as relações da Filologia com outros campos do saber: Filologia e “História Cultural”, Filologia e Lingüística e Filologia e Literatura, oferecendo, a partir dessa interação, novas perspectivas de estudo.

De acordo com a primeira perspectiva, a Filologia, ao situar o uso da língua em seu contexto, nos permite reconstruir a sociedade e a civilização através de documentos e textos por elas deixados, bem como o mundo que a análise lingüística queira mostrar (estudo do léxico). Desse modo, a Filologia estudaria a língua para revelar uma cultura.

Esta escolha também permite uma aproximação entre Filologia e Lingüística, evidenciando uma relação de complementaridade utilitária, ou seja, a Filologia, entendida como atividade que busca nos textos editados, a partir de dados confiáveis, construir hipóteses sobre a história das línguas (estudo histórico), serve à Lingüística que, por sua vez, proporciona à Filologia as referências que ajudam a diferenciar os testemunhos de um texto, por meio da análise das formas lingüísticas variantes.

Por fim, vemos a relação entre Filologia e Literatura e, neste caso, a Filologia não passa de uma técnica de análise, sem se confundir, pois, com qualquer estudo literário. Assim sendo, podemos afirmar com segurança que os estudos filológicos em literatura distinguem-se, por exemplo, da história da literatura, da literatura comparada. No entanto, ao ocupar-se de textos literários, a Filologia tem como tarefa reconstruir os mesmos textos que investiga e, nesse sentido, identifica-se com a edição (crítica) de textos.

Esclarecemos, portanto, que são essas as três perspectivas filológicas que deverão nortear o nosso trabalho de pesquisa.


 

A Filologia Textual e seu objeto

A Filologia Textual tem por objeto o texto, manuscrito, datiloscrito ou impresso, tomado para a investigação histórica, filológica, literária e quantas sejam as atividades que envolvam o estudo de um texto. Conforme os propósitos do pesquisador, o corpus textual se diferencia: para o historiador, importa o trabalho realizado com os textos históricos, jurídicos, notariais, religiosos, diplomáticos, sobretudo; para o cientista da literatura, os textos literários são tomados para o desenvolvimento de estudos relacionados ao processo de criação, à estética, ao estilo, à própria literatura, à cultura etc; para o lingüista, interessam tanto os textos literários quanto os não literários como fontes para o conhecimento da língua estudada. Desse modo, a Filologia Textual busca estabelecer o texto-fonte (testemunho fidedigno, confiável) para servir à análise lingüística, literária e histórica. O texto deixa de ser um fim em si mesmo para se transformar em um instrumento que permite aos diferentes estudiosos utilizarem as conclusões e metodologias empregadas pelo filólogo textual.

A inventariação, publicação e estudo de textos são, portanto, um ato de preservação do patrimônio lingüístico e escrito de uma determinada comunidade e constitui uma obrigação de arquivistas, historiadores, e, particularmente, de filólogos e lingüistas, face às gerações vindouras, no sentido de perpetuar a memória cultural, histórica, literária e lingüística da Bahia e do Brasil.

As edições de textos podem ser feitas com objetivos diversos por estudiosos com formação e interesses científicos e culturais distintos. Daí nos propormos, de acordo com o material que pretendemos reunir, preparar as edições de fontes textuais para, no campo dos estudos lingüísticos, desenvolver trabalhos sobre a gramática da língua portuguesa, levando-se em conta os fatos lexicais, semânticos, morfossintáticos e fonético-fonológicos do português escrito na Bahia, e, para esse fim, elas devem ser menos interpretativas e mais conservadoras. para a Literatura, as edições devem servir de fundamento para o estudo das obras literárias de autores baianos. Para a História, tem-se a possibilidade de documentar os fatos e a cultura de um povo. Todo o material preparado ficará disponível para o exame de outros especialistas.

Ressaltamos ainda a importância do tratamento das fontes textuais como documentação da língua e da produção literária de uma comunidade numa determinada época, para os trabalhos de edição e estudo em vários níveis de análise dos textos editados (aspectos lingüísticos, discursivos, literários etc).

 

A importância deste trabalho

Nos acervos brasileiros encontram-se documentos de todo o tipo, literários e não literários, que permitem conhecer melhor o cotidiano da sociedade da época em que foram lavrados ou elaborados. Muitos desses textos estão no ostracismo e em estado de conservação ruim; outros estão dispersos. Todavia, constituem fontes de grande valor para estudos históricos, lingüísticos e literários. Assim, verifica-se a relevância desse trabalho de pesquisa que visa, sobretudo, a recuperar o texto como documento de uma ideologia, enquanto produto social e cultural, e, do ponto de vista filológico, a abordar os vários aspectos da língua que se quer examinar. Para os estudiosos da literatura, em especial, a preparação de edições críticas faz-se necessária para o conhecimento do autor e de sua obra e sua inserção no panorama literário baiano e brasileiro, revendo o cânone literário brasileiro. Enquanto professores universitários e, mais ainda, enquanto profissionais da Filologia, devemos nos preocupar com os textos que oferecemos aos nossos alunos como fontes de investigações.

 

Enquadramento teórico

Os pressupostos teóricos norteadores desta pesquisa são aqueles da Crítica Textual que tem por objetivo reproduzir o texto na forma original ou equivalente. Esse texto que se pretende reconstituir e conservar define, conforme as características que apresenta, o comportamento do editor que desenvolve teorias e metodologias apropriadas ao objeto em questão. Do exercício da Crítica Textual, teremos como resultado edições diferentes, ou seja, poderemos apresentar, conforme os materiais disponíveis para estudo:

a)       uma edição fac-similada

b)       uma edição diplomática ou paleográfica

c)       uma edição semidiplomática ou diplomático-interpretativa

d)       uma edição interpretativa

e)       uma edição crítica

f)        uma edição crítico-genética

Devemos salientar que toda a análise se desenvolve a partir da singularidade do material, ou seja, é o objeto que dita o comportamento a ser adotado pelo pesquisador: se moderno, de testemunho único ou múltiplo, inédito ou édito. No entanto, é imprescindível esclarecer que sempre poderão surgir novos materiais, novos métodos que conduzirão o editor a outros caminhos.

A preocupação com o texto fidedigno, portanto, passou a interessar aos diversos estudiosos e ultrapassou o âmbito da Crítica Textual aplicada aos textos clássicos e medievais, estendendo-se aos modernos. Dentre os vários tipos de edição que podemos oferecer, a modernizada, embora permita uma leitura fluente de um texto antigo segundo padrões ortográficos e lingüísticos modernos, não é de grande valor. Para o estudo da língua, e até mesmo para a crítica literária, parece-nos mais eficiente a conservadora, que busca manter a grafia original, principalmente quando se estuda a relação grafemático-fonética que se caracteriza a partir da scripta dos textos. No entanto, a opção pela forma de edição dos textos, se fac-similar, diplomática, semidiplomática, crítica, crítico-genética ou modernizada, far-se-á de acordo com os propósitos do investigador e a qualidade dos textos reunidos.

Como trabalharemos, a princípio, com dois corpora (um Corpus de textos literários e outro Corpus de textos não literários), deveremos diferenciar os critérios para edição de um e outro. Para os textos não literários, de um modo geral, salvo outros interesses, os critérios para transcrição e edição desses textos manuscritos serão aqueles estabelecidos pela Comissão de Sistematização e Redação, composta por Antônio Houaiss, Heloisa Liberalli Bellotto, Maria Helena O. Flexor, entre outros, (BERWANGER; LEAL, 1991) e também aqueles empregados pelo grupo que estuda a história do português brasileiro, coordenado pelo professor Ataliba de Castilho (CASTILHO, 1988). Para os textos literários, os critérios serão aqueles definidos para a edição de textos modernos, observadas as particularidades de cada texto (CARVALHO, 2002).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este Projeto poderá abarcar vários subprojetos. Desse modo, enquanto buscamos outros textos que deverão compor os corpora, demos início à nossa pesquisa com os Textos Teatrais que passaram pelo crivo dos censores, na época da Ditadura Militar no Brasil, que se encontram arquivados no Espaço Xisto Bahia, localizado na Biblioteca Central do Estado da Bahia. Este material interessa não somente a nós, filólogos, como também aos historiadores e aos pesquisadores do Teatro, para estudo da Ditadura no Brasil e sua interferência em uma das formas de produção artística. Nosso propósito, após a edição, é o de estudar o “lugar da censura” nesses textos, por meio da orientação teórica da Análise do Discurso, e também do exame do vocabulário censurado.

Através dessas peças teatrais, poderemos entender a cultura daquele período e os mecanismos de repressão que revelam características da época, importantes para a história. Pretendemos, portanto, a partir dos cortes realizados nos textos, identificar as categorias de censura, se sociais, políticas, religiosas ou morais. Desse modo, ao resgatarmos esses textos, estaremos trazendo à tona o testemunho de uma sociedade, de sua ideologia, de seus valores, e também do lugar que ocupava aquele que escreveu o texto bem como daquele que o censurou. Buscamos, então, a memória de uma comunidade, de uma época, por meio das condições de produção daqueles textos.

Até o presente momento contamos, neste projeto, apenas com a participação de bolsistas voluntários que fizeram o levantamento, além dos mencionados textos teatrais[2], de outros, como documentos relativos a escravos[3], no Arquivo Público do Estado da Bahia, e textos religiosos[4], no Arquivo do Convento dos Franciscanos, na cidade do Salvador.

Finalmente, devemos lembrar que, através da recolha, edição e estudo desses materiais, poderemos oferecer elementos para estudo da história da língua portuguesa no Brasil, para a caracterização de nossa produção literária, e para a própria história da Bahia, considerando o texto como documento social.

 


 

REFERÊNCIAS

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A Escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife: EDUFPE / FJN / Massangana, 1994.

AGUILAR, Rafael Cano. Introducción al análisis filológico. [s.l.]: Castalia, 2000.

AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Iniciação à crítica textual. Rio de Janeiro: Presença/EDUSP, 1987. (Atualidade Crítica, 12).

BERWANGER, Ana Regina, LEAL, João Eurípedes Franklin. Noções de Paleografia e Diplomática. 2ª ed. Santa Maria: UFSM, 1995. (Série Livros Didáticos).

CARVALHO, Rosa Borges Santos. A Filologia e seu objeto: diferentes perspectivas de estudo. Revista Philologus, Rio de Janeiro, ano 9, n. 26, p. 44-50, maio-ago. 2003.

CARVALHO, Rosa Borges Santos. Poemas do Mar de Arthur de Salles: edição crítico-genética e estudo. 2001. xxxvi + 809 + 56 il. 2 v. Tese de Doutorado em Letras - Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

CASTILHO, Ataliba T. de (org). Para a história do português brasileiro. São Paulo: Humanitas / FFLCH/USP, 1998. v.1.

DUARTE, Luiz Fagundes. A fábrica dos textos: ensaios de crítica textual acerca de Eça de Queiroz. Lisboa: Cosmos, 1993.

FLEXOR, M. H. O. Normas técnicas para transcrição e edição de documentos Manuscritos. Boletim da Associação de Arquivistas Brasileiros, Rio de Janeiro, ano 4, n. 3, s.p., jul.ago.set.1994.

SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crítica textual. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Ars Poética/EDUSP, 1994.


 


 

[1] Sob a responsabilidade das Professoras Rosa Borges dos Santos e Maria da Conceição Reis Teixeira. Contamos ainda com a valiosa participação de alguns bolsistas voluntários.

[2] Deste trabalho participam Isabela Santos de Almeida e Nicéa de Sena e Rodrigues, com a colaboração de Viviane Silva Santana e Caroline Reis do Nascimento.

[3] Fazem a busca de tais textos Caroline Reis do Nascimento, Manuela Cunha de Souza, Rafaella Elisa da Silva Santos.

[4] Sob a responsabilidade de Jean Cláudio Oliveira Rios.

 

 

 

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