O GÊNERO DEMONSTRATIVO
E SUA UTILIZAÇÃO POR JERÔNIMO
A QUESTÃO DO ELOGIO NA QUERELA
DE JERÔNIMO E RUFINO

Luís Carlos Lima Carpinetti (USP, UFJF)

 

Introdução
o valor do termo apologia no título da obra

O texto em questão traz, a Apologia de Jerônimo contra Rufino, em pelo menos três edições de que dispomos, o título de Apologia. A mais recente edição francesa, publicada sob os cuidados de Pierre Lardet, em 1983, porta o título de Apologie contre Rufin, enquanto a edição de Domenico Vallarsi, que data de 1767, e a de J.-P. Migne, que data de 1883, são intituladas como Apologia adversus libros Rufini.

O termo equivale a uma peça oral ou escrita, apresentada sob o tom de admiração e expressividade para justificar uma pessoa ou coisa, defendendo destas suas qualidades, caráter, relevância e valor. Podemos relembrar o exemplo de Platão que compôs a apologia de Sócrates, mestre que Platão cita muitas vezes em seus Diálogos, vários anos após a morte de Sócrates. É um discurso por meio do qual Sócrates se defende, em presença dos heliastas, contra as acusações que lhe eram imputadas de haver ele corrompido a juventude e de introduzir divindades estrangeiras e, em geral, contra as desconfianças e o ódio que lhe atraíam suas buscas filosóficas e sua reputação de sabedoria. A ironia que geralmente Platão concede a Sócrates em sua Apologia, ainda que se mantenha sob controle e medida, mostra-se viva e amarga, e, ao mesmo tempo uma alta dignidade sustenta na totalidade da obra uma eloqüência desdenhosa, mas convincente. A apologia de que Sócrates tornou-se objeto no verbo de Xenofonte acrescenta detalhes interessantes, e ressalta a idéia de que, para Sócrates, a morte vale mais que a vida.

Citemos ainda outros exemplos de apologias. A Apologia de Heródoto, de Henri Estienne, de 1566, como seqüência a uma publicação das obras do historiador grego citado, cujas obras foram alvo de críticas severas, sendo consideradas como obras repletas de elementos fabulosos, sobretudo pelo clero católico romano. Aristides, filósofo grego do século II, demonstra, em sua Apologia dos cristãos, a excelência da idéia de Deus na religião cristã, desenvolvendo um estudo sobre o assunto em variadas religiões. Em 197 a.D., também Tertuliano fez uso do gênero para endereçar aos romanos pagãos uma defesa vigorosa e apaixonada dos costumes e crenças cristãs, preferindo a argumentos gerais e filosóficos outros argumentos mais afinados com sua familiaridade com a história e o direito.

O segundo século de nossa era é pródigo em apologistas cristãos, esses literatos que, sendo apurados manipuladores das regras de composição das apologias, esmeram-se em defender a fé cristã. Em língua grega, podemos citar São Justino, Aristides de Atenas, Aristão, Melitão de Sardes, Apolinário de Hierápolis, Taciano, Atenágoras, Teófilo de Antioquia. Entre os latinos, encontramos Tertuliano e Minúcio Félix.

A apologia como gênero apresenta como propósito a justificação e a defesa de alguém, de alguma coisa, de alguma causa ou idéia, enquanto que se oporia ao ataque, censura, condenação, crítica ou ato de denegrir alguém ou algo. O texto da Apologia de Jerônimo contra Rufino apresenta os dois conjuntos de aspectos apresentados, os positivos que configuram a apologia como gênero e os outros aspectos que contrariam as regras da composição de uma apologia. Optamos por nomear nossa tradução com o título de Apologia de Jerônimo contra Rufino por entendermos que o movimento de defesa parte de Jerônimo em favor de si mesmo e opera com uma série de restrições com relação ao ex-amigo Rufino.

Em sua própria defesa ou apologia, Jerônimo ocupa-se de desfazer todas as sombras que seus estudos e traduções da obra de Orígenes, dois séculos após a sua morte, podem representar de suspeita de heresia, por haver Jerônimo utilizado os métodos de exegese bíblica herdados do mestre Orígenes. A situação que motiva a confecção da Apologia de Jerônimo contra Rufino tem antecedentes remotos que podemos verificar no fato de que era opinião corrente, na Palestina e igrejas das regiões orientais, que Orígenes sustentava teses contrárias ao ensinamento das Escrituras e que, também, isso se devia à utilização dos métodos de interpretação alegórica que multiplicavam as possibilidades de interpretação do texto bíblico. Deste modo, a possibilidade de distanciamento do sentido original dos textos assim interpretados e a tomada de uma posição frente ao sentido estilhaçado – esta tomada de posição seria o sentido do termo grego heresia – eram bastante reais. Mas tal situação só passa a ser focalizada oficialmente pelas autoridades eclesiásticas, e aí temos os antecedentes próximos da querela entre Jerônimo e Rufino de que nos ocupamos, depois que Atárbio, teólogo sutil, lançou publicamente em uma cerimônia de Pentecostes do ano de 394, na diocese de Jerusalém, a acusação de heresia para as teses de Orígenes. O bispo chipriota Epifânio de Salamina intervém no debate, provocando a efervescência que tomará dimensões cada vez maiores com o passar dos anos. Mas Epifânio de Salamina, além de seu zelo pela ortodoxia que o faz dirigir-se a Jerusalém para defender a Igreja da disseminação da heresia, será também o causador da dissidência entre o bispo João de Jerusalém, ao qual se alia Rufino de Aquiléia, amigo de juventude de Jerônimo, e a comunidade monástica sediada em Belém, sob direção de Jerônimo. O fato que causou a dissidência foi a ordenação, em território sob jurisdição do bispo de Jerusalém, do irmão de Jerônimo, Pauliniano, pelo bispo Epifânio de Salamina, fato que constituiu grave usurpação das prerrogativas episcopais do bispado hierosolimitano.

Diante disso, a amizade entre Jerônimo e Rufino fica gravemente afetada, pelo fato de os dois se colocarem cada um em grupos rivais. Em Roma os textos de Orígenes não eram muito conhecidos, o que levou Rufino a trazer para os leitores latinos o texto grego do Tratado dos Princípios, o Perì Archôn. O ex-amigo Jerônimo teria julgado boa essa razão se Rufino não tivesse, como alega no prefácio da sua tradução latina, limado e corrigido pontos do texto que pudessem representar dificuldade ao leitor latino, coisa que atribui Rufino às traduções que Jerônimo fez de várias obras de Orígenes.[1] A menção ao nome de Jerônimo não soou agradável aos ouvidos do próprio, uma vez que tende a justificar, no julgamento de Jerônimo, às custas de sua reputação de ortodoxia, uma prática de tradução que ele não aprova nem em termos lingüísticos, nem em termos de conteúdo de fé e de dogma. A reação de Jerônimo é a publicação de uma tradução que apresenta todos os conteúdos considerados heréticos, naquele tempo, da obra Perì Archôn de Orígenes. O escândalo causado pela publicação foi o responsável pela destruição dos volumes existentes da tradução feita por Jerônimo do texto grego do Perì Archôn. Pelo texto da Apologia de Jerônimo contra Rufino podemos perceber, com a imagem de um médico que denuncia venenos,[2] que a tradução do Perì Archôn por Jerônimo teve por função ampliar o debate sobre as teses de Orígenes, ofertando ao público o verdadeiro teor do texto grego e conduzindo o debate aos pontos nevrálgicos da questão origenista.

A Apologia de Jerônimo contra Rufino que, em tradução portuguesa, é apresentada em três livros, apresenta dois livros que são uma resposta à Apologia contra São Jerônimo, publicada por Rufino. No entanto, São Jerônimo não tem em mãos ainda o texto escrito contra si mesmo, baseando-se apenas em testemunhos que lhe chegam por amigos. O terceiro livro, ou a Carta de Jerônimo contra Rufino, é uma retomada de todas as questões tratadas nos dois primeiros livros e, uma vez com o texto de Rufino em mãos, Jerônimo aprofunda as suas críticas a Rufino, assevera ao leitor a ortodoxia de sua fé, discorre sobre vários incidentes e questões que fazem parte da controvérsia em sentido eclesiástico bem como as questões que tocam diretamente sua pessoa.

Uma vez publicada a tradução da obra Perì Archôn por Rufino, a menção aos trabalhos de tradução de Jerônimo da obra de Orígenes no prefácio desta tradução foi o principal motivo da contrariedade ressentida por Jerônimo em relação ao ex-amigo, fato que também reforçou a hostilidade que Jerônimo já vinha sentindo em relação ao ex-amigo. Ser considerado como alguém que altera textos de Orígenes para torná-los aceitáveis pela fé ortodoxa parecia uma falta grave para Jerônimo, e tanto mais inaceitável se a isto se acrescenta um elogio à “elegância das palavras de tão grande homem”[3]. Em sua Apologia, Jerônimo declara ter repelido o simulacro de um panegirista e ter recusado elogios de uma boca hipócrita[4], e isto é uma alusão àquele pérfido elogio feito por Rufino, naquele “prefaciozinho”[5]. A defesa de Jerônimo, empreendida por ele próprio, não é tarefa fácil pelo fato de não dispor de alguém que defenda sua causa e também pelo fato de ser a causa em si bastante complicada. É muito pouco crível que alguém que traduza várias obras de determinado autor não considere recomendável e válido o autor traduzido, que não partilhe de certa forma as idéias do autor traduzido. Ora, Jerônimo traduziu e estudou muito Orígenes, o que o coloca numa posição de fragilidade em muitos pontos. Sua saída é alegar que aproveita os métodos de exegese aprendidos com Orígenes, sem contudo partilhar suas posições teológicas.

Jerônimo não economiza argumentos nem razões para construir a sua defesa e denuncia o fato de Rufino ter traduzido para o latim a Apologia de Orígenes atribuindo-a ao mártir Pânfilo, quando o texto era lavra do bispo ariano Eusébio de Cesaréia, tão ariano quanto adepto por afinidade com as teses origenistas. A causa de Jerônimo não se reduz, pela extensão e complexidade do texto, à defesa de sua própria pessoa, mas ataca o origenismo em várias manifestações, considerando a obra e a pessoa de Orígenes como um lugar em que se abrigam muitas posições escusas e heréticas, o que leva Jerônimo ao julgamento de que se deva atribuir a cada pessoa e a cada tendência a definição justa e cabível . No segundo livro de sua Apologia, Jerônimo ataca as teses origenistas sobre a origem da alma do Cristo, sobre a ressurreição da carne, sobre o castigo do diabo, sobre a origem das almas. Ainda neste segundo livro, Jerônimo denuncia a tentativa de Rufino de negar a autoria de Orígenes com relação às teses heréticas contidas em seus tratados, atribuindo os conteúdos heréticos da obra de Orígenes a alterações feitas nesses textos por hereges; tal fato impossibilitaria a atribuição correta de cada idéia a seu verdadeiro autor. Parece-nos clara a posição de Rufino de promover a defesa de Orígenes quando traduz para o latim uma Apologia de Orígenes. Jerônimo também é o defensor de suas traduções diretas do texto bíblico diretamente do hebraico, trabalho que teve valor único e que careceu de iniciativa semelhante que pudesse lhe servir de paralelo, visto que as traduções existentes do texto bíblico eram feitas a partir do grego e não se igualavam à qualidade literária da tradução empreendida por São Jerônimo.

A Apologia contra São Jerônimo[6] chega às mãos de Jerônimo, e este então compõe a Carta contra Rufino, sacerdote de Aquiléia. A difusão dos livros de Rufino impõe uma resposta da parte de Jerônimo. Às insinuações de Rufino de que alguns amigos de Jerônimo teriam falsificado a tradução do Perì Archôn, feita por ele – essa que nos chega até os dias atuais como único remanescente do texto de Orígenes, objeto de discórdia pessoal e doutrinal – responde Jerônimo que seus amigos não poderiam fazê-lo, a não ser que pagassem o secretário a peso de ouro para alterar, como diz Rufino, os rascunhos do Perì Archôn que não estavam ainda corrigidos.[7] Na integralidade de sua resposta Jerônimo luta para fazer-se distinguir de Rufino e daqueles que se assemelham a ele na adesão às teses origenistas. Voltando a tratar das questões de tradução e comentário, Jerônimo denuncia estratégias de que Rufino faz uso, quando este invoca a técnica utilizada por Jerônimo nos Comentários sobre a Epístola aos Efésios, com a finalidade de justificar sua tradução do Perì Archôn; denuncia também o interesse de Rufino em exaltar em latim a figura e o pensamento de Orígenes com a tradução da Apologia de Orígenes, que Rufino atribui a Pânfilo, o qual, sendo mártir, angaria para a obra o olhar benevolente do leitor latino, bem como atribui ao personagem Orígenes reputação bastante positiva, tornando recomendável a leitura de suas obras. Jerônimo afirma que a tradução feita por Rufino do Perì Archôn torna-se indefensável pelo seu prefácio, no qual declara Rufino ter procedido da mesma forma que Jerônimo, ao limar e melhorar o texto original, fato que para Jerônimo equivale a uma ocultação do teor herético do texto. Jerônimo oferece-nos sua visão a respeito de vários eventos que presenciou nesta época, e as personalidades ligadas a esses eventos no Oriente e no Ocidente: Teófilo, Vigilâncio, Anastásio, Epifânio, sendo os dois últimos, respectivamente, bispo de Roma e bispo de Chipre. A tradução perdida do Peri Archon, feita por Jerônimo é, segundo seu autor, legítima, porque ao que nos dá a entender, desnudou o falseamento do teor do texto grego na tradução rufiniana. Finalizando esta Carta contra Rufino, Jerônimo define seu pronunciamento como uma defesa preferencial da ortodoxia e encerra esta parte da Apologia contra Rufino com numerosas citações extraídas do Livro dos Provérbios.

 

O genus demonstratiuum

Nos dias de hoje, além de seu emprego na oratória forense, na oratória dos políticos, em discursos fúnebres, o discurso publicitário, nos meios de comunicação de massa, representa um exemplar deste gênero demonstrativo que, sobrevivendo aos séculos e ganhando novas funções na sociedade de consumo em que vivemos, neste século XXI, faz do produto anunciado objeto do elogio e enaltecimento por suas qualidades e propriedades e, para atender a esta finalidade, recorre a inúmeras formas, cores, sons para veicular a imagem positiva do produto que se quer incutir na mente do consumidor-alvo. Outrora, no século XVII, na França, Jacques-Bénigne Bossuet prodigalizou seu talento em numerosos panegíricos, peças por ele redigidas de teor sacro, nas quais enaltecia figuras históricas, na maior parte ligadas à história da Igreja ou à espiritualidade cristã, desenvolvendo o clássico gênero demonstrativo em uma utilização cristã, com a finalidade de edificação cristã, dentre outras finalidades. Em Roma dos tempos antigos, encontramos na obra ciceroniana um exemplar deste gênero, o Pro Archia, que nos traça, por meio da exaltação do ofício, a eminência daquele que tão dignamente o exercia, fazendo jus, então, ao que para ele requeria, com extrema maestria, nosso orador maior entre os latinos: que lhe fosse reconhecida sua cidadania romana, contestada por Graco.

O gênero demonstrativo atém-se ao elogio ou ao vitupério. Com este gênero, o discurso passa a ter sistematicamente um caráter exibitório, não requerendo do ouvinte uma decisão ou juízo, já que tal gênero não exige do público nenhuma decisão efetiva. Os assuntos que o discurso exibicionista pode aproveitar são os que mais se prestam para a exibição, quer dizer, os objetos belos. A exibição da oratória acha-se assim orientada para a beleza dos objetos ou assuntos: a beleza destes é o que se descreve e se louva. O elogio da beleza é a função básica da retórica epidíctica.

Ao elogio corresponde o seu contrário, o vitupério. Ao belo dá-se-lhe o elogio, ao feio vitupera-se. Quando se trata de algo verdadeiramente belo, o elogio que se lhe dispensa é um elogio sério. Mas pode-se aplicar elogios a objetos indignos, muitas vezes por zombaria. Há quatro graus possíveis quanto ao que é defensável no elogio: em primeiro lugar, objetos inquestionavelmente merecedores de elogio, como Deus, por exemplo; em segundo lugar, outros males graves, como os demônios; em terceiro lugar, elogios que, em parte, são evidentemente dignos do elogio, em parte criticáveis, defendendo-se suas propriedades censuráveis de maneira parcial; em quarto lugar, elogio zombeteiro de objetos indignos do elogio como a morte, a pobreza, cachorro etc. Os principais afetos do genus demonstratiuum são o amor admirativo e o ódio ou o desprezo execrador.

O discurso epidíctico ou laudatório não ocorre independentemente, como ocorre na funebris laudatio, mas pode apresentar-se como parte de discursos de outros gêneros, como o gênero judiciário, como acontece no caso da obra de nosso interesse e análise, a Apologia de Jerônimo contra Rufino.

No gênero demonstrativo não se põe em dúvida a existência do objeto, o qual é certo que exista e, por esta razão, não faz sentido pôr em questão o status coniecturae, pelo qual se pergunta se ocorreu ou não ocorreu determinado fato. No gênero judiciário, pelo status coniecturae, pergunta-se, por exemplo, se alguém praticou determinada ação. Já o status finitionis, que trata da definição daquilo que foi praticado, e o genus demonstratiuum mantêm estreita relação e têm na descrição uma forma de definição construída e exornada com os recursos e meios do genus demonstratiuum. Quando se trata de elogiar ao homem, o curso de sua vida, definição da essência do indivíduo correspondente e definição pelas ações responsáveis realizadas, ocupa importante lugar. As descrições de uma vida no decorrer dela não podem ter caráter definitivo, a não ser após seu término. Aquele que ama e preza com conhecimento íntimo o indivíduo que vai definir é o único que pode arriscar uma descrição definidora e formulá-la de modo que aquele de quem se faz a definição encontre expresso na definição seu verdadeiro ser. O status qualitatis tem por função fornecer uma demonstração detalhada do que seja o honestum e o que seja o turpe. O status translationis surgiria se o público manifestasse claramente ao orador sua incompetência real ou pusesse em dúvida seu direito de pronunciar um discurso epidíctico, e isto em virtude de sua vida anterior.

Examinando todos os elementos que compõem a questão do conflito entre os dois ex-amigos, ter-se-á uma idéia do modo como o elogio de Rufino a Jerônimo, presente no prefácio à tradução rufiniana do Tratado dos Princípios (Perì Archôn) que desencadeou a querela entre Jerônimo e Rufino, que recobre a segunda fase da controvérsia origenista, foi decisivo na deflagração de outros textos, como a tradução de Jerônimo do mesmo tratado de Orígenes, anteriormente traduzido por Rufino, e as apologias de um e de outro antagonista.

Podemos afirmar seguramente que o elogio dirigido a Jerônimo, no prefácio à tradução de Rufino, não poderia se sustentar como um elogio defensável, aquele que tem um objeto inquestionavelmente justo e benevolamente aceitável, de modo que o destinatário sentir-se-ia gratificado pelo reconhecimento justo, por parte de quem lhe tece o elogio, de um mérito objetivo, digno e reconhecido pelos valores da sociedade em que se acham inseridos o elogiador e o elogiado, sendo tal elogio causa do aumento da honra, do prestígio, da fama, além da alegria que o reconhecimento público pode proporcionar a quem recebe o elogio. Vejamos, pois, por qual motivo tal fato não acontece nos textos em questão.

Já expusemos no item deste capítulo sobre o genus iudiciale em que grau as doutrinas de Orígenes passaram a representar estigma na Igreja, a partir de 393, quando enumeramos os pontos de que se constituía o clichê antiorigenista, para cuja formação muito contribuiu o próprio Jerônimo em sua invectiva contra o bispo João de Jerusalém, no libelo Contra Iohannem Hierosolymitanum. Não é apenas para assegurar a continuidade de um trabalho iniciado por Jerônimo, como alega Rufino no citado prefácio[8], mas é também para invocar a Jerônimo como predecessor e modelo a imitar que Rufino menciona os trabalhos de tradução realizados por Jerônimo, alguns deles levados a cabo sob instância e autoridade do papa Dâmaso, de quem Jerônimo era secretário. Rufino menciona ter não apenas imitado a Jerônimo, mas declara ter seguido os próprios métodos de tradução deste[9], o qual teria aplainado o sentido do texto grego de modo que o resultado não contrariasse os dogmas de fé e que o leitor latino nada encontre de heterodoxo nos livros de Orígenes[10]. Este procedimento de alteração do sentido do texto original grego, que Rufino alega ter sido praticado por seu predecessor Jerônimo em suas traduções, seria utilizado com a finalidade de restabelecer a homogeneidade de um texto pretensamente interpolado, fato também alegado por Rufino em sua tradução do De adulteratione, tratado segundo o qual tudo o que havia de herético em Orígenes era resultado de acréscimos e interpolações de terceiros. Ora, o papel de modelo que Rufino atribui a Jerônimo passa a carregar consigo um quinhão de ambigüidade, pois descrevendo deste modo o trabalho de Jerônimo, a imagem de tradutor deste fica atingida pelo terrível estigma da falsidade, acrescida também de uma cumplicidade condenável com a heresia origenista, pelo fato de ocultar ao leitor o real pensamento de um autor herético, como se acobertasse, dessa maneira, o erro. Por ter sido a menção de Rufino suficientemente clara para tornar evidente a pessoa e a autoridade de Jerônimo, acreditamos que todos os acontecimentos posteriores a esse elogio tenham sido deflagrados por causa da ambigüidade desse elogio e da convicção que faz Jerônimo saber-se crítico e não-cúmplice do origenismo, o que gera, portanto, uma necessidade imperiosa de dissipar essa ambigüidade por parte de Jerônimo, como é nossa tarefa analisar em sua Apologia, e que alimentará, em muitos aspectos, sua palavra e as ações que realiza por palavras.

Após a publicação da tradução do Perì Archôn, feita por Jerônimo, a reação de Rufino, recobrindo vários tópicos, repousou também sobre o elogio endereçado a Jerônimo no citado prefácio, de que tratamos acima. Lamenta Rufino tê-lo louvado pela eloqüência e pela cultura, uma vez que Jerônimo “volta-lhe sua mordida de dente inesperado, causando-lhe dano, importunando um homem incapacitado de responder, que ele (Jerônimo) sabia que não podia fazê-lo com abundante recurso de eloqüência e refinada arte oratória, de modo que este que o queria lesado e ferido não parecesse ser nem lesado nem ferido”[11]. Além disso, a reação de Jerônimo, segundo Rufino, era a de “culpabilizar e vituperar ao mais leve rumor”[12].

Em sua Apologia Jerônimo refere-se àquele elogio do prefácio da tradução de Rufino como um elogio com conotação de acusação, portanto algo de que - admite - teve de repelir o aspecto dúbio e traiçoeiro[13] por meio da interposição de volumoso arrazoado em defesa de si próprio, já que acomodar-se ao silêncio seria aceitar o labéu da heresia. Em ambas as Apologias o tom acerbo se faz sentir logo em seguida àquele elogio, e os textos apologéticos de ambos os antagonistas passam a ser campos de acirrados vitupérios, sempre dirigidos à pessoa e às ideologias do outro, enquanto se pressupõe que o elogio acha-se investido favoravelmente a si próprio, partindo da pessoa que se defende para si mesma, contra as acusações pessoais e ideológicas que lhe faz o antagonista. Aqui poderíamos invocar os mesmos exemplos que apresentamos no segundo item deste capítulo, sobre a diatribe cínico-estóica, os quais poderiam caracterizar o vitupério, em muitos casos, e a simulação do elogio que, muitas vezes, se acha carregado de ironia e de hostilidade.

 

Conclusão

Depois de havermos exposto as implicações do termo apologia para buscar uma definição genérica da obra Apologia de Jerônimo contra Rufino, e também depois de termos discorrido sobre a questão do gênero demonstrativo o qual colabora, de modo eficiente, com a construção de uma apologia, bem como se mostra elemento inseparável do gênero judiciário, e que abarca, em sua constituição, elementos da linguagem moralizante da diatribe cínico-estóica, podemos evidenciar da obra Apologia de Jerônimo contra Rufino os seus aspectos de linguagem sobrecarregada de elementos expressivos, e também podemos entender a fonte do vigor das causas que impuseram a necessidade de tal recurso estilístico (as escolhas lexicais, as escolhas dos motivos, as escolhas de figuras estilísticas) que evidenciamos na construção do polêmico texto deste importante autor do século IV da era cristã que tão grande importância teve dentre os autores da latinidade tardia.

 

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[1] ORÍGENES (1978: I, 70): “...ita elimauit omnia interpretando atque purgauit, ut nihil in illis quod a fide nostra discrepet latinus lector inueniat...” (o sujeito destes comentários de Rufino é Jerônimo).

[2] JERÔNIMO (1983: 6): “...accusant medicum quod uenena prodiderit...”

[3] ORÍGENES (1978: I, 68): “... sed non aequis eloquentiae uiribus tanti uiri ornare possumus dicta...”

[4] JERÔNIMO (1983: 8): “...Quod praeconem reppuli figuratum? Quod nolui me subdolo ore laudari?...”

[5] praefatiuncula, no dizer irônico de Jerônimo, em várias ocorrências na Apologia contra Rufino.

[6] É assim que se intitula a apologia que Rufino endereçou a São Jerônimo, segundo a edição de Migne que consultamos: Rufini Aquileiensis PresbyteriApologiae in Santum Hieronymum libri duo.

[7] JERÔNIMO (1983: 221): “...Noli multo auro redimere notarium, sicut amici tui de meis Peri Archon schedulis nondum emendatis, nondum ad purum digestis fecerunt, ut facilius falsare possent quod aut nullus haberet, aut admodum pauci...”

[8] ORÍGENES (1978: I, 68): “...Nos ergo rem ab illo quidem coeptam sequimur et probatam, sed non aequis eloquentiae uiribus tanti uiri ornare possumus dicta...”

[9] ORÍGENES (1978: I, 70): “...ut quantum fieri potest in interpretando sequar regulam praecessorum et eius praecipue uiri, cuius superius fecimus mentionem...”

[10] ORÍGENES (1978: I, 70): “...Qui cum ultra septuaginta libellos Origenis, quos homileticos appellauit, aliquantos etiam de tomis in apostolum scriptis transtulisset in latinum, in quibus cum aliquanta offendicula inueniantur in graeco, ita elimauit omnia interpretando atque purgauit, ut nihil in illis quod a fide nostra discrepet latinus lector inueniat...”

[11] MIGNE, J.-P., PL XXI, col. 543: “...Neque, ut ait, verberanti dexteram maxillam offert alteram: sed palpanti et leviganti maxillam, morsum improvisi dentis infigit. Cum enim nos in eo et eloquentiam ac studium laudaverimus (interpretando dumtaxat ex Graecis) et fidei ejus numquam derogaverimus; ille utrumque in nobis damnat: et ideo veniam etiam ipse nobis concedat, si forte aliquid, aut asperius, aut incomptius dicimus: quia imperitum hominem ad respondendum lacessivit, quem sciret non posse per multam dicendi artem et eloquentiae copiam id agere, ut is quem laesum vellet ac vulneratum, nec vulneratus videatur esse nec laesus...”

[12] MIGNE, J.-P., PL XXI, col. 543: “...Hoc ergo eloquentiae genus ab ipso requiratur, qui ad culpandum seu vituperandum levi rumusculo commotus, velut quis censor accurrit...”

[13]JERÔNIMO (1983: 8): “...Quod praeconem reppuli figuratum? Quod nolui me subdolo ore laudari? quod sub amici nomine inimici insidias deprehendi...”

 

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