A hamartía de Chapeuzinho Vermelho

Calina Miwa Fujimura (UERJ)

 

Com isso o trágico é compreendido, mais uma vez, como um fenômeno dialético, pois a indiferença entre liberdade e necessidade é possível pagando-se o preço de o vencedor ser ao mesmo tempo o vencido, e vice-versa. E a arena dessa luta não é um campo intermediário, exterior ao sujeito em conflito; ela é transportada para a própria liberdade, que se torna assim, como que em desacordo consigo mesma, sua própria adversária. (Peter Szondi)[1]

 

A palavra grega mŷthos é formada por uma onomatopéia que dá a idéia de um “falar entre os dentes”[2]. Dentro de sua própria origem, o mito já carrega um mistério, algo que se oculta, funcionando como uma espécie de fala interdita, capaz de dizer além do que seus signos podem significar. Acredito que a narrativa de “Chapeuzinho Vermelho” é também essa mensagem falada “entre os dentes”, rodeada de mistérios e advertências, composta por um conflito moral de dimensões trágicas.

A vontade[3] que move Chapeuzinho Vermelho é da ordem do desejo de conhecer algo ainda envolto em mistério. A tradicional história contada sobre uma menina que, por sair da trilha, é devorada por um lobo, pode também ser lida sob uma perspectiva do desejo. Procurarei, neste ensaio, tentar aproximar o caminho percorrido por Chapeuzinho Vermelho, ao dos trilhados pelos protagonistas das tragédias gregas, tendo como ponto de partida o conceito grego de hamartía[4], que, em “Chapeuzinho Vermelho”, será orientado pelo imperativo do desejo. Dos valores morais, do nómos (lei) será dada a sentença já esperada por suas escolhas.

À primeira vista, Chapeuzinho Vermelho, ao longo da narrativa, apresenta o movimento de menina inocente que cai nas garras (e na boca) do Lobo Mau. Porém, o símbolo maior de sensualidade (chapéu vermelho) que carrega, juntamente com suas atitudes suspeitas, levam o leitor a uma segunda leitura mais ousada.

A cor que Chapeuzinho tem em seu capuz[5] é aquela que, simbolicamente, representa um desabrochar da libido, um símbolo cor de sangue, de menstruação, sensual. É a cor que comunica conflitos e paixões em quem a veste. Dessa forma, o Lobo do conto funcionaria como agente devorador da fase menina de Chapeuzinho, já que nela se desperta o seu novo estado marcado pela menstruação e pelo despertar do corpo. A juventude e os prazeres passam a envolvê-la nessa transformação. É a menina que em seus desejos passa a caracterizar uma mulher.

Chapeuzinho cresce na narrativa sob o signo vermelho, é como se o que a caracterizasse também revelasse seus desejos, seu fim – a trajetória de sua hamartía. Guiada pelo objetivo de conhecer o Lobo, Chapeuzinho Vermelho esquece o senso do correto e moral para seguir as palavras do inimigo. A vontade de conhecer o proibido leva Chapeuzinho à escolha entre dois caminhos: o reto e moralista ditado pela advertência dada por sua mãe[6], e o caminho do desvio – o que irá levar a menina até o Lobo. Chapeuzinho Vermelho, diante do poder de seu desejo, escolhe o desvio e conversa com estranhos: “ ‘Sua avó mora muito longe?’ perguntou o lobo. ‘Ah! Mora sim’, respondeu Chapeuzinho Vermelho. ‘Mora depois daquele moinho lá longe, bem longe, na primeira casa da aldeia.’” (PERRAULT, 2004: 336)

Como ressalta Vernant, “a falta, hamártema, aparece aí ao mesmo tempo sob a forma de um ‘erro’ de espírito, de uma polução religiosa, de uma fraqueza moral”(VERNANT, 2002: 35), que assombra o indivíduo e o leva a transgredir certas regras, cometendo falhas. Apontando a direção da casa da avó, a hamartía de Chapeuzinho Vermelho, como polução, irá ultrapassá-la e atingirá, como conseqüência de seus atos, sua avó.

Para que Chapeuzinho ficasse livre da autoridade da avó, a “boa menina” tinha de articular uma forma de anular o poder daquela figura que impunha respeito. Era imprescindível que a vovó morresse[7], se não, que pelo menos saísse de cena tal qual os caçadores. Com isso, Chapeuzinho, deixa que o lobo chegue primeiro à casa de sua avó, percorrendo o caminho mais longo, distraindo-se com flores. O cenário trágico parece então estar montado: em segredo, Lobo e Chapeuzinho, na cama da vovó, dão início ao seu diálogo de sedução, do qual sucede o desfecho tenso imposto pelo nómos.

Na versão dos camponeses para “Chapeuzinho Vermelho”, o Lobo não devora a avó de Chapeuzinho, ele a mata, cortando sua carne em fatias e despejando seu sangue em uma jarra, para, mais tarde, servir à menina. Esse banquete de carne humana lembra os executados por Tântalo e Atreu, figuras do imaginário grego, que, pelos crimes cometidos, transmitiram a suas gerações castigos e desgraças. Tântalo serviu aos Deuses do Olimpo[8] as carnes de seu próprio filho, Pélops, em desafio à onisciência daqueles; assim como seu neto (Atreu)[9] que ofereceu a seu irmão Tiestes um outro banquete composto pelas carnes dos três filhos deste. O mito dos Atridas se baseia na mesma falta que é da ordem do “devorar”, que Tântalo inicia e Atreu repete. A hamartía cometida em uma determinada geração é passada para a outra, de acordo com a lei do guénos. Segundo essa lei, os descendentes de um determinado clã não herdavam do sangue somente uma bagagem biológica, herdavam também as desgraças.

Quando Chapeuzinho Vermelho chega à casa da avó, encontra o Lobo disfarçado com as roupas da velhinha, recomendando que ela se servisse da carne e do vinho que estavam na copa. Servindo-se da carne e do vinho, um gato lá presente sentencia: “Comer da carne e beber do sangue de sua avó!” (DARNTON, 2001: 21-22). Partindo do significado simbólico do gato como animal que carrega a sagacidade, engenhosidade e o dom da clarividência, tem-se adiantado o futuro de Chapeuzinho, nas palavras do felino, como “menina perdida”, monstro. Comendo as partes do corpo (a carne) e bebendo do sangue (o vinho) da avó, os símbolos ocultos de transferência de sexualidade passam a conotar a fragilidade da carne perante o pecado, dentre eles, o impulso sexual incontrolável, e se vê no vinho um símbolo de conhecimento e de iniciação. Assim, o ato canibal de Chapeuzinho pode ser entendido como prenúncio do seu fim “trágico”, já que carrega sobre a cabeça um signo sangüíneo tecido pela avó.

O signo de sangue presente no capuz de Chapeuzinho Vermelho pode ser comparado ao que acompanha Agamêmnom, descendente do clã dos Atridas, n’A trilogia de Orestes. Em seu retorno à cidade de Argos, este é recebido por Clitemnestra, sua esposa, com um tapete da cor vermelha, símbolo que era dedicado somente aos Deuses do Olimpo. Acuado por ter trazido sua prenda de guerra – Cassandra – e por ter sacrificado sua filha Ifigênia, Agamêmnom atende ao pedido de Clitemnestra e caminha sobre o tapete vermelho como um imortal. Os passos dados sobre o tapete vermelho, que conduzem o rei ao seu palácio, só reiteram a falta que terá de pagar com sangue pelo sacrifício de sua filha em troca da vitória das armas. A cor vermelha, que assinala os passos de Agamemnom, é a mesma que dita, igualmente, o tom do destino devorador de Chapeuzinho.


 

Mesmo que a Oréstia apresente um final feliz, com a absolvição de Orestes, no tribunal de Atena, o representante do clã dos Atridas não ficou isento de sua culpa, ele continua sendo considerado um matricida. Tal qual Chapeuzinho Vermelho, que, ao final da versão dos Grimm, é salva, juntamente com sua avó, da barriga do Lobo. Happy end que não retira a culpa e nem livra a personagem de sua devida lição. Ser resgatada pelo caçador não absolve Chapeuzinho Vermelho de ter se desviado do caminho correto, leva a menina, por uma questão moralista e reflexiva, a pensar nas suas atitudes, disseminando a advertência que o conto pretendia ensinar às meninas: “Chapeuzinho Vermelho disse consigo: ‘Nunca se desvie do caminho e nunca entre na mata quando sua mãe proibir.’” (GRIMM, 2004: 35)

O valor moral dos atos de uma personagem na tragédia era avaliado como positivo ou negativo conforme a reação punitiva dos mesmos. A falha, o erro vem da noção de que por ser culpado o sujeito foi punido; o homem grego não fazia a distinção entre o bem e o mal nas suas escolhas, apenas optava por uma das saídas e, dessa forma, carregava consigo a responsabilidade por suas atitudes. A liberdade de Chapeuzinho Vermelho em escolher o seu caminho traz consigo, como revés, o dever de responder por uma falha, seguindo um movimento dialético próprio da tragédia, como se a realização do seu desejo fosse também seu castigo.

Peter Szondi, em seu capítulo sobre o pensamento trágico de Goethe, ressalta a visão do filósofo, que irá se constituir na impossibilidade de solução para o conflito trágico, fato esse que, para Goethe, consistirá em uma “oposição irreconciliável”, característica da escrita trágica, desse movimento dialético que marca, de maneira semelhante, a vontade de Chapeuzinho Vermelho.

O momento agônico construído ao final do texto, presente em todas as versões, é produto do diálogo travado entre o Lobo e Chapeuzinho Vermelho na cama da avó. O leitor percebe que os turnos de fala entre o Lobo e Chapeuzinho apenas adiam o fim devorador do conto. Aqueles instantes de descoberta, pelos quais a personagem passa, parecem acontecer de uma forma tão lenta e agônica como em uma cena de filme de suspense, na qual o espectador sabe que algo irá acontecer, mas o quê? O conto de advertência faz com que seu leitor, por meio de um diálogo agônico, tenha medo do fim:

Minha avó, que braços grandes você tem!
É para abraçar você melhor, minha neta.
Minha avó, que pernas grandes você tem!
É para correr melhor, minha filha.
Minha avó, que orelhas grandes você tem
É para escutar melhor, minha filha.
Minha avó, que olhos grandes você tem!
É para enxergar você melhor, minha filha
Minha avó, que dentes grandes você tem! (PERRAULT, 2004: 338).

O trágico fim que envolve Chapeuzinho Vermelho aponta para uma prevalência da função do termo “necessidade”, sendo o acaso totalmente descartado. A falha de Chapeuzinho Vermelho não é aquela de Édipo – desprovida de dolo – involuntária. A hamartía da personagem é semelhante a de Antígona, uma figura que encarna a força de uma afronta ao poder, e que, ao longo de seu debate com Creonte, para defender o sepultamento do corpo de seu irmão, vai moldando uma vontade consciente, uma necessidade de provocar o poder local, de transgredir leis.

Assim como Antígona, Chapeuzinho Vermelho, até na sua morte, burla as regras a ela impostas. Enquanto Antígona escolhe o suicídio para infringir as leis da polis, e, conseqüentemente, a sentença de Creonte[10], a menina opta pelo encontro com o Lobo, agindo de forma passiva à descoberta deste na cama de sua avó. Antígona e Chapeuzinho Vermelho se igualam no momento em que o violar de uma regra significa desafiar o poder, seja ele moral ou político, ambas se condenam ao suicídio pelos objetivos que desejam alcançar.

O medo que o conto de advertência gera em seus ouvintes ou leitores vem da mesma técnica vista na estrutura da tragédia. No processo trágico, medo e compaixão estão conectados de forma a causar esses sentimentos simultaneamente: o espectador passa a ver no objeto de compadecimento o seu espelho e a temer a aproximação da trajetória desse reflexo com a sua vida. Gotthold Ephraim Lessing, em seu estudo Dramaturgia de Hamburg, esclarece bem a função desses dois sentimentos, a partir de uma leitura correta de Aristóteles, na qual Lessing observa que o medo:

(...) não é de modo algum o medo que o mal iminente de outrem desperta por esse outrem, porém o medo por nós próprios, que brota de nossa semelhança com a personagem sofredora; é o medo de que as calamidades a ela destinadas nos possam atingir a nós mesmos; é o medo de que nós próprios possamos tornar-nos o objeto compadecido. Numa palavra: este medo é a compaixão referida a nós mesmos. (LESSING, 1992: 55)

Em “Chapeuzinho Vermelho” o medo de se ver projetado no destino trágico da personagem deve gerar um ensinamento por meio do exemplo. O compadecimento em assistir ao fim da menina é seguido pelo medo de se igualar em sua tragédia, em sua dor. Aquele que comete uma hamartía acredita estar cometendo-a pelo bem, nem que seja o seu, por prazer. A liberdade de escolha que leva Chapeuzinho ao Lobo, na forma de uma vitória, é também a marca do seu fim trágico, sendo, ao mesmo tempo, essa derrota a realização de sua vontade. A questão insolúvel que faz parte da mecânica do trágico parece persistir até o fim. A personagem não pode ser considerada uma vencedora, pois foi derrotada por sua hamartía. Como não é de toda vencida, já que segue sua vontade. Chapeuzinho Vermelho é mesmo esse duplo irresolúvel; de caminhos duvidosos, de final questionador.

 


 

Referências Bibliográficas

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos (Trad. Sonia Coutinho). Rio de Janeiro: Graal, 2001.

ÉSQUILO. A trilogia de Orestes (Trad. David Jardim Júnior).Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

GRIMM, Jacob e Wilhelm. “Chapeuzinho Vermelho”. In: TATAR, Maria (edição, introdução e notas). Contos de fadas: edição comentada e ilustrada. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

LESSING, Gotthold Ephraim. “Dramaturgia de Hamburg”. In: ROSENFELD, Anatol (org. e introd.). De teatro e literatura. São Paulo: EPU, 1992.

PERRAULT, Charles. “Chapeuzinho Vermelho”. In: TATAR, Maria (edição, introdução e notas). Contos de fadas: edição comentada e ilustrada. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

SÓFOCLES. Antígona. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2004.

SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

VERNANT, Jean-Pierre e VIDAL NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2002.

 


 


 

[1] Trecho retirado da parte dedicada ao estudo do pensamento sobre o trágico de Schelling, do livro de Peter Szondi, Ensaio sobre o Trágico.

[2] Palavra onomatopaica μυμυ – “falar entre os dentes”.

[3] Como lembra Jean-Pierre Vernant, em Mito e tragédia na Grécia antiga, a Grécia antiga não possuía em seu vocabulário uma palavra que correspondesse ao termo “vontade”, porém o autor não tem dúvidas sobre a existência de tal sentimento, mesmo que esse não tenha sido denominado pelos gregos. Falo, então, de uma vontade que percorre todas as versões a serem aqui estudadas: a versão dos camponeses, a de Charles Perrault e a escrita por Jacob e Wilhelm Grimm.

[4] De acordo com Jean-Pierre Vernant, a hamartía é como “uma doença mental, o criminoso é a presa de um delírio, é um homem que perdeu o senso, um demens, hamartínoos.”(VERNANT, 2002:35-36).

[5] A figura do capuz vermelho que marca a menina e dá título ao conto é uma inovação de Charles Perrault, pois na versão dos camponeses, tal símbolo não era citado.

[6] A advertência dada pela mãe à menina de não sair do caminho e nem ficar “bisbilhotando pelos cantos”é encontrada somente na versão dos Irmãos Grimm.

[7] Dentre as versões para “Chapeuzinho Vermelho”, a história, contada pelos camponeses da França do século XVIII, parece ser a mais cruel, na qual as imagens mostram-se com um requinte de maldade que não é levado para as versões de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm.

[8] Os Deuses gregos não se alimentavam de carne, somente consumiam néctar e ambrosia. Oferecer carne aos Deuses era igualá-los aos mortais.

[9] Tiestes, após ter se servido das carnes oferecidas por Atreu, vê, ao fim do banquete, trazida em uma bandeja, as cabeças de seus três filhos. Com isso, Atreu consegue enlouquecer seu irmão tomando posse do trono.

[10] Creonte sentencia Antígona à pena de morte.

 

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