A LÍNGUA DO ADOLESCENTE
linguagem especial ou gíria?

Simone Nejaim Ribeiro (UERJ e UNESA)

 

Sendo este um estudo que envolve aspectos lingüísticos e sociais, relembremos a visão da língua como um fato social, sendo também necessário – já que abordaremos a linguagem do adolescente – fazermos uma distinção entre linguagem especial e gíria. Para isso, tomaremos por base o artigo “Em Torno dos Conceitos de Gíria e Calão”, de Celso Cunha, de 1941 (PEREIRA, 2004: 237-262).

Podemos afirmar que nas linguagens especiais encontramos fatores psicológicos e sociais, entre outros, que agrupam as pessoas de acordo com a profissão, a religião, as atividades esportivas, etc. Esses grupos se expressam através do sistema lingüístico comum a todos, fazendo uso de certas particularidades expressivas e representativas desse sistema.

Sabemos que a gíria dá um novo significado a formas já existentes ou que tenham sido alteradas nesse sistema lingüístico comum. O objetivo da gíria é não se fazer entender por quem não pertence a um determinado grupo. Logo, ela pretende manter a identidade e a consciência de um determinado grupo social.

Por isso, a diferença básica entre a gíria e a linguagem especial está no paradoxo existente entre a originalidade e o anonimato. Ou seja: a criação de termos e expressões pode servir ao desejo de não se fazer entender por estranhos ao grupo, mas a esse objetivo pode-se acrescentar a natural necessidade de auto-afirmação desse mesmo grupo, o que o levaria a buscar meios de imposição de sua expressão lingüística. De sua parte, a comunidade geral tende a receber essas inovações também de forma antagônica, opondo os sentimentos de conservadorismo e de curiosidade. Assim, estamos diante de um dos mecanismos mais interessantes no que tange à evolução da língua.

Vejamos o que diz Celso Cunha:

Em todos os grupos humanos organizados, desde o momento em que adquirem a consciência de sua unidade, os que não pertencem ao círculo, os não iniciados, passam a ser vistos como profanos. E é justamente daí que decorre o antagonismo entre a ação uniformizadora da sociedade geral, procurando estagnar a língua, pela resistência da inércia coletiva a toda invenção lingüística, e a ação dos grupos particulares tentando diferenciá-la, principalmente quando se trata de um grupo mais ou menos fechado e autônomo. (2004:  244)

Entretanto, a linguagem especial pode passar à gíria

...desde o momento em que deixe de ser uma proteção involuntária do grupo, mas no instante em que este, tomando consciência do caráter enigmático de sua linguagem, passe a usá-la voluntariamente, em ocasião oportuna, como arma não só de defesa mas também de ataque aos profanos. (2004: 244)

Como se vê, toda gíria é uma linguagem especial, mas nem toda linguagem especial é obrigatoriamente uma gíria, o que se poderia condensar na definição dada por Zélio dos Santos Jota (1976: 154), ou seja, a gíria é uma "linguagem especial de conteúdo expressivo vigente em um grupo social".

Continuando no caminho das referências acerca desse termo, vejamos mais alguns depoimentos acerca do verbete "gíria".

[gíria é] em sentido lato, [a] linguagem especial de um grupo social ou classe profissional; em sentido restrito, linguagem particular de um grupo caracterizada por deformações intencionais, criações anômalas, transformações semânticas, de caráter burlesco, jocoso ou depreciativo. (LUFT, 1973: 91)

[num sentido lingüisticamente] mais técnico: representa exclusivamente uma forma de língua na qual o léxico específico está ligado a um grupo social, ou porque o grupo tem uma vida fechada (a gíria politécnica), ou porque ele elaborou uma língua secreta que o protege (a gíria dos malfeitores, a gíria dos mercadores, comerciantes).[1] (MOUNIN, 1993: 40)

[a gíria é uma] variedade lingüística compartilhada por um grupo restrito (por idade ou por ocupação), que é falada para excluir da comunicação as pessoas estranhas e para reforçar o sentimento de identidade dos que pertencem ao grupo.[2] (CARDONA, 1991: 159)

Frise-se também que, de um modo geral, a criação dessas línguas especiais atende a uma necessidade do falante, que emprega vocábulos que dão mais clareza a um conceito ou que designam significações novas.

Observando o léxico das línguas especiais, vemos que ele é organizado pela formação de novos vocábulos, a partir de elementos da língua comum, através de significação nova, ou pelo uso de estrangeirismos. Encontramos também muitos casos de elipse e de troca de classe gramatical, o que serve de excelente material para a comprovação da vitalidade da língua. Além disso, mesmo nas vezes em que os vocábulos originais ou os oriundos de línguas estrangeiras não são entendidos da forma como deveriam, isso não impede sua utilização, ainda que foneticamente alterada ou adaptada pela pronunciação. Como esses vocábulos são utilizados por muitas pessoas, acabam sendo incorporados com as eventuais modificações provocadas pelo princípio do menor esforço ou da economia de energia ou pela analogia.

A gíria é, portanto, derivada de contribuições variadas da língua comum, incorporando arcaísmos, neologismos, aspectos estilísticos, mudanças sintáticas e outros recursos que, a princípio, teriam o objetivo de tornar uma linguagem irreconhecível. No entanto, como pode ter também uma conotação negativa, a gíria que concretiza a maneira de falar específica de um grupo profissional pode receber a denominação de "linguagem especial" ou "tecnoleto" ou "microlíngua", conforme suas características intrínsecas.

Além disso, muitos estudiosos e teóricos vêem a gíria como o conjunto de expressões pertencentes ao linguajar popular e aos modismos de certas épocas.

Assim, se seguirmos a tendência de considerar a linguagem especial dos adolescentes um modo de comunicação que se destina somente aos iniciados, que estão a par de seus significados simbólicos, ela será tomada como gíria. A esse respeito, é interessante observar o fato de muitas revistas se especializarem em assuntos que envolvem os gostos e interesses dos adolescentes, formando um público especial, que entende os termos usados. Sob este prisma, somente esse público iniciado entenderia, a princípio, tal linguagem. Apesar disso, embora inicialmente restrita a um pequeno grupo, muitas vezes ela passa a fazer parte da língua cotidiana. Por isso, é natural a oscilação entre considerar ou não a "língua do adolescente" um caso de gíria, pelo menos no que tange às definições técnicas desse termo. Como a gíria está em contato com a língua comum, muitas de suas leis são iguais às da língua comum, com diferenças apenas no léxico.

A propósito, vejamos na definição de Lázaro Carreter para gíria de que forma o enquadramento rigoroso da linguagem do adolescente como gíria ou como língua especial é tarefa pouco confortável:

Língua especial de um grupo social diferenciado, usada por seus falantes apenas enquanto membros desse grupo social. Fora deste, falam a língua geral. [3] (1974:  251).

Por este conceito, a língua do adolescente não é gíria porque pretende atingir de forma original as pessoas de fora do seu grupo, a fim de incorporá-las a ele. Todavia, não deixa de ser gíria porquanto, fora do universo do adolescente, seus falantes adotam a língua geral.

Essas definições mostram como o termo "gíria" pode ser tomado ou empregado de maneiras variadas, o que também se depreende das palavras de Mattoso Câmara Jr.:

Em sentido estrito, uma linguagem fundamentada num "vocabulário parasita que empregam os membros de um grupo ou categoria social com a preocupação de se distinguirem da massa dos sujeitos falantes" (Marrouzeau, 1943, 36), o que corresponde ao que também se chama JARGÃO. Os vocábulos da gíria ou jargão coexistem ao lado dos vocábulos comuns da língua: "a gíria só se torna tal porque se projeta num fundo de tela que não é gíria" (Krapp, 1927, 64); ela abrange o vocabulário propriamente dito e a fraseologia. A origem pode estar em: – a) derivações anômalas (ex.: bestialógico, da gíria dos estudantes), b) deformação de vocábulos usuais (ex.: brilharetur, idem), c) metáforas ou metonímias (ex.: burro, idem, para um texto grego ou latino com tradução literal), d) especialmente digna de nota a gíria dos malfeitores, designada como calão. Há gírias em classes e profissões não só populares, mas também cultas, sem qualquer intenção de chiste e petulância, que comumente caracteriza as primeiras; mas em todas há uma atitude estilística. Quando se trata de mero vocabulário técnico, sem essa atitude, tem-se a LÍNGUA ESPECIAL, como a dos médicos baseada em helenismos técnicos. Em sentido lato, a gíria é o conjunto de termos que, provenientes das diversas gírias em sentido estrito, se generalizam e assinalam o estilo na linguagem coloquial popular, correspondendo aí ao papel da língua literária na linguagem poética. Amplia-se com o uso de termos obscenos ou pelo menos grosseiros para a expressão de uma violenta linguagem afetiva. (1986: 127)

No caso dos jovens, citando a situação específica da linguagem dos estudantes, assim se expressa Mônica Rector:

A “gíria” dos estudantes é uma linguagem especial, própria de um grupo social e etário. Trata-se de termos e expressões que se referem a uma determinada atividade. No caso dos estudantes, a linguagem empregada tem a intenção de fazer com que não sejam compreendidos, principalmente pelos professores e sejam identificados como alunos. Assemelha-se ao que I. Iordan (p. 632-34) chama de “argot”: a) pertence a uma categoria social determinada, a um grupo de indivíduos que, ao lado da gíria, usam a língua comum, e b) pode ser utilizada com a finalidade de não ser compreendida pelas pessoas que não pertencem ao respectivo grupo. Tem a intenção de “impressionar” e “chamar a atenção” dos não iniciados, sobretudo por parte dos universitários. (1975: 101)

Portanto, para os objetivos a que nos propomos, adotemos a posição de que a linguagem do adolescente é um caso particular de linguagem especial, pois contém características da gíria, mas, ao mesmo tempo, se insere nas relações comunicativas com a língua comum. Fora do rigor técnico, pode-se todavia classificá-la como gíria ou jargão, entendendo-a como um conjunto de expressões estilísticas de cunho popular.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Ieda Maria. A constituição da normalização terminológica  no Brasil. São Paulo: FFLCH/USP, 1996

––––––. Neologismo, criação lexical. São Paulo: Ática, 1990.

––––––. Glossário de termos neológicos da economia. São Paulo: CITRAT FFLCH/USP, 1998.

BASÍLIO, Margarida. Teria lexical. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1995.

BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico. São Paulo: Loyola, 1999.

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. 15ª ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

CARDONA, Giorgio Raimondo. Diccionario de lingüística. Barcelona: Ariel, 1991.

CARNEIRO, Marísia, org. Pistas e travessias. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.

CARRETER, Fernando Lázaro. Diccionario de términos filológicos. 3ª ed., Madrid: Editorial Gredos, 1974. 460p.

CARVALHO, Nelly. Empréstimos lingüísticos. s/ed. São Paulo: Ática,    1989. 83p.

CLARE, Nícia de Andrade Verdini. A linguagem da política: inovações lingüísticas no português contemporâneo. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2004.

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

CUNHA, Celso Ferreira da. Conservação e Inovação no Português do Brasil. In: O eixo e a roda, Revista de literatura brasileira, Belo Horizonte: v.5, 1986.

––––––. Em torno dos conceitos de gíria e calão. In: PEREIRA, Cilene da Cunha. Sob a Pele das Palavras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Academia Brasileira de Letras, 2004.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

HOUAISS, Antônio.  Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.  Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

JOTA, Zélio dos Santos. Dicionário de lingüística. Rio de Janeiro: Presença, 1976.

MOUNIN,  Georges. Dictionnaire de la lingüistique. Paris: Quadrige; PUF, 1993.

RECTOR, Mônica. A linguagem da juventude: uma pesquisa geo-sociolingüística. Petrópolis: Vozes, 1975.


 


 

[1] il désigne exclusivement une forme de langue dont le lexique spécifique est lié à un groupe social, soit parce que le groupe a une vie fermée (l'argot de Polytechinique), soit parce qu'il a élaboré une langue secrète qui le protège (l'argot des malfaiteurs, l'argot des maquignons).

[2] Variedad lingüística compartida por un grupo restringido (por idad o por ocupación) que es hablada para excluir a las personas ajenas de la comunicación y para reforzar el sentimiento de identidad de los que pertencen al grupo.

[3] Lengua especial de un grupo social diferenciado, usada por sus hablantes sólo en cuanto membros de ese grupo social. Fuera de él hablan la lengua general.

 

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